O Arquivo da Misericórdia de
Aveiro, até há pouco guardado num mau armário da Sala do Despacho, hoje aproveitada para
Biblioteca Municipal, está agora patente aos estudiosos, devidamente
ordenado, catalogado e
arrumado numa das estantes da mesma Biblioteca. É interessante, valioso,
e julgo-o intacto.
Atribui-se a Felipe Terzzi o risco da igreja da Misericórdia, sem
dúvida, no seu género, não só uma das melhores de Aveiro,
mas das mais belas do País.
MARQUES GOMES escreveu:
«À semelhança da de Lisboa, a Misericórdia de Aveiro esteve
por muitos anos sem ter casa própria. Nascida no penúltimo ano
do século XlV só quando perfaziam cem anos depois da sua instituição é que se
começou a obra do seu templo.
Havia porém anos já que a ideia da nova casa era o pensamento constante das mesas suas administradoras. O seu provedor
Henrique Esteves da Veiga ao mesmo tempo que, em 1585, diligenciava
obter do rei um subsídio para a obra, alcançava do grande arquitecto do
tempo, o italiano ao serviço de Portugal, Felipe Tércio, o debuxo da
igreja que se pensava construir e pelo qual pagou a este sete dias de
trabalho à razão de 1$OOO reis
cada um. O subsídio desejado, quatro mil cruzados dos sobejos
do cabeção das cizas da vila de Aveiro e seu termo, pagas anualmente, foi concedido por
Felipe II em 1598. Em Agosto de 1599,
recebeu-se o primeiro dinheiro e logo em Outubro seguinte a mesa
mandou aqui chamar o mestre Francisco Fernandes, de Coimbra,
para dar parecer sobre a escolha do terreno e levantar as plantas para
construção do edifício que Tércio anos antes delineara. Da
direcção dos trabalhos, que só vieram a principiar em 2 de Julho
de 1600, ficou encarregado o mestre Gregório Lourenço, do Porto,
executando as indicações que Felipe Tércio e Francisco Fernandes
deixaram.
A direcção dos trabalhos foi partilhada depois por novos
arquitectos. De 1603 a 1606 dirigiu-os Francisco João que no
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começo trabalhara como aparelhador, e de 1607 a 1612 esteve à
frente deles Jorge Afonso, mestre de obras de pedraria.»
Não me repugna acreditar que a igreja e sua formosa frontaria
sejam de Terzzi. O Sr. Dr. JOÃO BARREIRA, em carta que há anos
me escreveu sobre o problema, admite também a possibilidade dessa
autoria, mas faz alguns reparos, pois detalhes há
que são um tanto estranhos à maneira do arquitecto italiano.
Espero dizer um dia alguma coisa mais
acerca deste assunto;
mas, por hoje, simplesmente informo que não me foi possível
encontrar nos documentos da Misericórdia a prova da afirmação de
MARQUES GOMES, que, no entanto, deve reconhecer-se, e sempre, com
justiça, era escrupuloso e cauteloso nas referências desta ordem.
O que encontrei foi o lançamento da paga ao arquitecto que
elaborou o plano e fez a traça da obra, sem indicação de nome.
Em 30 de Abril de 1598, os mesários resolveram escolher
o local para a casa da Misericórdia, que não tinha edifício próprio.
Consta de uma acta. Os sítios apontados como mais adequados,
foram os da Riba do Cruzeiro e rua Direita até ao canto da rua
das Laranjeiras, tendo sido este o escolhido, por eleição, de que
se tomaram os votos, pondo as mãos nos evangelhos.
Em 1595, tinha o provedor Henrique Esteves da Veiga
pedido, efectivamente, um subsídio para a obra. Felipe II, como
se viu da transcrição de MARQUES GOMES, concedeu em 1598 os
referidos 4.000 cruzados. Alusão às diligências junto de Terzzi
ou ao contrato com este, é que não descobri no exame, embora
muito ligeiro, em verdade, que fiz ao Arquivo. O que se me
deparou foi o nome de um mestre de azulejos, de Lisboa, que
em Janeiro de 1607 se encontrava em Coimbra trabalhando em
Santa Cruz. Trata-se de Matias Fragoso e consta do volume n.º 4.
Em 28 de Janeiro de 1607, vê-se desse livro de registos, foi
«por todos assentado que a nossa casa da Misericórdia se forrasse
toda por dentro de azulejos para o que foi logo chamado Matias
Fragoso, de Lisboa, que estava na cidade de Coimbra e era mestre de ladrilhos e com o qual se contratou fazer cada braça de
azulejos e à sua custa assentados, sendo cada braça de dez palmos de quadrado, do mesmo feitio dos de S. Cruz de Coimbra, de cor
branco e verde, pelo preço de dez cruzados.»
Alguns desses azulejos brancos e verdes, do princípio do
século XVII, ainda se podem ver não só na Misericórdia, mas também no
Claustro e na Casa do Capítulo do antigo Convento de Jesus, hoje Museu
Regional.
É bem crível que esses azulejos do Museu de Aveiro e de
Santa Cruz de Coimbra sejam de Matias Fragoso.
Fica assim identificado um mestre azulejista dos princípios
do século de seiscentos, que, salvo erro, não nos era, até agora, conhecido.
ALBERTO SOUTO
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