J. Carrington da Costa, O neocretácico da Beira-Litoral, Vol. III, pp. 185-208.

O NEOCRETÁCICO DA BEIRA-LITORAL

As formações mesozóicas portuguesas correspondem a sedimentos depositados em mar epicontinental nos bordos abatidos da Meseta. Pela sua proximidade das antigas linhas de costa são todas neríticas e muitas delas costeiras. Em consequência disso e ainda porque a região, durante essa Era, teve diferentes posições relativamente às zonas climáticas, existe grande diversidade de facies. Os estratos de espessura considerável contêm materiais biogénicos e detríticos bastante variados, mas, como estes últimos se formaram em geral à custa das mesmas rochas do continente, encontram-se tipos semelhantes de idades muito diversas.

A intensa erosão do relevo hercínico e as condições do meio fizeram, no início do Mesozóico, de o que é hoje a Europa vasto deserto arenoso semeado de lagoas costeiras. Assim se originou possante camada avermelhada, quase exclusivamente constituída por calhaus rolados, grés sem fósseis e poucos leitos argilosos com raríssimas impressões vegetais, que, como é natural, assentam discordantemente sobre o Paleozóico. Estes depósitos do Triássico estender-se-iam mais pelo interior da Meseta, mas só se mantiveram aqueles que foram preservados da acção dos agentes de erosão, pelos sedimentos das transgressões liássica e cenomaniana. Os do nosso país devem ser referidos à série superior daquele sistema, pois, pouco a pouco, passam a outros, de materiais mais finos com fauna do período seguinte, primeiramente salobra e em seguida francamente marinha.

O estudo do Jurássico português mostra-nos que o seu sistema se depositou em golfo aberto para o Sul, que não ultrapassava a região onde hoje é o distrito de Aveiro, situado entre a Meseta, a Este, e maciço desaparecido, a Oeste, de que as Berlengas são testemunhas. As terras do seu litoral unir-se-iam portanto a Norte, pela região galaico-duriense, e faziam parte do grande continente Norte-Atlântico.

/ 186 / Os depósitos de gesso, que ocorrem em alguns pontos, atestam, além de um clima quente e seco, lagoas em dissecação num litoral baixo. Todavia lentamente o mar liássico estendeu-se de certo muito para lá dos actuais limites dos afloramentos mesozóicos, pois, para Oriente, os caracteres paleontológicos e petrográficos não indicam a proximidade da costa. Porém no Oolítico o golfo foi-se reduzindo; o mar abandonou uma grande parte do terreno anteriormente conquistado.

A regressão acentuou-se durante o Eocretácico e teve o seu máximo no Aptiano. A sul de Torres Vedras encontram-se grés com fauna em que se misturam espécies marinhas e de estuário, e, para o Norte, mostram-se areias e massas lenticulares argilosas com moluscos de água salobra e plantas terrestres. O carácter nitidamente marinho apenas se nota no Algarve oriental e na região de Sintra onde há calcários que se sucedem, sem descontinuidade de sedimentação, aos do anterior sistema. Mas no final desta época iniciou-se, embora vagarosamente e com oscilações, nova invasão do mar que, no Cenomaniano, teve grande amplitude.

Não demorou no nosso solo aquela transgressão mesocretácica, pois, no Norte, o Turoniano médio apresenta-se detrítico e nota-se na sua fauna tendência para salobra. Posteriormente o mar abandonou quase por completo as orlas e ocupou apenas pequeno golfo na Beira Litoral, que aumentou no início do Neocretácico(1), e onde deixou sedimentos que são objecto deste nosso trabalho.

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A primeira publicação geológica em que se estudam com alguma minúcia os terrenos hoje considerados senonianos data de 1894. Foi a notícia estratigráfica com que PAULO CHOFFAT fez acompanhar a admirável memória sobre a flora mesozóica de Portugal do Marquês de SAPORTA(2). Os fósseis tinham sido descobertos / 187 / um ano antes, quando se preparava a nova carta geológica do país.

Até àquela época estas formações eram tidas como cenozóicas, o que se verifica na carta de 1:400.000, publicada pela Comisión deI mapa geológico de España, e para a qual os dados relativos a Portugal foram fornecidos, em 1891, por Nery Delgado e Paulo Choffat.

Naquele estudo estratigráfico são indicados seis afloramentos disseminados entre a Serra de Buarcos e a linha Tocha-Arazede, dois em Mira, e o conjunto de depósitos que se estende de Nossa Senhora de Febres a Mamarrosa e ao Vouga. Embora o autor os descrevesse no capítulo relativo aos jazigos de idade duvidosa, pensava que seriam inferiores ao Cenomaniano não só por as suas flórulas terem na generalidade aspecto antigo, mas ainda por ter interpretado mal a sua posição relativamente a outros depósitos cretácicos.

Foi na viagem que fez a França, em 1895, para reaver dos herdeiros de Saporta as valiosas colecções por este estudadas, que a sua opinião se modificou. Ao visitar o museu de Marselha verificou que, no seu conjunto, a fauna devia ser mais moderna, do Garumniano, e isso comunicou a Venceslau de Lima(3). Para este a flora era do topo do Cretácico, talvez do Daniano, mesmo cenozóica(4).

O reconhecimento de amonites, Hemitissotia no Ceadouro e Hoplites em Mira, junto do carácter relativamente recente dos vertebrados entregues à reconhecida competência do Dr. Sauvage, vieram em absoluto confirmar a idade senoniana do conjunto e em particular colocar no Campaniano o depósito marinho de Mira (fig. 1).

Em Julho de 1899 iniciou Choffat a publicação do seu monumental trabalho sobre o Cretácico situado ao norte do Tejo(2). Em Abril de 1900 é impressa a segunda parte, relativa ao Senoniano (s. l.). Entretanto apresentava à Academia de Ciências de Paris um resumo(5). A grande memória só se acabou de imprimir em Junho do mesmo ano. Nela vem a descrição dos cortes feitos, as listas dos fósseis, algumas reproduções panorâmicas e uma carta com «os afloramentos senonianos da Gândara». É de notar que, no primeiro grande quadro final, não sabemos por que razão, foram colocadas, no Turoniano superior, as formações do Ceadouro, com Hemitissotia. / 188 /

Fig. 1 − FÓSSEIS CAMPANIANOS DE MIRA: I − Gryphaea vesicularis, Lam. II − Meandropsina Larrazeti; Mun.-Chal. III − Neithea regularis, Schloth; IV − Trigonia limbata, d'Urb. V − Cyclolites cancellata, Gold. VI − Pectunculus Geinitz, d'Urb.

/ 189 / Distingue o autor uma série de «afloramentos comunicantes» que tem a base assente no Turoniano e outros, dispersos, sem relações visíveis quer entre si, quer com aqueles depósitos. Nos primeiros são considerados os seguinte níveis:

I GRÉS DO CEADOURO

a, b, c) Maciço de areias e grés de 140 metros de possança sem fósseis. Compreende ainda as areias com Cyrena de Carrajão.

d) Banco fossilífero, de 1 metro, com gasterópodes, lamelibrânquios, polipeiros e a amonite Hemitissotia Ceadourensis. Em dúvida a formação de Berba com vegetais.


II ASSENTADAS FLÚVIO-MARINHAS

a) Margas pouco fossilíferas e calcários com Cypris.

b) Margas vermelhas e verdes e bancos de grés calcários ou argilosos com Pyrgulifera armata var. Gandarensis, Cyrena, corpos cilíndricos, etc. (300 metros).

c) Grés do Vale com Ostrea subacutirostris. Fauna salobra muito abundante e em geral bem conservada: Cyrena, Hidrobia, Cerithium, etc. (2 metros e 30 cm).

d) Camadas com Mytillus, Glauconia, Pyrgulifera, Anomia, Cyrena, etc. O carácter marinho é acentuado pelos géneros Pholas, Glycimeris e Tapes.

e) Camadas salobras dos arredores de Aveiro. Desaparição quase completa das espécies marinhas. Margas e grés com Cerithium, Hidrobia, vertebrados, etc. Abrange os depósitos, com vegetais, de Arada e de Pedra-da-Moura.


III AREIAS DE ESGUEIRA (fig. 2)

Areias de Esgueira, que compreendem os leitos subjacentes com vegetais. Formação de Alumieira com Cyrena e Cyclas, e as areias de cobertura para norte da linha Vagos-Quintãs, até ao Vouga.

Os afloramentos isolados são:

A) Molasso com Hoplites vari var. Marroti e fauna francamente marinha, em Mira.

Fig. 2 − «Areias de Esgueira» cobrindo os estratos neocretácicos. AVEIRO-AGRAS.

B) Pequenos afloramentos, rodeados de areias cena-antropozóicas, de areias, grés e argilas com Cyrena, escamas / 191 / de peixe e vegetais terrestres, Em Vizo abundância de vertebrados, Crocodilus Blaverieri, Clastes, etc.

C) Grés com vegetais, assentes sobre o Paleozóico.

Após muitas dúvidas, CHOFFAT propõe, em quadro final, o seguinte paralelismo: Nos chamados «afloramentos comunicantes» considera-os pela ordem de numeração, do mais antigo lIª ao mais moderno III; supõe todavia que lIc  e lId são, pelo menos em parte, contemporâneos. Como veremos esta seriação é hoje insustentável.

Parecia-lhe que o molasso de Mira com Hoplites e os restantes afloramentos isolados, poderiam ser paralelizados com I «Grés do Ceadouro», ou então com a parte superior das «Assentadas flúvio-marinhas». Contudo, julgava mais provável a primeira hipótese, o que, como justificaremos, é inadmissível actualmente.

Um resumo deste trabalho foi apresentado ao oitavo Congresso Geológico(6). De modo geral mantinha a mesma opinião, mas considerava ainda mais antiga a formação marinha de
Mira: «Il semble probable qu'elle a sa place dans le massif arénacé qui supporte les grès à Hemitissotia». Quanto ao paralelismo com as formações estrangeiras, apenas continuava a colocar no Campaniano aquele depósito.

O estudo da fauna do complexo flúvio-marinho, com a descrição de onze espécies novas, aparece no mesmo ano(7). Foi o último trabalho daquele notabilíssimo geólogo sobre o Neocretácico da «orla». Depois disso apenas fez imprimir, quando pretendia publicar o resumo da geologia do nosso país, em 1914, uma carta, só muito mais tarde distribuída(8), na qual vêm indicadas as manchas senonianas da região mais meridional da Gândara.

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Algumas publicações de carácter geográfico ou geológico mais geral, também se referem ao Neocretácico português.

LAPPARENT pensava(9) que o Emscheriano está representado entre nós, próximo da costa, por formação flúvio-lacustre que contém na base intercalação marinha com Hemitissotia, o que é evidente quanto a esta última. Todavia a carta-esboço da Europa / 192 / desta idade, está errada a respeito de Portugal, pois mostra um golfo estendendo-se da foz do Sado à margem sul do Mondego. No texto nenhuma indicação dá sobre a existência do Aturiano, porém, na carta respectiva, apresenta, não sabemos por que razão, completa emersão do nosso solo, excepto, em dúvida, estreita faixa de Lisboa para o sul.

Referindo-se ao Daniano diz que os vertebrados garumnianos da Provença, os géneros Cyerena e Pyrgulifera; e uma flora de passagem do Cretácico para o Cenozóico, se encontram em possante maciço arenoso que se observa ao «norte do Cabo Mondego, bem como em Mira». Acentua que ocorrem ali corpos cilíndricos problemáticos, idênticos aos de Rognac, que também se notam nas lentículas margosas, subordinadas aos tufos basáIticos nos arredores de Lisboa. Tudo isto revela certa confusão, visto aqueles fósseis e corpos aparecerem nas camadas flúvio-marinhas que já tinha considerado como emscherianas.

Mais cuidadoso é o Prof. HAUG (10) que, apesar de dispor dos mesmos elementos e, geralmente, fazer crítica pessoal e procurar o paralelismo com formações similares de outras regiões, se limita a apresentar rápido resumo dos afloramentos e a lembrar que Hoplites Vari var. Marroti é espécie que, em Espanha, na província de Burgos, aparece no Campaniano. Na carta das zonas isópicas do Maestrichtiano indica, na região terminal das bacias do Tejo e do Sado, depósitos detríticos ou lagunares. No texto apenas diz que o mar, nesta idade, tinha abandonado o nosso solo. Quererá considerar como maestrichtianas as formações basálticas?

Por sua vez o Prof. FLEURY publicou um interessante trabalho de vulgarização no «jornal de Ciências Naturais», que mais tarde foi ampliado com algumas notas bibliográficas e quadros comparativos(11), visto a nomenclatura estratigráfica da carta geológica de Portugal, publicada, como se sabe, em 1899, não corresponder à usada actualmente. Assim, considera:

/ 193 /
Admite ainda que os «grés do Buçaco, etc.» são depósitos continentais em parte eocénicos; e que os «marino e flúvio-marino de Mira» são os últimos depósitos marinhos do Mesozóico.

A nossa carta geológica apenas coloca no Campaniano C4a formação marinha de Mira e considera as outras, flúvio-marinhas e continentais, como mais modernas, garumnianas C5. Quererá aquele ilustre Prof. incluir no «etc.» que se segue aos «grés do Buçaco», todos os outros depósitos que na carta têm a indicação de C5, fazendo somente exclusão das formações flúvio-marinhas perto de Mira? Ou antes pensaria considerar mais modernos apenas os depósitos continentais assentes sobre o Paleozóico e campanianos todos os outros, mesmo os da grande mancha de Aveiro que na carta vêm como garumnianos? Eis o que não podemos saber, visto não se referir no texto a este assunto. Esta omissão não é para admirar, pois trata-se de pequeno resumo para vulgarização, mas, apesar disso, precioso auxiliar na leitura daquela nossa carta geológica que, infelizmente, ainda não pôde ser substituída.

Como veremos, o C4 é incontestavelmente campaniano, mas as manchas C5 não são todas contemporâneas; ali se encontram englobados, sem dúvida, terrenos emscherianos e aturianos, e possivelmente danianos, ou mesmo mais modernos.

É de registar a opinião do Dr. ALBERTO SOUTO que, em consciencioso, inteligente e metódico trabalho, procura tornar conhecida a sua bela e bem característica região. No seu cuidado estudo sobre as origens da Ria(12), diz: «O Senoniano salobro é característico em Aveiro, entre uma linha Ílhavo-Quintãs-Oliveirinha e a Ria. Litologicamente compreende grés calcaríferos; duros, de aspecto dolomítico, sob o nível das águas da Ria, andoas, argilas e margas de grande importância industrial, calcários brancos de fraca possança, sem valor económico, e areias com bichoiro (calhaus amigdalóides) e calhaus rolados, empregadas na fabricação de adobos e nas argamassas. Sobre a idade das areias, porém, mantenho reservas... Preferiria não as considerar senonianas e formar com elas, provisoriamente, um andar de designação localAradiano de Aradas, onde os depósitos arenosos têm um notável desenvolvimento...»(13).

Parece ao Dr. SOUTO que os depósitos neocretácicos emersos durante grande parte do Cenozóico, foram mais tarde cobertos: «restos da fusão do gelo no alto, águas impetuosas de caudalosos rios desaparecidos, semearam esses bancos de calhaus rolados, de areias, de argilas e de terras que invadiram o cretácico... O manto resultante desta deposição terciária ou quaternária a / 194 / idade das areias de Esgueira, Aveiro, Aradas e Ílhavo não está bem esclarecida foi depois atacado pela erosão e em muitos pontos desapareceu por completo».

O problema é, na verdade, de difícil resolução como veremos e ainda complicado, pelo facto de CHOFFAT, com a sua incontestável autoridade, ter dado unidade a depósitos que, decerto, são de diferentes idades. Note-se, por exemplo, que a flórula propriamente de Esgueira, é, de todas as consideradas senonianas, a que tem cunho mais antigo.

Mais recentemente, notável professor alemão que se tem dedicado a estudos portugueses diz(14) que verificara, mesmo antes de ter conhecimento dos trabalhos de CHOFFAT, a quase impossibilidade de separar as várias areias, cretácicas, pliocénicas e quaternárias da região que tratamos. Também julga que há apenas a ter em conta a percentagem em caulino para as poder distinguir, o que nos parece insuficiente.

É curioso que o Prof. GIGNOUX(15) organizou, após rápido estudo do Cretácico da Península Ibérica, quadro esquemático das facies, onde, quanto a Portugal e sem que tenha apresentado qualquer razão, considera do Daniano as areias continentais que se sobrepõem ao «Senoniano constituído por margas e grés marinhos ou salobros». Nesse quadro apenas são indicadas, para o nosso país, duas zonas: N. E.Cercal e S. W. Sintra, o que induz em erro.

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*        *

CHOFFÀT não chegou a fazer investigações na área de Aveiro, apesar de já há muito se explorarem argilas em Agras, para a fábrica de cerâmica de Jerónimo Pereira Campos e filhos(16).

De certo achou suficiente o ter observado o afloramento de Vilar e o facto do Eng. VASCONCELOS PEREIRA CABRAL ter notado na cidade grés fino com fósseis, que aquele ilustre geólogo classificou depois como Hydrobia Vasconcellosi e Cyrena Marioni.

Toda a região a norte da linha Henricas Moitinha Chousa-do-Fidalgo Carrajão, foi deficientemente estudada. Só assim se explica a criação das assentadas IIe «Camadas salobras de Aveiro», que, como veremos, não tem razão de ser, e lII «Areias de Esgueira» que engloba, de certo, depósitos de idades diferentes como já tivemos ocasião de indicar.

/ 195 / O aparecimento de Bulimus Gaudry(17), que só tinha sido encontrado em Santo André; a informação verbal do incansável investigador Dr. Alberto Souto de ter colhido Cyrena Marioni, Cerithium Vidali e Hydrobia Vasconcellosi, junto ao Esteiro da Fonte Nova, e também aquelas duas primeiras espécies durante os trabalhos para a construção do Parque; e ainda a colheita de pequenos fragmentos de quelónios, de impossível determinação, pelo malogrado assistente Eng. Rui de Serpa Pinto, despertou-nos o desejo de estudar aquelas formações da mesopotâmia aveirense. Parece-nos que esse estudo veio lançar alguma luz sobre os vários problemas do nosso Neocretácico.

Antes de fazermos as considerações que nos levarão a novas concepções estratigráficas, passaremos a registar as observações feitas na cidade, a começar do lado do Norte(18).

Nos terrenos anexos à «Fábrica de Mosaicos», entre o Canal de S. Roque e o ramal da C. P. para o mesmo canal, encontra-se a seguinte série de cima para baixo:

a)

Cobertura terrosa passando a depósito argilo-arenoso bastante limonitasado (denominado «zorra»)

0,5 m
b)

Areia fina micácea com camadas mais ou menos regulares de pequenos calhaus roladoso "bichoiro»passando a areia com quartzo e filitos rolados, gradualmente em mais nítida estratificação

3,5 m
c)

Areia fina amarelo-esverdeada com intercalações contendo fósseis vegetais muito fragmentados. Nalguns pontos a camada vai-se tornando gradualmente mais argilosa e passa a, argila negra com fragmentos de plantas lignificadas; em outros, passa a grés fino friável argiloso tendo disseminadas pequenas placas descontínuas de argila azulada com raros fragmentos vegetais também lignificados e corpos cilíndricos argilosos lisos

2,5 m
d)

Grés fino claro muito argiloso «andoa» por vezes quase argila compacta com manchas dendríticas vermelhas. O grés que se continua em profundidade contém numerosos fósseis (fig. 3): Cyrena Marioni var.,C. aff Galloprovincialis, C. aff. Cyprina ablonga e restos indetermináveis de tartaruga.

 
 

Fig. 3 − Grés com CYRENA. AVEIRO − Entre o canal de S. Roque e o Ramal da C. P.


Os estratos no corte da trincheira do caminho de ferro parece mergulharem de 5º para O. S. O.. Todavia esta inclinação é aparente, pois a verdadeira é, simultaneamente, para O. e N. O.

Uns 150 m. para o Sul e junto à linha férrea, é explorado um barreiro pela «Cerâmica Aveirense» da viúva de João Pereira Campos. Nota-se ali a seguinte disposição de cima para baixo:

a)

Camada terrosa

0,5 m

b)

Depósito argilo-arenoso limonitizado, «zorra»

1 m

c)

Passagem gradual a areia estratificada mas irregularmente de ponto para ponto  num conjunto de

1,20 m

d)

Areia argilosa amarela em camada que termina em cunha. Espessura máxima observável

 0,5 m

e)

Calcário cinzento-azulado muito compacto, por vezes de aspecto espático

0,15 a 0,20 m

f)

Argila azulada com raros fragmentos de conchas de lamelibrânquio indeterminável

1,50 m

g)

Grés fino margoso com pequenos nódulos; corpos cilíndricos lisos alongados e raros vegetais muito fragmentados.

0,80 m

h)

rgilas em exploração alternadamente azuis e vermelhas, tendo à vista

4 m

 

Num estrato de argila azul desta última série colhemos fragmentos de conchas de lamelibrânquios indetermináveis e de dentalídio que parece pertencer ao género Fustiaria.

Informou-nos o gerente da fábrica que abaixo do nível da água aparece um depósito arenoso. É possível que se trate de formação correspondente ao grés com Cyrene da Fábrica de Mosaico.

Neste barreiro é que foram colhidos os três exemplares de Bulimus, atrás citados. / 198 /

Fig. 4 Estratos aturianos.
AVEIRO - Barreiro da Fábrica de Jerónimo Pereira Campos.

/ 199 / Os outros locais observados ficam bastante afastados, para S. E.. São óptimos cortes, em Agras, nas arribas do vale em que se continua o Esteiro da Fonte Nova. Correspondem a um único maciço que a erosão dividiu. Têm todos portanto composição semelhante. O do Sul, explorado pela «Fábrica de Cerâmica de Jerónimo Pereira Campos», apresenta a seguinte constituição de cima para baixo (fig. 4):

a)

Camada terrosa que passa irregularmente a argila arenosa amarela e a areia, com espessura variável devido ao recorte do terreno.

 

b)

Argila em leitos irregulares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(Em material solto, que parece pertencer a esta camada, notámos fragmentos de escamas ganóides).

1,5 ms

c)

Grés margoso claro . . . . . . . . . . . .  . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

0,80 m

d)

Camadas argilosas alternadamente azuladas e avermelhadas, de vários tons, que passam, ao nível da água, à grés fino, em que colhemos escamas de Clastes Lusitanicus . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

10 m


Estes estratos prolongam-se para E. Estão porém cortados pelo entalhe onde corre a linha férrea. Ali, nos barreiros explorados pela «Empresa Cerâmica do Vouga», a composição é a
seguinte:

a)

Camada terrosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

0,50 m

b)

Argila terrosa amarela que no local observado é menos espessa por se encontrar na encosta. No ponto mais alto da barreira ultrapassa

3 m

c)

Areia com calhaus rolados. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

1,5 m a 2 m

d)

Argilas amarelas e azuladas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

1,5 m

e)

Grés margoso com Bulimus Gaudry . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

0,80 m

f)

Argilas alternadamente azuis e vermelhas, tendo na base outras manchadas, com numerosos restos de quelónios da família Bothremydidae (fig. 5), coprólitos e corpos cilíndricos . . . . . . . .

6,5 m

g)

Grés fino argiloso com: Cyrena Marioni, C. aff. Galloprovincialis, C. aff. Cyprina oblonga (os moldes apresentam por vezes a superfície limonitizada), fragmentosde teleósteo indeterminável e escamas e vértebras de Gastes Lusitanicus (fig. 5). Estes grés, numa espessura média de 0,80 m, passam, abaixo do nível da água, a argila que se continua em profundidade. O conjunto é observável numa altura de

5 m

/ 200 /

Fig. 5 − FÓSSEIS ATURIANOS DE AVEIRO

I − Fragmentos de quelónio da fam. Bothremydidae
II − Vértebras e escamasde Clastes Lusitanicus, Seg.
III − Cyrena cf. Gallo-provincialis, Math.
IV − Coprólitos

/ 201 / [Vol. III - N.º 11 - 1937]
Os estratos mostram pender de 4º a 6º para O. N. O.; todavia parece haver simultânea inclinação para O. e para N.O. Neste barreiro foi colhido, na camada gresosa, um notável exemplar de quelónio, da família Bothremydidae, que estudaremos em outro lugar. Exemplares desta família só em 1931 foram reconhecidos na Europa, no Daniano do Sul da França. Apenas tinha sido registada na América.

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Os mais antigos depósitos senonianos são fundamentalmente detríticos. Encontram-se em contacto com o Mesocretácico em Penedos, Palhaça e Carrajão, mas como as suas primeiras camadas e as do Turoniano superior são areias mais ou menos consolidadas que não contêm fósseis, é difícil determinar o limite.

Esse conjunto serve de base, no Ceadouro, Mina e Picotos a grés compacto cinzento, de grão irregular unido por cimento mais ou menos calcário, bastante fossilífero. Os invertebrados, indicam-nos o Senoniano inferior, porém os vertebrados apresentam-se com cunho mais moderno, como aliás em todos os nossos depósitos neocretácicos.

Foi certamente esse facto que levou Choffat a considerar as camadas de Mira com Hoplites, incontestavelmente campanianas, como contemporâneas ou mesmo mais antigas do que aquelas; hipóteses inadmissíveis não só por ser muito pequena a afinidade das faunas atendendo à sua riqueza, como ainda por considerações de outra ordem. Devemos ter como norma, na classificação dos terrenos mesozóicos, o considerar em primeiro lugar os fósseis de invertebrados desde que sejam suficientemente característicos como por exemplo os amonitídeos , visto conhecer-se melhor a sua distribuição cronológica e corológica.

Nas nossas formações senonianas colheram-se vários polipeiros que foram estudados por notável especialista,(19), o qual / 202 / reconheceu que Cyclolites hemisphaerica e C. Choffati (espécie nova muito próxima de C. scutellum) indicam, em relação aos corais de Mira, uma idade mais antiga; o que é confirmado pelas amonites.

Nestas condições, por tais depósitos se seguirem ao Turoniano e por o género Hemitissotia não ultrapassar o Coniaciano, a este os referiremos.

Aos grés coniacianos do Ceadouro seguem-se, em continuidade de sedimentação, margas, mais ou menos xistosas, com massas lenticulares de calcário de aspecto marinho, mas com fauna salobra: Cypris em grande abundância, Cyrena Marioni, coprólitos e restos de vegetais e vertebrados. Não há um único fóssil característico, porém, atendendo à disposição dos depósitos, pensamos que estes só poderão ser coniacianos ainda, ou, quando muito, santonianos. Na impossibilidade de fazer esta distinção parece-nos correcto incluir aquelas margas no Emscheriano.

Na Palhaça a sobreposição não é nítida devido a deslocações. No Carrajão dá-se o facto curioso do Turoniano ser, na sua parte superior, mais ou menos detrítico, ou então faltar. Aos calcários incontestavelmente mesocretácicos seguem-se margas com raros fósseis mal conservados, como Pectunculus e Neithea regularis (?), que poderão ser já coniacianos. Depois sobrepõem-se mais de seis metros de depósito arenoso, tendo perto do topo outras margas mais ou menos micáceas com Cyrene e restos de vegetais.

Fig. 6 − Corpo cilíndrico
AVEIRO-AGRAS

A camada margosa estende-se muito para S.E. Logicamente consideraremos também como emscherianos tais depósitos.

O Turoniano que ocorre entre Carreira e Furadouro e ainda para E. e N. desta linha, próximo de Abrunheira, em Silveira, Giesta, Rego e Monte é quase todo constituído por grés e areias, de certo devido à proximidade da antiga costa. É portanto possível que as últimas camadas, desprovidas de fósseis, sejam já senonianas, pelo menos na área contornada pelos afloramentos calcários. Pela posição em que estão relativamente aos depósitos incontestavelmente cenamo-turonianos, não poderão ser inferiores à assentada com Neolobites Vibrayanus, como CHOFFAT, embora em dúvida, os colocou no seu esboço geológico da Gândara, nem certamente são maestrichtianas como se mostram na carta de 1899. Devido à falta de elementos somos obrigados a indicar, na pequena carta geológica que acompanha este / 203 / trabalho, tais sedimentos como; «grés e areias turono-senonianas.

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Ao Emscheriano de Penedos segue-se, em continuidade de sedimentação, uma série de estratos margosos, ora vermelhos ora azulados. Em Picotos, aos calcários com Cypris sobrepõem-se margas e argilas, alternadamente vermelhas e verdes, com corpos cilíndricos, tendo intercalados bancos de grés argilosos, «andoa», ou calcários. Apenas a sul, entre Covões e Balças, em camada arenosa, foram colhidos alguns fósseis de mais valor: Pyrgulifera armata var. Gandarensis e Cyrene.

Que idade devemos atribuir a estes depósitos? Pyrgulifera é fóssil comum no Neocretácico. A variedade portuguesa de P. armata não corresponde à forma típica do Daniano; embora tenha analogias com esta, tem-nas também com P. Matheroni do Maestrichtiano. Atendendo a isto e à sequência de sedimentação, classifica-los-emos como aturianos.

Não são conhecidas as relações estratigráficas entre estes depósitos lIb e outros que Choffat designou por lIc «Grés do Vale», lId «Camadas com Mytilus» e lIe «Camadas salobras de Aveiro».

Em primeiro lugar deve-se registar que não se trata de uma sucessão regular, mas sim de afloramentos estudados isoladamente; e depois, que a diferença entre as faunas é muito pequena. Apenas se nota cunho mais marinho em lId devido à abundância de Mytilus (Septifer) cf. lineatus. Todavia esta espécie, embora com intensidade variável, nota-se por toda a parte Tabuaço, Chousa-do-Fidalgo, Lavandeira, Quintãs, Lila, etc.

Mais importante nos parece ser a ocorrência de Pyrgulifera Gandarensis em lIb e lId que falta nas outras, sendo substituída no «Grés do Vale», por P. Franciscoi. Por sua vez lIc e lIe têm de comum Hydrobia Vasconcellosi que não aparece naquelas. Acentuemos que CHOFFAT chegou a achar lógica a suposição de que o «Grés do Vale» poderia corresponder a formação intercalar descontínua, possivelmente isópica das «Camadas com Mytilus».

E são tão nítidas agora, após as nossas investigações, as afinidades petrográficas e paleontológicas entre lIb e lIe, que não podemos deixar de as considerar contemporâneas, pelo menos em grande parte.

Se observarmos a fauna no seu conjunto, verificamos existência de animais marinhos como Glauconia e a maior parte dos lamelibrânquios; outros adaptados a meios de fraca salindade, Pyrgulifera, Melania, Hydrobia, Paludina, Cyrena, etc.; e ainda terrestres, Bulimus.

/ 204 / Este facto é corrente quando os depósitos se formam em grandes estuários ou em deltas. Então é frequente suceder que algumas áreas do domínio marítimo se encontrem mais ou menos isoladas por cordões litorais. E dois casos se podem dar: ou elas passam a lagoas de evaporação onde após a deposição da argila se precipita o gesso, mais raramente o sal-gema; ou, se recebem cursos de água doce, vão progressivamente diminuindo o seu grau de salinidade, dando lugar a lagoas salobras. Ainda pode acontecer que fiquem temporariamente, umas e outras, em comunicação com o mar. E assim, é natural que, em tais regiões, se formem sedimentos variados com fauna um pouco diversa nos diferentes pontos.

Deste modo se deve ter formado a série neocretácica, na Beira Litoral. E pelas razões já anteriormente expostas, somos levados à convicção de que todos aqueles depósitos se sedimentaram no Aturiano. Não é todavia possível distinguir as formações campanianas das maestrichtianas, nem procurar paralelismos entre determinados conjuntos de estratos.

Apesar de não se terem encontrado fósseis nos afloramentos que se estendem de Angeja para Albergaria, em Fermelã, e entre Salreu e Canelas, referi-los-emos, embora em dúvida, à mesma idade, devido aos seus caracteres petrográficos e à situação em que se encontram em relação àqueles.

Quanto aos retalhos que se mostram em vários pontos, até próximo da margem direita do Mondego, como estão isolados por grande extensão de areias, não é fácil verificar a sua posição relativamente às formações anteriormente estudadas. Apenas num local ocorrem fósseis característicos. Em Mira, num molasso que na parte superior passa a verdadeiro conglomerado, embora de calhaus de pequenas dimensões, foi colhida abundante fauna: Hoplites vari var. Marroti, Bacutites, Inoceramus Crispi, Meandropsina Larrazeti, etc. Sobre esta área bem restrita não há que hesitar; trata-se incontestavelmente do Campaniano.

Para CHOFFAT, os jazigos que ficam próximo deste seriam superiores à série Mamarosa- Vale, se a inclinação para o Oeste fosse constante sob as areias consideradas pliocénicas e, neste caso, corresponderiam aos estratos com vegetais das «Camadas salobras de Aveiro» ou da base das «Areias de Esgueira». Contudo apresentava-se-lhe grave objecção: «c'est que les lits à végétaux des couches d'Aveiro sont intercalés dans des lits à faune saumâtre qui n'existent ni à Mira, ni dans la Gandara méridionale».

Ora a verdade é que, em Presa e entre Cabeço e Portomar, se encontram grés com Cyrena cfr. Galloprovincialis e argilas cinzentas, mais ou menos escuras, com restos de plantas, tudo bem semelhante ao que notámos na «Fábrica de Mosaico», como tivemos ocasião de referir. Registe-se ainda que em Cential foram colhidos vegetais absolutamente idênticos aos de Arada. / 205 /

Não é para admirar que haja certa semelhança com os depósitos de Aveiro, pois, como de modo geral os estratos se inclinam simultaneamente para O. e N.O., será natural encontrar os mesmos terrenos numa zona orientada N.E.-S.O.

Os afloramentos que ficam a Sul, da linha Mogofores-Tocha, também se acham isolados por areias; não tendo sido ainda possível verificar a sua posição relativamente ao Turoniano que, por vezes, afIora próximo. Os fósseis colhidos não nos dão indicações precisas, mas tanto os vegetais como os animais Clastes Lusitanicus, Cyrena Marioni, Hydrobia Vasconcellosi, Mytilus cfr. lineatus são idênticos aos que ocorrem no Norte. Por isso consideraremos também todos estes depósitos como aturianos.

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*        *

Camadas arenosas cobrem considerável área que se estende da Ria à Bairrada. São sobretudo possantes em Esgueira e no planalto das Quintãs. Choffat considerava umas como fazendo parte da sua assentada lII «Areias de Esgueira», outras como pliocénicas.

A composição daquela assentada é bastante variável: grés mais ou menos friáveis mesmo do tipo «andoa»; argilas; mas sobretudo areias, sendo algumas caulínicas. Em diversos. pontos vê-se a acção das vagas, noutros estratificação entre cruzada. Pelos calhaus que lhes estão associados confirma-se que não se trata de formação de origem eólica. Como é natural em sedimentos desta natureza, são raríssimos os fósseis.

Em alguns locais, como para sul e noroeste de Esgueira, areias caulínicas de aspecto cretácico sobrepõem-se a outras de tipo pliocénico como considerava CHOFFAT. No planalto de Quintãs há tal continuidade e passagem tão gradual que é impossível notar separação.

No corte a 180 metros a O. do sinal trignométrico do Casal, próximo a Mataduços, que aquele notável geólogo incluiu na sua assentada III, nota-se disposição muito semelhante à que encontrámos em Aveiro. Grés calcário muito duro passa a outro do tipo «andoa» a que se segue argila cinzenta escura com numerosos restos de dicotiledóneas e de Frenelopsis occidentalis, depois argila amarelada e finalmente, com a espessura de 1,50 m areias e calhaus bem acamados, que repousam em discordância sobre os depósitos precedentes.

Aquela espécie vegetal é bem antiga, pois aparece no nosso Eocretácico. Isto conjugado com o tipo do jazigo e com os caracteres petrográficos, leva-nos a considerar tal depósito, pelo menos na parte inferior à camada em discordância, como contemporâneo das camadas salobras de Aveiro. / 206 /

O mesmo sucede com ó grés friável com Cyrena que, em Alumieira a norte de Mataduços, assenta sobre areias grosseiras, amareladas, micáceas, contendo calhaus amigdalóides. Do outro lado do ribeiro esta camada parece continuar-se em outra de areia com calhaus rolados absolutamente idêntica à de Esgueira. Note-se ainda que a altitude do depósito é inferior à da «andoa» da Fonte-do-Senhorio.

O corte considerado típico da assentada III, é o da colina que se encontra na extremidade setentrional do viaduto de Esgueira. Trata-se de depósito mais desagregado; areias amarelas grosseiras tendo na parte superior argila amarela a que se segue areia argilosa muito fina e escura com restos de vegetais, «andoa», e depois novamente areia amarela com bancadinhas de argila clara. A este conjunto sobrepõem-se areias e calhaus rolados como em Aveiro, mas constituindo depósito de grande possança, 8 metros.

No flanco oriental da mesma colina à borda da estrada de Angeja, foram colhidos fósseis vegetais. E de notar que CHOFFAT considerava esta flórula como a mais moderna da região, mas VENCESLAU DE LIMA que a estudou juntamente com as de Berba e Arada concluiu: «Segundo nos informa o sr. Choffat, o jazigo de Berba pertence à parte inferior do complexo flúvio-marinho. Arada deve estar mais ou menos na parte média e os jazigos de Esgueira devem ser os mais superiores... As plantas destas localidades parecem-nos indicar dois níveis:. um homotáxico do que precedentemente estudámos (Mira e Gãndara meridional) e o outro mais antigo»(3). É em Esgueira que ocorrem as espécies mais antigas.

Atendendo aos factos expostos somos de opinião que, na sua quase totalidade, tais depósitos representam uma facies mais grosseiramente detrítica das margas e argilas aturianas.

Em Aveiro a camada arenosa superficial parece que de facto se depositou após uma lacuna. Assenta sobre grés na «Fábrica de Mosaico», mas noutros locais sobre estratos que nos parece serem incontestavelmente superiores àqueles grés. No planalto das Quintãs a areia com curiosos calhaus, em forma de cunha, na parte superior, tem por base argila com restos de vegetais que, no Bonsucesso, se encontram a 9 metros de profundidade. Nas aberturas dos poços segundo ainda nos informou p Dr. Alberto Souto, os depósitos argilosos aparecem a altitudes diferentes, dando a impressão de que extenso depósito argiloso tivesse sido ondeado por movimentos orogénicos ou em parte erodido, antes da deposição das areias.

Pode dar-se o caso de estarmos em presença de depósitos lenticulares descontínuos tão frequentes em tais facies. É possível no entanto que a parte superior da assentada III «Areias de Esgueira» seja de facto bastante mais moderna. Do Daniano como escreveu GIGNOUX, sem o ter justificado? Cenozóica ou / 207 / mesmo antropozóica como chegou a pensar o Dr. Alberto Souto? São perguntas a que não é possível ainda responder-se.

É que não devemos esquecer que a alternância rápida de sedimentos é fenómeno vulgar nos depósitos fluviais, litorais ou de estuário. Que neste último caso os elementos grosseiros se dispõem muitas vezes directamente sobre outros finos. Que a sedimentação feita a pouca profundidade é geralmente descontínua, pois como varia com frequência o movimento da água, muitas vezes esta retoma os detritos para os transportar mais além, alternando-se a sedimentação e a erosão. E ainda que uma mudança na direcção das correntes dá lugar a que os vários estratos possam vir a apresentar entre si ângulos muito variáveis, sem que tenha havido deslocamento posterior.

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Falta considerar os depósitos quartzo-feldspáticos, geralmente designados por «Grés do Buçaco», que, discordantemente, assentam no Paleozóico.

Raros são os fósseis que ali ocorrem. Apenas foram encontrados restos de vegetais que o Marquês de SAPORTA considerou como do Cretácico. VENCESLAU DE LIMA que estudou depois a flórula de S. Pedro-de-Mucela a N. E. de Poiares, chegou à conclusão de que esta era contemporânea das senonianas de Casal-de-Bernardos, Vizo, etc.(3).

Petrograficamente a formação é semelhante a outras que se encontram em Espanha e que correspondem ao Cenozóico.

CHOFFAT perguntava(20), se a analogia das floras do Buçaco e do Senoniano da Gândara não teria por acaso induzido em erro a Saporta quando do seu estudo preliminar, sendo afinal estes grés da mesma idade que os de Salamanca; ou se na verdade serão senonianos, apesar da semelhança dos seus caracteres petrográficos e das condições de jazida com os daquela região espanhola.

Mais tarde os Serviços Geológicos de Portugal encarregaram o Prof. Laurent, do Museu de Marselha, de fazer o estudo que Saporta tinha entre mãos quando faleceu e que Venceslau de Lima não pôde concluir. Comunicou aquele ilustre homem de ciência que no exame prévio desse material, reconhecera espécies vegetais do Cretácico superior, do Eoceno e ainda outras, em dúvida, do Oligoceno.

Infelizmente, não permitiram as condições financeiras daqueles serviços que se completasse tal estudo e se publicasse a respectiva memória. / 208 /

Pensa-se hoje que tais depósitos sejam, pelo menos em parte, eocénicos como os seus similares espanhóis(21). Todavia nada se pode garantir.

A resolução deste problema é de grande importância para o estudo da tectónica de Portugal.

Laboratório Mineralógico e

Geológico da Universidade do Porto 1937.

J. CARRINGTON DA COSTA

 
______________________________________________

(1) −  Adoptaremos a classificação seguinte:

(2) Para evitar fastidiosa enumeração bibliográfica, indicamos a parte histórica da memória de PAULO CHOFFAT, «Recueil de monographies stratigraphiques sur le système Crétacique du Portugal. lI. Le Crétacique supérieur au nord du Tage», publicada em 1900, que contém tudo quanto se escreveu sobre o nosso Neocretácico até 1899.    

(3) Cf. VENCESLAU DE LIMA − Notícia sobre alguns vegetais fósseis da flora senoniana (sensu lato) do solo português − Com. da Com. dos Serv. Geol. de Portugal, tomo IV − Lisboa, 1904.    

(4) Emitiu esta opinião no seu trabalho «Marquez de Saporta. Homenagem à sua memória − Com. da Com. do Serv. Geol. de Portugal, tomo III − Lisboa, 1895. É de notar que CHOFFAT não faz referência a ele, na introdução histórica que anteriormente indicámos.    

(5) −  PAUL CHOFFAT − Subdivision du Sénonien (s. I.) du Portugal − C. R. de l'Acad. des Sc. de París − Abril de 1900.     

(6)PAUL CHOFFAT Les progrès de la connaissance du Crétacique supérieur du Portugal.VIII,e Congr. Geol. Int.-Paris, 1901.     

(7)PAUL CHOFFATRecueil d'études paléontologiques sur la faune crétatique du Portugal. 3.ème série. Mollusques du Sénonien à facies fluvio-marin, Lisboa, 1901.     

(8)Cartas e Cortes geológicos feitos debaixo da direcção de PAUL CHOFFAT. Distritos de Leiria e Coimbra Lisboa, 1927.     

(9)A. de LAPPARTENT − Traité de Géologie − Paris, 1906.       

(10) − EMILE HAUG Traité de Géologie Paris, var. ed.    

(11)ERNEST FLEURY O que pode ler-se na Carta Geológica de Portugal Lisboa, 1922.     

(12) −  ALBERTO SOUTO Apontamentos sobre a geografia da Beira-Litoral. Origens da Ria de Aveiro Aveiro, 1923.   

(13)Esta formação arenosa foi incluída por CHOFFAT na sua assentada III, Areias de Esgueira.

(14)HERMANN LAUTENSACH Morphologische Skizze der Küsten Portugals Hablitationschrit, u. s. w. Giessen, 1928. 

(15) −  MAURICE GIGNOUX Géologie Stratigraphique Paris, 1936. 

(16) −  FORTUNATO AUGUSTO FERREIRA TEMUDO Estudo sobre o estado actual da indústria cerâmica na 2.ª Circunscrição dos Serviços Técnicos da Indústria Lisboa, 1905.   

(17) −  ALBERTO SOUTO O afloramento setentrional do Senoniano salobro entre Quintãs e Aveiro «Labor» n.ºs 10 e 11 A veiro, 1927-28.   

(18) −  Não podemos deixar de consignar aqui os nossos melhores agradecimentos pela assistência desinteressada que nos foi dada pelas gerências e pessoal das várias fábricas de cerâmica, cujos barreiros visitámos. Ficámos especialmente reconhecidos à gerência da «Empresa Cerâmica do Vouga», pelos valiosos elementos que nos forneceu.

O conhecimento profundo que tem desta região o nosso ilustre amigo Dr. Alberto Souto, companheiro dedicado em muitas das excursões geológicas realizadas, foi precioso auxílio.   

(19) − (19) JOHANNES FELIX Korallen aus portugiesischen Senon. Zeitshrift der deutsch. geol. Gesellschaft, Bd. LV-1903. Foi mais tarde traduzido para francês: Polypiers du Sénonien portugais Com. da Com. do Servo Geol. de Portugal, T. V. Lisboa, 1904.    

(20)PAUL CHOFFAT Notícia sobre a carta hypsométrica do Portugal trad. de ALMEIDA COUCEIRO Lisboa, 1907. 

(21)(21) Cf. ERNEST FLEURY Loc. cit. EDUARDO HERNÁNDEZ-PACHECO Síntesis Físíográfica y Geológíca de España Madrid, 1934.    

 

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