SEVER
DO VOUGA
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a antiga «Villa Severi» dos documentos medievais é, como as
Beiras, terra portuguesa de lei nos seus usos e crenças, costumes e
tradições.
Este concelho, apesar de estar incluído na província do Douro, possui
geralmente os mesmos costumes e usanças dos povos beirões.
Quem conhecer alguma coisa das Beiras chega a esta conclusão.
Têm as Beiras, como é fácil verificar, o seu carácter especial e
costumes muito seus.
Ora o tipo destes habitantes de Sever é caracteristicamente o tipo
beirão.
Como eles, também o severense é resignado e forte, caritativo e simples,
tolerante e enérgico, sincero e bom.
Aqui, por enquanto, ainda há paz, caridade e amor −
trilogia esta que nunca se tornou tão necessária como nos tempos que vão
correndo, em que por esse mundo em fora tantas almas e tantas bocas só
exprimem rancores e só pregam guerra, ódio.
Aqui, por enquanto, o homem ainda não é o homo homini lupus de
Hobbes; aqui finalmente ainda o viver social se não metamorfoseou nessa
fementida guerra que faz dos homens uma alcateia de feras.
É por tudo isto que o povo deste concelho é feliz, e é por isso também
que muitos viajados e ausentes relembram com saudade o viver destes
povos com as suas crenças e devoções.
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É laboriosa a gente deste concelho.
Como porém as indústrias não são em grande número, a
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receita para as suas despesas provém para muitos do desenvolvimento
maior ou menor da sua cultura agrícola.
Em diferentes povoações deste concelho são as produções agrícolas
abundantes e variadas.
Freguesias há aqui que vão tirar exclusivamente aos gados e ao amanho da
terra o preciso para a sua alimentação e viver sóbrio.
Pena é que os processos de cultura (modos culturais) sejam ainda
geralmente antiquados, rotineiros.
Pois bem, para que a cultura mais se intensifique, necessárias se tornam leituras e prelecções agrícolas para se aprender a
cultivar e a adubar melhor a terra, de modo que ela dê tudo
quanto pode dar por forma compensadora.
Apesar do atraso agrícola, podemos dizer afoitamente que
o severense é bairrista; ama o progresso da sua terra pela qual
se sacrifica e trabalha. Esforça-se também por possuir, senão
encostas e montes para desbravar, ao menos uma casa sua onde se abrigue e descanse e umas leiras que lhe forneçam, já não digo o cereal para a sua
despesa anual, mas ao menos legumes à farta para a sua alimentação quase vegetariana.
Gosta de deixar a seus filhos o que herdou acrescido de mais alguma coisa; e para isso trabalha continuamente, economiza o que pode, vive sem luxo e até sem conforto e comodidades.
Há coisas encantadoras aqui; por exemplo, a fé e o amor do trabalho.
O verdadeiro severense crê sempre em si
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é bairrista, e em
trabalho não consente que o excedam.
É claro que no meio desta regra geral aparecem as excepções, constituídas por aqueles que vivem despreocupados, folgando, rindo e esbanjando num não te rales contínuo sem
jamais se preocuparem com o dia de amanhã.
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Tiveram estes povos usos e costumes tradicionais, alguns
dos quais ainda perduram em parte.
Um desses costumes que ainda não se perdeu totalmente é
o comunitarismo sob o ponto de vista agrícola.
Mas que é isso de comunitarismo agrário?
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perguntará um ou outro leitor amigo?
É fácil a resposta.
Consiste esse comunitarismo em se tornarem comuns as lides e o viver agrícola. Assim, é comunitarista para pastagens,
estrumes e lenhas a utilização dos baldios, é comunitarista para
alguns a água na rega dos campos, é comunitarista a ceifa dos
cereais, o moinho onde se prepara a farinha, a eira onde se debulha
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o grão e até para muitos o forno onde se coze o pão, e
comunitarista foi (e ainda é aqui ou além) a apascentação dos gados e
tosquia.
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VISTA PARCIAL DE SEVER
DO VOUGA
Ao centro, o edifício dos
Paços do Concelho |
Era o caso dos habitantes de cada lugar que juntavam todos
os seus gados; depois, duas ou três pessoas conduziam-nos dia a
dia ao pasto e no dia seguinte ou no fim de cada semana revezavam-se os pastores até chegar a vez a todos os proprietários
das reses apascentadas para começarem de novo «a roda», como eles lhe chamavam. Com a tosquia sucedia o mesmo: ajudavam
-seuns aos
outros. Era a tradição.
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Este povo é inteligente, tem aptidões, como o provam diferentes pessoas que se têm dedicado às letras, às ciências, às artes e às
indústrias.
Também é morigerado, se bem que às vezes se abuse da bebida como
ordinariamente acontece por esse país fora.
Fala-se regularmente aqui, embora entre as camadas baixas se note de
quando em quando, numa ou noutra palavra, uma
pronúncia defeituosa, geralmente a troca do e pelo a; por exemplo,
tampo em vez de tempo.
Também há quem empregue a 3.ª pessoa pela 1.ª
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Assim, eu tive medo; eu fiz um serviço bom. Um ou outro severense dirá: eu teve medo; eu fez um serviço bom.
Mas isto raramente e em poucas pessoas se nota.
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Nas suas crenças não se desmente a tradição católica, os
sentimentos de fé que nos tornaram grandes, conhecidos, respeitados e admirados em todo o mundo.
É religioso este povo por tradição e convicção. Ouve geralmente a Igreja Católica. Uma provada sua religiosidade nota-se
nas diferentes capelinhas erguidas e com carinho conservadas
nas diferentes povoações deste concelho. Podemos dizer que
não há lugar ou povoação que não tenha o seu santuário e respectivo padroeiro, anualmente festejado em dia próprio.
As diferentes confrarias ou instituições piedosas erectas nas
respectivas freguesias vêm também em abono dos sentimentos
de fé e da religiosidade dos seus habitantes.
Não quero dizer com isto que nas suas crenças não apareça às vezes um bocadinho de ignorância que é preciso combater.
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Há amor de família e espírito caritativo.
Os que estendem a mão à caridade encontram sempre
quem os socorra. E até se abusa neste particular; isto é, dá-se
indistintamente a qualquer pedinte que da porta se aproxima
muitas vezes cheio de saúde, indo nestas circunstâncias a esmola alimentar a ociosidade que é a mãe de todos os vícios.
Seja como for, há espírito caritativo, e desta forma e com o
auxílio duma ou doutra conferência de S. Vicente de Paulo se
supre a fraca assistência.
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Superstições, preconceitos, são felizmente poucos, se bem
que ainda apareça quem respeite o número 13, quem não queira cumprimentos em cruz, quem reconheça alguma virtude a essa planta
venenosa
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o trovisco, quem não queira realizar o
casamento em certo mês ou dias, quem se preocupe com maus
olhados, etc., etc.
Mas isto é nada comparado com outras terras, podendo dizer-se que este povo é até bastante isento de preconceitos e superstições, e sê-lo-á cada vez mais se a educação e instrução
mais e mais se intensificar.
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Instrua-se, e sobretudo eduque-se convenientemente, e contribuir-se-á para a valorização, levantamento e progresso da sociedade, e por conseguinte deste concelho.
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Eis um resumo dos costumes desta terra.
Mais se poderia dizer, se quiséssemos roubar muito espaço
ao «Arquivo».
A seu tempo mostrar-se-á que esta região, a par das suas belezas
naturais, tem uma história brilhante e é rica em lendas, produções,
curiosidades e paisagens.
Pessegueiro do Vouga -Março de 1936.
ABADE JOSÉ LUCIANO LOBO
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