Ao Arquivo Geral da
Universidade de Coimbra pertencem, oferecidas por nós, as 9 cartas que
abaixo transcrevemos, escritas pelo Doutor António Luís de Seabra, que muitos e
relevantes serviços prestou à causa da
Liberdade, que se notabilizou na jurisprudência e que se imortalizou pela organização e redacção do Código Civil Português,
−
código que na opinião do também eminente jurisconsulto José
Dias Ferreira é «uma obra monumental, talvez o primeiro da Europa».
Essas cartas, dirigidas
−
supomos nós, visto que estavam no
seu espólio
−
ao ministro da Justiça do tempo em que foram
escritas, Joaquim António de Aguiar, dizem respeito aos encargos que Seabra, como membro de uma comissão nomeada por
decreto de 8 de Agosto de 1850, tomou sobre si de redigir o
projecto do Código, e das vicissitudes que sofreu antes de poder
concluir a tarefa a que se havia submetido.
Essa comissão composta de três lentes da Universidade de
Coimbra, Vicente Ferrer Neto Paiva, Manuel António Coelho da Rocha e
Joaquim José Pais da Silva, e dele, António Luís de Seabra, juiz da Relação do
Porto, deu início aos trabalhos com
grande entusiasmo. O Decreto que nomeava a comissão, e lhe
cometia o encargo da organização do Código, fundava-se no facto das
Ordenações, das Leis extravagantes e das Provisões que sobre Direito
Civil tinham sido promulgadas, desde o reinado de D. José, estarem em
desarmonia com os costumes e com
os princípios da nova geração trabalhada pelo Constitucionalismo.
Como Seabra houvesse reunido já muitos materiais de absoluta importância para um hipotético Código Civil, que era o sonho dourado
de quantos jurisconsultos viviam naqueles tempos, foi ele o escolhido
para ser o relator do projecto, ficando à comissão o direito de o rever e de o estudar.
/ 100 /
|
Desde que as Cortes de 1822 haviam aberto concurso para
a confecção do Código Civil, com prémios pecuniários, medalhas de honra e nome aclamado aos quatro ventos da popularidade, não se
imagina o caudal de projectos que apareceu,
qual deles o mais extraordinário, todos eles alinhavados sobre
os joelhos e tão híbridos nas suas concepções que nenhuma das quatro
comissões nomeadas desde 1822 a 1850 fora produtiva e todas elas se
dissolviam pela carência de trabalho sério ou aproveitável. |
Visconde de Seabra |
Mas, a necessidade era urgente; e para atender aos óbices que de
toda a parte surgiam
é que a comissão nomeada em
1850, tendo no seu seio 3 lentes da Universidade de Coimbra e um homem
que tinha
já estudos feitos sobre o assunto e atrás de si uma carreira de
magistrado trabalhador e inteligente, deliberou empreender esse
trabalho. Todavia, apesar das matérias acumuladas, dos estudos feitos
pela comissão, somente em 1859 ficou concluído o projecto do Código,
e 6 anos decorridos, em 30 de Agosto de 1865 e a 9 de Novembro do mesmo ano é que foi apresentado em sessão das
Cortes, vindo a ser votado dois anos depois, em 1867, e sancionado pela
Lei de 1 de Julho do mesmo ano que o pôs em vigor
no continente e nas ilhas adjacentes a contar de 22 de Março de 1868.
Quando o Dr. António Luís de Seabra tomou conta da redacção do projecto do Código, já tinha
atrás de si um passado
brilhante. E senão, vejamos o que ele foi antes e o que foi depois:
António Luís de Seabra nasceu a 2 de Dezembro de 1798,
em pleno Oceano Atlântico, a bordo da nau Santa Cruz que de
Lisboa se dirigia para o Rio de Janeiro. Baptizado nesta cidade,
/ 101 / ali viveu até ao ano de 1815 em que, regressado a Portugal, se
matriculou na Universidade de Coimbra, formando-se em leis em 1820.
Entrando na revolução deste ano, foi por prémio nomeado juiz de fora de
Alfândega da Fé, onde tais serviços prestou que o ministro da Justiça,
José da Silva Carvalho, o louvou em Portaria. Como ao governo liberal se
seguisse a reacção absolutista de 1823, Seabra pediu a demissão e
retirou-se à casa paterna de Vila Flor, onde se dedicou a trabalhos
literários de grande envergadura, na tradução das Sátiras e Epístolas
de Quinto Horácio Flaco e nos estudos de retórica e filosofia racional e
moral.
Em 1825 retomou a carreira da magistratura com a nomeação de juiz de
fora em Montemor-o-Velho. Ressurgindo a revolução liberal de 1828, os
seus sentimentos levaram-no a organizar um corpo de cavalaria que ele
próprio comandou. Assinalou-se no ataque da Cruz de Morouços, defendendo
a margem
direita do Mondego e combatendo com grande denodo na acção do MarneI.
Como a revolução não triunfasse, fugiu para a Galiza com as tropas
liberais, sendo por esse facto processado e sequestrados todos os seus
bens. No estrangeiro se exilou até
ao ano de 1833. Voltando a Portugal neste ano foi nomeado
procurador régio junto da Relação de Castelo Branco e ao mesmo tempo
exerceu o cargo de corregedor interino de Alcobaça. Em 1834 foi pela
primeira vez eleito deputado por Trás-os-Montes. Em 1836, novamente deputado e, nas suas horas de ócio, redactor do
jornal político
−
O Independente
−
que ele havia fundado, para mais
facilmente poder defender as suas ideias liberais, que as tinha, puras e
inflexíveis, aprendidas junto dos grandes espíritos franceses, durante o
seu exílio. Em 1838 novamente
deputado por Penafiel e depois pelo Porto.
Quando se deu a revolução no
Porto, em 1846, nela tomou uma parte muito
activa e tão activa que o fez sobraçar a pasta de ministro. Tão
exuberantes provas deu da sua administração
que foi novamente nomeado ministro da Justiça em 1851 pela Regeneração e
em 1868 também da Justiça pela Janeirinha.
Destas três fases da sua vida ministerial, a mais notável foi a
primeira, em 1846. Com a sua eloquência persuasiva e na sua
qualidade de ministro do Reino, a quem competia resolver os
casos mais difíceis de administração, para a paz e tranquilidade
dos espíritos sobre-excitados por tantas rebeldias que desde 1820
vinham atormentando a sociedade portuguesa, conseguiu que
muitos e distintos oficiais miguelistas viessem sem condições
unir-se à Junta do Porto.
Nos intervalos do exercício dos seus ministérios, foi deputado por Aveiro em 1851. Em 1852 por Moncorvo. Em 1858
novamente por Aveiro. Em 1861 por Anadia. Em 1862 foi nomeado presidente da Câmara dos Deputados, e depois de
ter sido elevado ao pariato, presidente da Câmara dos Pares.
/ 102 /
Em 1865 foi agraciado com a mercê do título de Visconde de
Seabra.
Em 1866 exerceu o cargo de reitor da Universidade; deixando
este lugar para ser nomeado ministro da Justiça. Foi o
seu último ministério, não porque a morte o surpreendesse, pois
só veio a falecer no ano de 1893, mas porque preferiu descansar a sua
vida agitada, rememorando o seu brilhante passado e
dedicar-se à revisão e publicação dos seus estudos literários na
quietude do seu lugar de juiz do Supremo Tribunal de Justiça, onde a sua
palavra e o seu conselho eram ouvidos com respeito
−
com o respeito devido ao organizador do Código Civil, lei
fundamental que viera abrir novos horizontes à jurisprudência
portuguesa.
E, concluindo o seu curriculum vitae, leiamos as cartas que
o Arquivo Geral da Universidade de Coimbra guarda preciosamente. Elas referem-se aos trabalhos tendentes à redacção do
projecto do Código e às canseiras que esses trabalhos lhe acarretaram.
Em 20 anos destes trabalhos forçados, devia ter escrito
mais, mas só estas foram encontradas no espólio de Joaquim
António de Aguiar; é de crer que a outros ministros da Justiça ele deverá ter escrito, mas essa correspondência perdeu-se
nas liquidações desbaratadas dos espólios.
Ill.mo e Ex.mo Snr.
Não tenho, desde que estive em Coimbra, importonado a V.ª Ex.cia com as
m.as cartas p.ª lhe não tirar o tempo, q tão necessario lhe é
p.ª os
importantes affazeres do Ministerio, q. tem a seu cargo. Agora porem julgo do
meu dever participar-lhe que nos primeiros dias de Dezembro, partirei
p.ª
Coimbra, p.ª se dar a ultima rivizão ao Plano Geral do Codigo Civil que
será em seguida remettido a V.ª Ex.cia
−
com a exposição dos motivos, que
escrevi p.ª sua justificação e cabal intelligencia, Ahi verá V. Ex.cia
as difficuldades com que tenho luttado e que não tenho trabalhado pouco
−
mormente attendendo á penuria de subsidios leterarios, em que me tenho
visto.
Entendi igualm.te que não me devia aproveitar da dispensa do serviço do
Tribunal, p.ª que se não dissesse que era esse o meu unico fim encarregando-me desta commissão. Não tenho tambem instado pelo pagam.to da
prestação em que falIei a V.ª Ex.cia, apesar da consideravel despeza que
tenho feito com encomendas de livros que tenho mandado vir de França,
não só porque desejava primeiro justificalla com a aprezentação de uma
boa p.te do meu trabalho, mas tambem porque nada me repugna tanto como
parecer interesseiro.
Agora
tenho a prevenir a V.ª Ex.cia que sendo o Plano geral que tracei, e
a exposição dos seus motivos, um trabalho mais scientifico que
legislativo, o
meu desejo é que este se publique desde logo. O publico o poderá avaliar
com antecipação e eu aproveitar com as censuras que provocar: porisso
q. o meu unico fim é que elIe seja o mais perfeito q. seja possivel.
De V.ª Ex.cia a suas ordens a q.m se presa de ser de
V.ª Ex.cia
Porto 29 de Am.º e Cr.do m.to
obg.do
Nov. 1850 Antonio Luís de Seabra
/ 103 /
Ill.mo e Ex.mo Snr.
Tenho
presente a carta de V.ª Ex.cia de 8, que já recebi nesta aldea, de
volta de Coimbra, depois de concluida a revisão do meu Plano.
O Presidente da Commissão
terá já participado a V.ª Ex.cia o resultado do
nosso trabalho
−
O meu plano foi aprovado depois de uma brava discossão de
oito dias
−
V.ª Ex.cia pode imaginar como as cousas se passarião entre tres
doutores de capello, e um simples juiz. Não digo que houvesse má vontade
em nenhum dos revisores, creio m.mo que a não havia
−
mas o orgulho, e
amor proprio da classe devia necessariamente apparecer
−
e é bem de ver
que o meu Plano, se ficou em pé, é porque na realidade não pôde ser
derribado. Fazendo-se apenas ligeiras modificações na redacção e desenvolvendo-se mais algumas coisas
−
no que eu convim de bom grado
−
por
ser conveniente mostrar que não nos escapou especie alguma juridica.
Direi comtudo
a V.ª Ex.cia que quando a Commissão não pereceo na
discossão do Plano
−
materia de sua natureza abstracta e susceptivel de
ser
olhada por m.tas e differentes faces
−
bem pode esperar de levar por
diante, athé ao cabo, os seus trabalhos em boa harmonia: e é em obsequio
desta boa harmonia que só confidencialm.te commonico a V.ª Ex.cia
estas particularidades. O Plano está descutido e approvado
−
mas não póde ser
remetido a V.ª Ex.cia sem o Relatorio, que o faça bem comprehender.
Este Relatorio é um livro
−
e não piqueno
−
e é indispensavel que nos fique
uma copia, e feita á m.ª vista. Alem disso era impossivel fechar o Relatorio sem a approvação deffinitiva do Plano
−
que podia ser
alterado
−
É nisto que me occupo incessantem.te
e com o maior desejo de habilitar a V.ª Ex.cia p.ª poder
mencionar o nosso trabalho no seu Relatorio com perfeito conhecim.to
de causa.
Não se esqueça pois V.ª Ex.cia do amanuense (é o pretendente da Igreja
de Ílhavo): e eu espero que fará por elle tudo o que for possivel.
Disponha
V.ª Ex.cia de q.m m.to se presa de ser
de V.ª Ex.cia
S. Lourenço do
Bairro 11 de Fevr. 18S1 V.or
m.tº att.º e am.º e Cr.do obg.do
Antonio Luís de Seabra
Ill.mo e Ex.mo Snr.
Depois que escrevi no correio passado a
V.ª Ex.cia
−
reflecti que para que
V.ª Ex.cia não demore tanto o seu Relatario á espera da concluzão do
meu trabalho, será talvez mais conveniente que eu lhe communique desde
já o Plano, que está approvado, e a parte da m.ª exposição que já está prompta.
Eu desejo que o Plano vá acompanhado da exposição não só porque assim
é necessario p.ª que seja bem comprehendido, mas p.ª que se veja que
esse quadro que parece tão simples e natural, foi o resultado de immenso
estudo e trabalho.
Mas V.ª Ex.cia, não está no caso da maior
pte. dos leitores
−
e decerto á
vista do Plano, e da parte da exposição que posso mandar-lhe já, fará
completo juizo do seu merito ou demerito. Saiba mais V.ª Ex.cia que me
tenho visto
nos maiores apuros e embaraços por falta de subsidios indispensaveis
−
O
governo não me tem ajudado. Os mesmos livros de Direito hespanhol que
pedi ao Snr. Avila me requesitasse de Hespª não apparecerão ainda, e os
que eu tenho pessoalmente solicitado ainda não vierão todos
−
e será
imperdoavel que mostre ignorancia do que se tem escripto na materia. Por
outro lado, estou já empenhado por via do tal Codigo, e não posso com o
meu pequeno ordenado e mal pago sopprir a tudo.
Em uma
palavra se V.ª Ex.cia quiser eu vou mandar-lhe, logo que me faça
/ 104 /
saber a sua vontade, o que está prompto
−
esperando de
V.ª Ex.cia, que o
não largue da sua mão sem que se lhe junte o que falta.
Disponha
V.ª Ex.cia de qm. é de V.ª Ex.cia por
tantos motivos,
S. Lourenço do Bairro Vor. Cdo. e
amº. obgmo.
15 de Fevr. 1851
Antonio Luís de Seabra
Ill.mo e Ex.mo Snr.
Tenho a honra de remetter
a V. E.ª o plano geral do Codigo Civil,
acompanhado da parte do relatario, que athé este momento se pôde
apromptar.
E como falta ainda o Capitulo, em que se explica o plano geral, e se faz
ver a rasão de ordem, não sómente das devisões geraes, mas ainda das
suas subdivisões, pareceo-me conveniente offerecer desde já a consideração de V. E.ª algumas observações relativas a este objecto.
Na confecção deste plano procurei
−
1º
−
que elle fosse concebido de modo, que comprehendesse toda a materia do Direito Civil; 2.º que as especes do
Direito Civil se sucedessem de modo, que as mais gerais precedessem as
menos geraes, e se evitassem repetições escusadas, e sempre perigosas em
Legislação: 3.º, evitar, quanto possivel, classificações e numenclaturas
scientificas de menos facil comprehensão para as intelligencias ordinarias,
visto
que o Codigo não é feito só para os Letrados, mas para todo o povo em
geral.
Estas condições, em quanto a mim indispensaveis, não apparecem em nenhum dos Systemas athé agora imaginados, ou postos em pratica, como ficará demonstrado no meu relatario, e por isso tive de seguir uma nova
estrada.
Depois de larga meditação e de varias ensaios e tentativas, assentei
finalmente no plano, que proponho, que, a meu ver, é por extremo simples e
facil. O seu pensamento é o seguinte:
Todo o Direito importa uma faculdade, um goso, uma propriedade. Esta
é a sua feição dominante, e caracteristica: o objecto do Direito, e as
obrigações correlativas, apparecem na verdade conjunctamente, mas o seu fundamento primordial é sem duvida a subjectividade humana, por isso que todo
o Direito, como já dizia Hermógenes no Digesto, foi estabelecido por
causa do homem.
O meu plano devia pois ser fundado no principio subjectivo, como entendem os mais celebres Jurisconsultos modernos.
Considerado assim o Direito, a primeira ideia, que naturalmente se offerece, é saber, quaes são os individuos susceptiveis de Direitos. Nesta
parte
são conformes quazi todos os Codigos e tractados de Jurisprudencia, começando por
occupar-se das pessoas, posto que nem sempre debaixo do ponto
de vista puramente Civil, em que aqui as considerarmos. É o objecto da
minha primeira parte.
Depois de reconhecermos, quem são os individuos susceptiveis de ter e
exercer Direitos, a idea immediata, que se nos appresenta, é sem duvida
a da acquisição desses Direitos
−
modos de adquirir. Nesta parte a ordem
natural
das ideias tem sido quazi sempre atropelada nos Codigos e Tractados modernos pelos preconceitos do Direito Romano. Ora esta acquisição de Direitos não pode ter lugar senão de 3. modos
−
ou por facto proprio do
homem
somente
−
ou por facto proprio e de outrem conjunctamente
−
ou por facto de
outrem sómente. Esta classificação natural ,obvia, e simples abrange
todos
os modos possíveis de adquirir. É o objecto da minha segunda parte.
Em seguida restava saber, como poderia o homem gosar dos Direitos
adquiridos, ou do q. por outras palavras, se chama Direito de
propriedade.
É o
objecto da minha terceira parte.
Mas ha situações na vida social, em que o individuo se sente modificado
tanto na sua capacidade jurídica, como no exercício do seu Direito de
adquirir
/ 105 / e gozar da
propriedade; e comprehendendo estas restricções todos os
ramos precedentes, era neste lugar, que devião ser collocados. É o
objecto
da minha quarta parte.
Depois de sabermos, quem póde ter, adquirir e gozar Direitos com mais ou menos latitude, restava averiguar, de que modo poderião ser
sustentados e
deffendidos esses Direitos contra quaesquer tentativas de violação ou
usurpação. É materia da minha quinta parte, inscripta
−
das garantias.
Neste Systema não ha espece alguma de Direito, que não tenha o seu
assento designado. Elle é simples
− e claro, porque procede da ordem
logica e natural
das ideias, e tem a vantagem de tornar inuteis as numenclaturas
privativas
da sciencia juridica.
Nas subdivisões procurei seguir igualmente a ordem logica da successão das ideias, caminhando do geral para o particular, da regra para a sua lemitação. E nos casos (que são frequentes em Direito), em que certas
especes podião caber igualmente em diversas partes, tive sempre em vista o
principio,
judiciosamente estabelecido por Leybnitz, a saber, que nesses casos a espece deve ser collocada no lugar, em que apparece a razão efficiente da
disposição legal.
Previno comtudo a V. Exª, que o quadro, que appresento, só pode ser
considerado como deffinitivo em quanto ás grandes devisões e
subdivisões: e V. Ex.ª comprehenderá facilmente, como o desenvolvimento especial das materias póde tornar necessarias algumas alterações accidentaes. De mais
não
era posivel, que na redacção deste plano tivesse presente todo o
Direito,
de forma que me não escapasse espece alguma. Pelo contrario tenho a certeza, de que algumas se deverão accrescentar, assim como ha materias,
que
eu aqui apenas indico, e que tem de ser depois desenvolvidas.
Tenho ainda a accrescentar uma nova Consideração, e vem a ser, que,
sendo este Codigo redigido por um methodo logico, racional, e ao mesmo
tempo claro e popular, poderemos evitar o grande inconveniente, que todos
os Sabios tem notado, em que o systema doutrinal e de ensino esteja em
desacôrdo com o systema pratico e legal, inconveniente tão grave, que
obrigou
o Governo Francez a prohibir, que no ensino e exposição do Direito se
seguisse outra ordem, que não fosse a do Codigo Napoleão. Os nossos proprios Estatutos o reconhecerão tambem, dando a preferencia ao methodo
legal, não obstante os seus reconhecidos defeitos.
Penso que estas indicações serão bastantes para que V. E.ª possa ajuisar
com exactidão do merito ou demerito do meu plano, em quanto lhe não
remetto o complemento do meu relatorio.
Deos Guarde a V. E.ª m.tos annos.
S. Lourenço do Bairro, 25 de Fevereiro de 1851.
O Redactor do Codigo Civil
Antonio Luís de Seabra
Ill.mo e Ex.mo Snr.
Tenho presente a ultima carta de
V.ª Ex.cia que é mais uma prova da sua
bondade e benevolencia, e um novo estimulo que vem animar-me no desempenho da laboriosa. tarefa em que me acho empenhado. De officio peço
hoje a V.ª Ex.cia me faça enviar a obra de Teriet, que
indico. V.ª Ex.cia
comprehende perfeitamen.te q. o nosso codigo não deve ficar atraz de
nenhum dos
conhecidos athé hoje
−
e que p.ª o conseguir se não deve poupar meio
algum,
mormente não custando isso despesa de consideração
−
Demais estes livros poderão depois collocar-se na bibliotheca publica
−
que tanto carece
de
obras modernas, e particularmte deste genero
− o que peço mais a
V.ª Ex.cia p.ª o adiantamento do meu trabalho, é a prompta remessa, que poderá ser
/ 106 /
feita pelo primeiro Vapor. Parece-me que com as obras que ja pedi, e
esta
−
terei concluido
as m.as requisições
−
porq. m.tas outras que precisava
mandei
vir á m.ª custa.
Eu desejava m.to que durante o Ministerio
de V.ª Ex.cia se concluisse
este
trabalho
−
e por isso trabalho talvez mais do que realm.te posso.
Disponha V.ª Ex.cia de q.m é por tantos motivos de
V.ª Ex.cia
Porto 25 de
V.or am.º e Crdo m.to obg.do
Mç.º de 1851.
Antonio Luís de Seabra
Ill.mo e Ex.mo Snr.
No correio passado recebi a carta de
V.ª Ex.cia de 12, que é um novo incentivo, que vem animar-me na laboriosa tarefa em que me acho empenhado.
A demora do resto do Relatorio pende unicam.te dos livros que
requisitei
− e como
V.ª Ex.cia já ahi tem os Codigos Hespanhoes peço-lhe
que
mos remetta p.ª esta cidade pelo pr.º vapor
−
e não pª Coimbra, como me annuncia.
Não tornei a falIar
a V.ª Ex.cia na pretenção do meu filho
− bem confiado
na boa vontade de V.ª Ex.cia
−
Ser-me-ha licito ter ainda algumas
esperanças?
Eu nada
tenho dito a V.ª Ex.cia contra os pr.os candidatos
−
mas é facto
publico
que um foi o chefe do scisma neste bispado
−
e o outro servio de capitão
mor e foi guerrilheiro no tempo do Miguel
−
e não admira que o pr.º fosse tão bem informado
−
porq. nem foi examinado.
O
concurso p.ª elIe foi uma cerimonia inter-amicos. Demais eu sei que
tem a decedida protecção do Snr. J.º Bernardo Cabral, que conta com elIe p.ª as proximas eleições. Eu teria emfim
desanimado de todo se V.ª Ex.cia me não tivesse dado tantas provas de benevolencia, pelas quais me confesso
sempre de V.ª Ex.cia
m.º att.º V.or e Cr.do obg.mo
Porto 21 de Março
1851 Antonio
Luís de Seabra
Ill.mo e Ex.mo Snr.
Tendo sido encarregado, por Decreto de oito de Agosto do anno proximo
preterito, da redacção do Codigo Civil, em q. me tenho incessantem.te occupado
−
e havendo requesitado,
pela Repartição a que V.ª Ex.cia preside,
um exemplar do Codigo Dinamarquez, e o jornal da Legislação
− a
Themis
−
que me erão indispensaveis p.ª a continuação do meu trabalho, e
que por essa mesma Repartição farão reclamados de França, segundo me foi
participado
em Portaria de dez de Dezembro ultimo
−
lembro a
V.ª Ex.cia, que m.to conviria, que me fossem remettidos com a possivel brevidade, tendo chegado,
afim de poder concluir o Relatorio que deve acompanhar o Plano Geral, que
já tive a honra de enviar a essa mesma Repartição.
Deus Guarde a V.ª Ex.cia m.tos annos. Porto 20 de Junho de 1851.
O encarregado da redacção do Codigo Civil
Antonio Luís de Seabra
Ex.mo Am.º e Snr.
Ha dias lhe escrevi em favor de um disgracado
− m.to estimarei que o possa
attender.
Hoje lhe escrevo de officio a requesitar uns miseraveis livros que me
/ 107 /
são indispensaveis p.ª concluir o meu Projecto do Codigo, e que desespero
de obter sem a cooperação do meu Am.º
A requesição da
1ª obra, que indico, já foi feita no Menisterio do
Magalhães
−
mas tive em resposta, no Menisterio do Soure
−
que se
respondera de Paris que a Themis
−
era um jornal, q tinha acabado. Era
essa uma novidade
que eu m.mo p.ª lá tinha enviado
−
mas eu não pedia o jornal, que acabou,
mas a obra reimpressa e vulgar no mercado. Assim anda tudo
− a
resposta
nunca vem pelo m.mo corr.º
Emq.º às outras obras
−
bem pode
imaginar V.ª Ex.cia que seria
indecoroso que concluissemos o nosso trabalho sem ver a ultima obra dos
nossos visinhos
− Talvez virá corrigir algumas inadvertencias
minhas
−
talvez será censurada por mim
−
quem
sabe? Em todo o caso nos é que
ganhamos
−
ou
aproveitando o bom, ou fazendo melhor.
O negocio é urgente
−
o meu plano não depende de outra cousa
p.ª concluir-se
−
e m.to bom seria que na minha chegada a Lx.ª já lá
estivessem esses livros
−
p.ª se começar sem demora a impressão
do meu plano. Não faça V.ª Ex.cia pouco caso disto. O maior beneficio que hoje poderia fazer um
governo a este paiz seria sem duvida a promulgação de um Codigo Civil
−
e
eu pela minha parte hei-de provar que isto é possivel. Eu falIei na m.ª
ida a Lx.ª porq me parece que os meus vesinhos me não reservarão os seus
votos nas proximas eleições.
Tenha saude e venturas, e disponha do seu
S. Lourenço do Bairro Velho
am.º m.to obg.do
24 de 8.bro 1851.
Antonio Luís de Seabra
Ex.mo Am.º e Snr.
O estado dos trabalhos da commissão do Codigo, de que me acho encarregado,
e que V.ª Ex.cia deseja saber
−
é o seguinte.
Está prompta a primeira e segunda parte, que comprehendem,
como V.ª Ex.cia poderá ver do meu relatorio (1852) a legislação relactiva á
capacidade
juridica (Pessoas) e meios de adquerir
−
Motivos de força maior me tem
impedido de adiantar mais o meu trabalho. Uma grave molestia me reteve tres mezes de cama, e me deixou por mto. tempo incapaz de grande applicação.
Agora porem vou proseguir com a possivel deligencia, e espero, que
d'entre
em poucos mezes poderei dar, por concluido o meu trabalho.
Deus Guarde a V.ª Ex.cia m.tos annos
S. Lourenço 4 de Março de 1855
Antonio Luís de Seabra
*
*
*
Que prémio teve o Dr. António
Luís de Seabra pelo trabalho exaustivo de 20 anos, já na redacção do projecto, já na luta
da discussão com os membros das comissões marcadas para o
seu estudo e crítica, já na elucidação dos pontos sobre os
quais incidira o debate parlamentar?
Nenhum. Enquanto trabalhava na redacção do projecto, recebia por mês 50 mil reis, dos quais 25 mil representavam a compensação dos emolumentos que
ele perdia de juiz da Relação
/ 108 /
do Porto, e os outros 25 mil eram empregados em despesas
materiais necessárias em trabalhos desta natureza.
E não recebeu por muito tempo essa quantia, porque as
más línguas suscitaram a suspeita de que ele não apressaria a conclusão do trabalho, só para receber por tempo infinito
esse
subsídio. Calou-se a maledicência, logo que ele fez saber que
nada receberia enquanto o trabalho não estivesse concluído, e só no fim é que pediu o pagamento de 5 contos de reis em dívida
e mais 3 contos para pagamento das tais despesas miúdas. E, oh
irrisão da sorte, recebeu essas quantias depois dos homens políticos daquele tempo terem discutido nas Câmaras se os 3 contos eram na verdade para pagamento de despesas ou para o
seu bolsinha particular!
Prémios não teve, sessões solenes não presenciou, elogios
apoteóticos não ouviu, e a única recompensa que lhe tributaram
foi a concessão do título de visconde, do qual ainda teve de pagar os direitos de mercê.
E nem ao menos ficou registado nas actas das Cortes Gerais um voto de gratidão nacional por tão ímprobo e honrosíssimo trabalho!!
JOÃO JARDIM DE VILHENA
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