Francisco Ferreira Neves, Túmulo de João de Albuquerque em Aveiro, Vol. IV, pp. 100-110.

O TÚMULO DE JOÃO DE ALBUQUERQUE

EM AVEIRO

QUASE inteiramente desconhecido dos portugueses, existe na igreja de S. Domingos de Aveiro um formoso túmulo que rivaliza com os melhores de Portugal: é o de João de Albuquerque, fidalgo e militar valoroso que tomou parte nas guerras de África no tempo de el-rei D. Afonso V, e foi senhor de Angeja, Pinheiro, Figueiredo e Assequins. No senhorio destas terras sucedeu-lhe seu filho Henrique de Albuquerque, e por morte deste as terras reverteram para a Coroa, sendo novamente doadas por D. Manuel a Jorge Moniz, que as usufruiu até a data da sua morte, em 1509(1).

João de Albuquerque, que foi casado com D. Helena Pereira, escolheu para local da sua sepultura e de sua esposa, a igreja do Convento de Nossa Senhora da Misericórdia de frades dominicanos, na então vila de Aveiro; tal igreja havia sido pouco antes edificada, pois o Convento foi fundado pelo infante D. Pedro em 1423.

João de Albuquerque contratou com os frades que na Capela de Santa Maria − depois Capela de Jesus − fosse colocado o seu túmulo e de sua mulher, e que cada dia lá dissessem uma missa rezada, e em dia de defuntos uma missa cantada com oferta de um quarteirão de trigo, um puçal de vinho, duas dúzias de pescadas, e um responso sobre a sepultura. Deviam / 102 / ainda os frades dar cada ano a S. Francisco de Coimbra, dois tostões, e meio tostão por uma missa cantada por alma dos pais de João de Albuquerque, que lá se encontravam enterrados, e cento e cinquenta reis de esmolas.

Em contra-partida, João de Albuquerque doou ao convento de Aveiro, para ocorrer à conservação da capela e aos encargos do contrato, a sua quinta de Canelas que havia comprado a Pero Peixoto em 1452, por 27000 reis, e a sua marinha do Puxadouro que havia comprado a Pero Vasques, por 40000 reis.

O contrato foi feito em Aveiro, por escritura pública, de 20 de Agosto de 1477; a doação das duas propriedades foi feita por escritura de 8 de Dezembro do mesmo ano, e confirmada em 3 de Fevereiro de 1484 por el-rei D. João lI, então de passagem em Aveiro.

No seu testamento, João de Albuquerque confirma a doação, e toma providências para indemnizar o convento de Aveiro, no caso de ela não poder ser mantida, o que de facto veio a suceder.

Não sei quando nasceu João de Albuquerque, mas suponho que faleceu em 1483, pois em 9 de Junho deste ano fizeram os frades um treslado do testamento, e em 1484 confirmou D. João II a doação, naturalmente após a morte do doador. Quando Jorge Moniz tomou conta das terras que haviam pertencido àquele e a seu filho Henrique de Albuquerque, pôs acção contra o Convento para reaver a quinta de Canelas, já na posse do Convento há vinte anos, e justificou tal acção alegando que João de Albuquerque não podia dispor de tal quinta − por ser da Coroa. Foi dada sentença contra o Convento, tendo-lhe apenas sido reconhecido o direito às benfeitorias que nela haviam feito.

Os frades, vendo-se lesados, puseram acção contra D. Catarina Henrique, viúva de Henrique de Albuquerque, para que os indemnizasse da perda da referida quinta. Tendo sido condenada D. Catarina na Relação por sentença de 27 de Abril de 1504, ela deu ao convento, em lugar da quinta que valia 95000 reis, terras equivalentes, em Fermelainha e Angeja.

João de Albuquerque e sua esposa foram de facto sepultados na sua capela de Jesus, em um magnífico túmulo de pedra calcária, em forma de caixa, sobre cuja tampa está uma estátua jacente do fidalgo, vestido com sua armadura, e segurando em uma das mãos uma espada, e na outra uma lança provavelmente. É de notar que presentemente já não existe a espada nem a outra arma por se terem partido.

Os pés da estátua apoiam-se sobre um lebreu, também já muito mutilado na parte anterior.

A arca tumular tem de comprimento 2,130 m, de largura 0,190 m e de altura 0,95 m, e assenta sobre três leões (primitivamente / 103 / eram quatro); é de estilo gótico, e na parte superior das suas faces laterais e em toda a volta, tem uma larga inscrição em caracteres alemães, em que se menciona o nome do tumulado e alguns dos factos da sua vida.

Infelizmente a inscrição está muito mutilada pelos estragos causados com as mudanças e aberturas que o túmulo tem sofrido, e em parte tapada com cimento.

Nas duas primeiras linhas esculpidas na face da esquerda, em relação à estátua, lê-se:

Aquy; jaz: o muito: onrado.. Sõr: E vallente: Cavaleyro: Joam: Dalboquerqe:: Do cõselho:: del Rey: E do seu: .............. Do Rey: Da dita Canarea: E o desbaratou: E trouxe: Preso: Ao arayal: Soo p [er] sy: E aly nas: Partes Dafrica....

              Face posterior do túmulo de João de Albuquerque

Vê-se, pois, que João de Albuquerque tomou parte nas expedições a África, e em especial em alguma das enviadas às Ilhas Canárias, onde praticou actos de valentia notáveis.

O túmulo tem esculpidos na mencionada face da esquerda, dois brasões; o do lado da cabeceira, é o de João de Albuquerque: esquartelado, tendo no primeiro e quarto quartel as armas de Portugal antigo; no segundo, cinco flores de lis em sautor, e no terceiro nove cunhas em três palas; o outro brasão é o de D. Helena Pereira, sua esposa, tendo a metade da direita do brasão as armas de João de Albuquerque, e a metade da esquerda a cruz florenciada dos Pereiras. Na face da cabeceira está outro brasão de João de Albuquerque, encimado por uma viseira, segura por dois anjos; na face oposta, está um escudo em lisonja, com as armas da mulher de João de Albuquerque, como já descrevemos. O escudo é seguro na sua parte esquerda, por uma menina, e na parte direita, por um menino.

A face da direita do túmulo não é presentemente visível, por estar encostada a uma parede, mas é de supor que tenha ornatos e brasões iguais aos da face da esquerda.

Nas armas de João de Albuquerque figuram as dos Cunhas, porque era descendente de D. Teresa de Albuquerque e de seu marido Vasco Martins da Cunha.

Verifiquei que no Museu de Machado de Castro, em Coimbra, se encontra um brasão de pedra, tendo na metade direita as armas dos Albuquerques, − as armas de Portugal antigo, e / 104 / cinco flores de lis em sautor, − e da da esquerda as dos  Cunhas. O escudo tem à volta uma legenda que não se pode ler. Este brasão tem a seguinte nota explicativa: «Sec. XVI − Brazão encontrado nas demolições do Claustro da Sé Velha». É sem dúvida de alguns ascendentes de João de Albuquerque, muito possivelmente dos pais. Mas então não é do século XVI, mas sim do século XV. E seria do túmulo dos pais, na hipótese de ter sido removido da igreja de S. Francisco para a Sé Velha, quando a igreja de S. Francisco teve de ser abandonada por causa das aluviões do rio Mondego?

Não se sabe em que ano foi feito o túmulo de João de Albuquerque, nem quem foi o seu autor.

Teria sido feito ainda em vida do tumulado, ou teria sido feito após a sua morte, por ordem de seu filho, ou por ordem dos frades, ou por outrem?

Como a doação foi feita em Dezembro de 1477 e o Convento já se encontrava de posse da quinta de Canelas havia 20 anos, quando Jorge Moniz a reclamou, o que deve ter sucedido em 1497, conclui-se que o filho de João de Albuquerque faleceu antes de 1498; portanto, se foi o filho quem mandou fazer o túmulo, este deve ter sido feito no último quartel do século XV; se foram os frades, poderia ter sido feito nesta época, ou no princípio do século XVI.

Mas o seu autor? Seria um artista nacional ou estrangeiro? Eis um problema interessante para resolver. É evidente que o autor foi um artista de nomeada, correspondente à nobreza e altos merecimentos de João de Albuquerque; talvez um dia se consiga descobrir quem executou tão primorosa obra de arte.

O que é certo é que a história da escultura portuguesa está por fazer, e é tempo de meter ombros a tal empresa.

O túmulo de João de Albuquerque encontra-se presentemente na capela de Nossa Senhora da Misericórdia, que é a primeira à esquerda de quem entra na igreja de S. Domingos, hoje igreja paroquial da freguesia de Nossa Senhora da Glória. Está pessimamente situado, pois se encontra encostado à parede, não se podendo ver a face lateral direita. Mas não foi este o local primitivo; várias vezes tem sido mudado o túmulo, e das mudanças têm-lhe resultado graves mutilações.

O primitivo lugar era o meio da capela de Jesus, a última à direita de quem entra na igreja; depois um prelado mandou encostar o túmulo a uma parede desta capela. De passagem diremos que a igreja actual não é a primitiva, visto que esta foi reconstruída nos séculos XVI, XVII e XVIII.

Na referida capela de Jesus, reconstruída em 1559, visto que esta data se encontra nos pedestais das colunas da entrada, ainda hoje se encontra uma lápide sobre a porta de comunicação / 105 / com a capela anterior, com a seguinte inscrição em letras capitais romanas:

ESTA CAPELA HE D
IOAM DALBVQVERQE
TEM MISSA CADA DIA
ELE A DOTOU.

Já frei LUÍS DE SOUSA, na sua História de S. Domingos, 2.ª parte, liv. llI, cap. XIII, se referiu ao túmulo, e se insurgiu contra o abandono em que se encontrava no seu tempo. Assim escreveu:

«E pois tratamos de renda, justo é que por obra de agradecimento digamos que entre os bens, que possuem, são a Quinta de Canellas e uma marinha, que lhe deixou João d' Albuquerque, cuja é a capella, que primeiro se chamou da Annunciação, e agora de Jesus; e n'ella jaz em um grande túmulo de marmore. Este tumulo teve em seus principios por sitio o meio da capella; veio um Prelado, que á custa do tumulo, que era grande, quiz fazer largueza de serviço na capella, que era estreita, tirou-o do seu logar, e arrimou-o a uma parede com tanto descuido, que a face, em que estava um letreiro, que nos pudera agora servir de chrónica de um fidalgo muito illustre e muito cavalleiro, ficou abraçada com a parede. Eu se acceitei escrever, foi para fallar verdade, e não palear defeitos onde os houver. Assim ficará este culpado em publico, ou para se remediar por algum Prelado zeloso, ou para ser ocasião de se não cometter outro semelhante.»


Os frades não se importaram com a recriminação do cronista, e o túmulo lá continuou encostado à parede e no vão da porta travessa, até que em 1859, foi colocado entre as duas portas que ficam em frente do altar.

Em 1878 tiraram o túmulo para fora da sua legítima capela, e colocaram-no na capela de Nossa Senhora da Graça, que é a primeira à direita de quem entra. Em 1880 levaram-no para junto da antiga sacristia dos frades, e finalmente, em 1885 trouxeram-no de novo para a igreja, colocando-o onde hoje se encontra, isto é, na capela de Nossa Senhora da Misericórdia.

E lá está lamentavelmente abandonado, e esquecido, na obscuridade de uma capela sem luz, esperando que alguém justamente o faça reconduzir para o seu devido lugar na igreja, ou melhor ainda para o Museu de Aveiro, onde figurará como a mais valiosa relíquia aveirense de arte em pedra, e uma das melhores de Portugal.

Barbaridades iguais às que sofreu o túmulo de João de / 106 / Albuquerque tem-nas sofrido outros. Basta mencionar o do rei D. Dinis, mandado fazer por este mesmo rei, e actualmente em lastimoso estado com as mudanças que sofreu na igreja do mosteiro de Odivelas.

Felizmente vai ser reposto dentro de breves dias no seu primitivo lugar que era no meio do corpo da igreja. É interessante registar que o túmulo foi aberto num dos dias do mês de Maio do corrente ano, tendo-se encontrado os restos mortais do rei em razoável estado de conservação.

AVEIRO
Outro aspecto do túmulo de João de Albuquerque e de sua mulher Dona Helena Pereira

Também o túmulo de D. Duarte de Meneses em estilo gótico que estava na capela das almas do Convento de S. Francisco, em Santarém, foi mudado em 1889 para o Museu da mesma cidade, instalado na antiga igreja de S. João de Alporão.

Ora o Museu de Aveiro está instalado no antigo convento de Jesus, onde ainda hoje se respira santidade e religiosidade, e nele ficaria muito bem o túmulo de João de Albuquerque e sua esposa, junto aos túmulos de muitas religiosas que lá dormem o sono eterno, e próximo do túmulo da Princesa Santa Joana cujo pai, − el-rei D. Afonso V − João de Albuquerque serviu na paz e na guerra com lealdade e valentia.

Parece que João de Albuquerque esteve primitivamente sepultado na capela de Jesus em um pequeno túmulo, e que  / 107 / passado tempo é que os seus restos mortais foram transladados para o actual túmulo, no qual se sepultou também a sua esposa.

Poderá admitir-se que tivessem sido os frades que mandaram fazer este túmulo para dignamente guardarem as cinzas dos seus benfeitores? Frei LUCAs DE SANTA CATARINA, continuador da obra de FREI LUÍS DE SOUSA escreveu a este respeito, na História de S. Domingos, parte IV, liv. I, capo XIX:

«Não deixaremos em silencio outra obra, que sobre ser honroso desempenho da Casa, ficou tambem servindo de adorno á Egreja na parte, que corresponde á porta das graças (que fica na Capella do Rosário) e vem a ficar na do Santo Christo. No vão que faz para correspondencia da outra porta, se levantou e lavrou de boa pedra, sobre quatro leões (um honrado mausoleu) uma pollida e bem lavrada caixa, em que se recolheram os ossos de João de Albuquerque. Estiveram em pequeno tumulo no meio da Capella, depois servindo-lhe arrimo a parede, finalmente passados a este nobre depósito, como cinzas de um grande bemfeitor do convento.»

Vou transcrever o que se refere ao contrato de João de AIbuquerque com o Convento de N. S. da Misericórdia, do manuscrito existente na Direcção de Finanças de Aveiro, e intitulado:
 

«Livro de toda A fazenda da Renda que este mostr.º de N. Sr.ª da misericordia da uilla daVeiro da ordem de S. Domingos tem em Canelas, e fa[r]malainha, e anieia, de casaes, terras, vinhas, e casas e do trigo, milho, centeo, ceuada, vinho, galinhas, capões, porcos e dinheiro
               feito pello p.e fr. Thomé dos Reis, Prior do
                      dito mostr.º em 8 de Janr.º de 1613»,

T.º da quinta de canelas, e
da marinha velha das cortes da
cap. de João dalbuqüerque
& sua molher dona Illena P.ra

([ Esta quinta de Canelas...     Daqui para a frente, o manuscrito existente na Direcção de Finanças de Aveiro, devido aos caracteres impossíveis de reproduzir, vai em formato PDF
 

CONTRATO DE JOÃO DE ALBUQUERQUE EM FORMATO PDF [651 KB]
 

/ 110 / Se é interessante e necessário integrar o túmulo de João de Albuquerque na história da arte portuguesa, não menos interessante e justo é conhecer-se a biografia deste português ilustre. Mas quem a poderá fazer?

Aveiro, 2 de Junho de 1938.

FRANCISCO FERREIRA NEVES
 

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(1) − João de Albuquerque foi ainda pai de Pero de Albuquerque e de Lopo de Albuquerque. Estes dois fidalgos tomaram parte na conspiração contra o rei D. João II em 1484. Pero de Albuquerque, almirante do reino, foi condenado à morte e executado. Lopo de Albuquerque, conde de Penamacor, fugiu de Portugal, andou por vários países, e veio a falecer em Sevilha.

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