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I
Reunidos estando os deuses, em Concílio,
Cibéle − a Grande Mãe − propôs ao excelso Grémio
que a Assembleia votasse a instituição dum prémio
p'ra se ofertar,
na Terra, ao mais garboso idílio...
Vénus linda, a afagar o destro supercílio,
logo a palavra pede e afirma, no proémio,
que, com o da proposta, intuito abriga gémeo
e, por isso mui folga em dar-lhe apoio, auxílio...
Os olhos arregala, após este discurso,
o beberrão do Baco, intolerável urso,
que, a taça erguendo, ousado exclama, de caminho:
A que pueril questão prestas boçal concurso!...
Mas, se o fervor manténs de honrar o idiliozinho
que homenagem requer um copo de bom vinho?!
II
Minerva encavacou. Neptuno alça o tridente.
Ceres, de foice em punho, avança p'ra o velhaco,
disposta a
liquidar, de vez, o estulto Baco...
Marte, porém, lhe susta o gesto
algo imprudente.
Descendo então, do sólio, o Júpiter potente
ao descortês censura o abominoso fraco,
por si revelador de ausência de bom caco,
e a abandonar o intima o Empíreo, in continenti.
Mercê do imperativo, encerra-se o tumulto
e Vénus, que olvidara o desbragado insulto,
p'ra o desatino impetra,
ao grave deus, perdão.
O Pai, que à Filha rende um desmedido culto,
generoso defere a
humilde petição:
«Que fique Baco, pois... e volte-se à sessão».
III
Falam Juno; Minerva; o ignífero Vulcano;
Hélios de Hiperion, de quem descende ApoIo;
Prosérpina; Mercúrio; o
desabrido Eolo;
Saturno; Eos, Plutão e o mui fecundo Urano.
Cibéle − a Mãe comum − agrado soberano
sentia ardentemente avassalar-lhe o colo,
ao ver que triunfava, ali, de pólo a pólo,
com grande entusiasmo, o seu divino plano.
De todo alheio ao alvitre, em causa, de Cibéle,
dormia à rédea solta
o filho de SemeIe,
nos braços de Morfeu, cosendo a bebedice.
E destarte jazendo até o raiar da Aurora
− momento em que ressurge − esquálido expectora,
a boca reabrindo, alcoólica sandice.
IV
Ninguém dele fez caso. Aprova-se a moção.
E para o meigo idílio, a ser achado, iria,
como prémio, o valor de muita galhardia
se lhe
reconhecer, com rara distinção,
Vénus, que era no Empíreo a suma perfeição,
desse par descobrir o múnus recebia,
cá em baixo, onde perdura eterna a hipocrisia;
a calúnia demora e
oculta-se a traição.
p'r'à Terra se conduz a deusa peregrina,
em coche aurifulgente, acompanhando-a Clóris,
Eos e Anfitrite; Astrêa, Juno e Dóris.
Na vanguarda, qual guia, a rota lhe ilumina
ApoIo − o deus da Luz, das Artes, Medicina
que por ela nutria uns cândidos amores.
V
Depois de percorrido
haver todos recantos
da Europa; da Ásia e África; América e Oceania,
a Aveiro também chega a ilustre dama, um dia,
p'ra lhe fruir, de perto, os naturais encantos...
Seguia-a o esbelto Apolo, a desferir-lhe cantos,
que minorar buscavam a dura nostalgia
do Olimpo (que toda a alma, agora, lhe invadia)
repentino a deslumbra um eco dos mais santos.
Prece da nossa Ria − undífera naíade
que, em tudo, a semelhar a voz duma deidade,
de Jove, assim, rogava a complacência opima:
− Oh, Padre Omnipotente; oh, deus; oh, majestade,
anui a que, jamais se apague a doce estima,
'com que o Vouga me beija e sedutor amima!...
VI
Ó Vouga meu, gentil, que alegre deixa as fragas,
onde nasceu, brotou, p'ra vir devagarinho,
cercando várzeas mil, num
brando murmurinho,
comigo se ajuntar além, nas Duas Águas!
Dóris e Anfitrite, as deusas, que das vagas
sempre gozado haviam o dúlcido carinho,
co'uma ternura
igual lembravam o pátrio ninho,
ouvindo estas canções de augúrios bons, presagas,
Que a tão sentida voz, ou eco feiticeiro,
anunciar-lhes vinha o fim do térreo exílio:
a sua volta, em breve, ao célio paradeiro.
Pois Vénus proclamava, em nome do Concílio,
que o amor entre a Ria e
o Vouga, lá em Aveiro,
no Mundo se mostrara o mais perfeito idílio.
Monção, 28-8-1937.
ANDRÉ DOS REIS
(Aveiro) |