Com invulgar e justa elevação noticiou a Imprensa nacional o passamento
de Jaime de Magalhães Lima, reflectindo unanimemente nos seus
comentários a grande perda que o Pensamento português acabava de sofrer.
Pela delicadeza de conceitos, brilho literário e rigor de observação, a
crónica que lhe dedicou em "O Comércio do Porto" o Prof. Dr. Agostinho
de Campos constitui notável página de crítica que não deve ficar apenas
nas folhas efémeras dum jornal.
Com autorização de Sua Excelência a transcreve daquele diário o ARQUIVO
DO DISTRITO DE AVEIRO.
A VIDA dos homens notáveis fala aos outros homens, é a seu modo
linguagem. A de alguns sublima-se em estilo, e há vidas que são poemas.
Certos homens vivem poeticamente sem terem escrito nunca uma só
linha métrica. Por outro lado, muitos nos legaram poemas e poemas, tendo
transitado pelo mundo em existências prosaicas. De um poeta, francês e
não dos menores, me estou lembrando! que foi na sua vida vivida
assassino e ladrão.
E os Santos? Porque o mundo é sempre o mesmo e sempre vário, alguns
vivem connosco, são do nosso tempo e da
/ 47 / nossa roda,
falamos-lhes, escrevemos-lhes, visitamo-los ou passeamos com eles. E,
apesar de tudo isto, nunca verdadeiramente convivemos, se esta palavra
se dissecar e experimentar com o seu pleno significado de com-viver.
Este conviver é impossível, porque só há duas formas santas de viver,
que são viver, ou acima, ou à margem da vida. Nós, pecadores,
atravessamos o Vale de Lágrimas, assim chamado por o ser de Maldades,
encharcados, mergulhados, se não sepultados na crassidão da
/ 48 /
existência. Os Justos deslizam por ela, nem de outra maneira o seriam,
ou poderiam ser.
Exerce-se a santidade neste mundo, mas é por si um mundo − e não o
nosso. E podemos ter no Santo um «amigo íntimo», mas iludimo-nos sobre a
força e a propriedade deste adjectivo: a verdade é que o nosso santo
amigo «íntimo» vive, na sua vida real, ou profunda, a longa distância de
nós.
|
|
|
|
Um
dos últimos retratos do Dr. Jaime de Magalhães Lima. |
|
Não é da jurisdição de quem isto escreve canonizar ninguém; mas
pegamos na pena para prestar uma pobre homenagem à memória querida de
Jaime de Magalhães Lima − e o desabafo que primeiro nos saiu cá de
dentro, no seu primeiro jacto mais sentido que pensado, não pôde
exprimir-se por palavras diferentes das que aí ficam acima.
Serão elas talvez oportunas, pois em todas as notícias referentes
ao falecimento daquele Mestre, ou na transcrição dos belos discursos
proferidos no seu funeral pelos Drs. Alberto Souto e Coelho de
Magalhães, as duas palavras Santo e Justo surgem e se repetem como
lugares-comuns inevitáveis para definir o escritor eminente e o homem
que tão alto se elevou na sua mansa humildade.
Ilustre, assíduo e raro nas nossas Letras foi o pensador, o
crítico, o místico, o esteta e o poeta que, revelando-se em tantos
livros coalhados de ideias, espessos de meditação, alados de nobreza
moral e mental, para sempre ficará na história da cultura nacional como
exemplo de seriedade, sagacidade, subtileza e profundeza. Mas a sua vida
belíssima, no momento em que se apaga, ofusca as suas belas obras. Sonho
de perfeição se chama uma destas, e não haverá talvez melhor letreiro
para a sua sepultura.
Certos homens reconciliam-nos com os homens, e isto alivia e
consola de sermos e vermos homens. E afinal, para que se não esvaia o
conforto, convir-nos-á talvez esquecer por um momento que esse Homem
fugiu aos homens, refugiando-se junto das flores ou das árvores; e que,
ao convívio directo com os seus pares em cultura, preferiu a intimidade
com o campo, e o arvoredo, e a montanha, e as almas simples cujos
pecados não pensados nem sábios, cuja própria insuficiência humana se
confunde com a vegetação, inocente ainda quando espinhosa ou de má
sombra.
Vai em dez anos escrevi, para a "Ilustração Moderna", de
Marques de Abreu, certas palavras destinadas a acompanhar vários belos
retratos do anacoreta letrado que repousa agora Na paz do Senhor.
Algumas dessas voltam à tona:
Dizem que há árvores que envenenam os homens. Talvez. Mas o prazer
de quase todas é darem-nos a frescura da sombra e o calor da lenha, a
beleza da flor e o sabor do fruto. Com a
/ 49 /
[Vol lI − N.º 5 − 1936] colaboração maldosa da mão humana é que se fabricam, de troncos e
ramos inocentes, a cruz, a forca e o cacete. Vedes aqueles penhascos sem
caridade nem sorriso? De outros iguais fez Jaime de Magalhães Lima, em
dezenas de anos de amorosa paciência, matas extensas e frondosas, música
para os ouvidos, pintura para os olhos, carícia das almas, saúde para os
peitos, exemplo a sôfregos e apressados, poética herança, riqueza
puríssima. Um Cincinato que não pôde ser César? Não: um S. Francisco de
Assis, que se abraçou à Irmã Árvore, porque o irmão Homem não sentiu nem
desejou o seu abraço.
Morto o Justo, compreenderá o irmão Homem a lição da sua vida? Lição
igualmente rica, por qualquer dos seus três aspectos principais.
Amou as Letras e serviu-as como poucos, e principalmente por amor
da Grei a que pertencia, embora o seu próprio tipo físico o aparentasse
talvez mais com outras
−
se é que não provinha de atavismos que nele tivessem feito
regressar e reviver um etnos mais antigo e mais puro. Alguém a
seu tempo estudará com respeito e proveito a significação e o alcance
nacional do seu labor literário.
Amou as Árvores, criou-as, embevecia-se na contemplação da sua
livre e natural integridade e deixava-as expandir-se com a majestosa
força e beleza de que Deus as dotou. À sua volta
(e sobretudo desde que há trinta anos se instituiu entre nós a Festa
da Árvore) ecoava permanentemente o ruir dos velhos troncos e o
esgalhar das ramagens magníficas, para que a poda miserável e assassina
reduzisse os colossos às proporções mesquinhas dos homens invejosos da
grandeza de Deus e das suas obras mais belas. Algum dia, sob o patrocínio
do nome e da Memória de Jaime de Magalhães Lima, a Árvore será defendida
e amada por outros homens mais civilizados que os de hoje
−
estes que falam em turismo ou nas belezas naturais da Pátria, e
mostram ao viajante, em vez de alamedas, feijoais com os seus tutores
mais grossos que a planta.
Morreu o Justo, que amou o povo e o povo tratava como Santo. Se
outros o esquecessem, esse o guardaria, com a lenda perdurável, na sua
espontânea e incorruptível gratidão.
AGOSTINHO DE CAMPOS |