os estudos sobre o complexo e discutido tribunal da
Inquisição, no nosso
país e, duma maneira geral, em todos aqueles onde o terrível Instituto exerceu
a sua actividade, vêm, de há multo, merecendo a
mais cuidadosa atenção de quantos se dedicam a carrear materiais para o
melhor conhecimento da História Pátria; a eles se têm entregado
investigadores de vários ramos da História, e pode dizer-se que a todos
o vasto manancial tem fornecido abundantes elementos de singular valia.
Entre nós, por vezes nele forrageou o admirável génio crítico de CAMILO,
de ordinário tão bem documentado, extraindo, de informações e de
processos do omnipotente tribunal, curioso assunto para vários dos seus
empolgantes entrechos e notas
históricas; HERCULANO, AIRES DE CAMPOS, CUNHA RIVARA, MARTINS
DE CARVALHO, BRAAMCAMP FREIRE, LÚCIO DE AZEVEDO, ANTÓNIO BAIÃO, PEDRO DE
AZEVEDO, JORDÃO DE FREITAS, VERGÍLIO CORREIA,
e quantos mais, notável colheita realizaram mergulhando nos
velhos papéis da Inquisição, vindo aclarar, muitas vezes, mais que um
interessante e obscuro problema nacional. Como esboço de catálogo local,
merece ainda particular menção a curiosa série publicada no bi-semanário
A Voz da Justiça pelo Sr. Dr. MESQUITA DE FIGUEIREDO, interessando
especialmente o actual concelho da Figueira da Foz.
Compreende-se bem a razão do grande valor que a inigualável fonte de
informação possui: instituída, como é sabido, por D. João III, a
Inquisição portuguesa viveu de 1536-bula de − 23 de Maio − até à
Constituição de 1820, abrangendo, portanto, um enorme período da vida do
país; pela sua própria
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292 /
natureza, ela conhecia de tudo e, a pretexto de depuração da Fé e dos costumes
− de real necessidade, aliás − por ela era devassado todo o viver
íntimo da Nação, rara sendo a ocorrência
pública ou familiar, que no Santo Ofício não fosse encontrar o seu
último eco e registo.
Para o funcionamento da sua mecânica regimentar, tornavam-se mister diligências variadíssimas, informações levadas a
extrema minúcia; e tudo era metodicamente reduzido a escrito,
organizando-se processos cujo número hoje, embora bastante desfalcado
já, se conta, mesmo assim, por muitos milhares: − perto de 40.000
processos [de culpa] restam para darem testemunho de cenas medonhas, de atrocidades sem exemplo, de
longas agonias, declarava HERCULANO no prefácio da sua História do Estabelecimento da Inquisição em Portugal; pessoalmente
tivemos nós ensejo de verificar, no Arquivo Nacional da Torre
do Tombo, que esse elevado número não representa exagero;
mais do que outra qualquer razão, é até essa circunstância
numérica que tem amortecido o necessário ânimo para encetar
um catálogo geral da colecção, metódico e ordenado de forma a
permitir ao leitor o rendimento prático que hoje se não
dispensa nesses auxiliares de todo o trabalho de investigação(1).
Chegava o Santo Ofício a toda a parte, por todo o país a
sua acção se infiltrava; agentes seus o informavam de todas as
regiões, das mais recônditas até. Para se obter dele mais rendoso
funcionamento, descentralizaram-se os seus serviços dividindo-se
o continente em três inquisições com sede em Coimbra, Lisboa
e Évora. O Conselho Geral do Santo Ofício coordenava a acção
de todas três.
Ora se desta forma a Nação inteira era devassada − e nestas generalidades preliminares limitámo-nos a resumir
o que pela investigação está fixado acerca de tão importante assunto −
é
lícito, aos ilhavenses que desejam conhecer um pouco da vida
passada da sua terra e se não contentam com antigas fábulas
báquicas nem com modernas maviosidades bandolinísticas, perguntar também:
terá Ílhavo conhecido os rigores do odiado tribunal, ou, pelo menos, a vigilância dos seus agentes?
Deixemos, porque não vem ao caso, a reabilitação do
Santo Ofício ultimamente proposta; é problema cuja transcendência nada tem que ver com esta breve notícia de alguns ilhavenses familiares do Santo Ofício da
Inquisição.
Há bons treze anos − em 1922 − organizei, a pedido instante
da Comissão Municipal administrativa de então, um projecto de
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293 /
brasão de armas para aquela vila, minha terra natal; o curto espaço de
tempo de que dispus para traçar a respectiva memória justificativa − dois
escassos meses − permitiu-me, ainda assim, tomar conhecimento duma
preciosa e não citada fonte documental para a história da terra: o
magnífico arquivo municipal, desaproveitado até então, não obstante
encontrarem-se nele documentos locais desde 1622, além do exemplar
original do foral manuelino, de 1514, sua mais antiga e nobre espécie.
Tomei nota de tudo, publicando o respectivo catálogo que ordenei
cronologicamente(2).
Num caderno desse arquivo, borrão onde se iam registando os diplomas que
interessavam à vida municipal ao passo que chegavam ao conhecimento da
vereação, encontrei eu dois registos assim redigidos:
«Certidão em que os Senhores do Conselho Geral houveram por bem conceder
a Antonio dos Santos, do Viveiro, termo
da Vila de llhavo, familiar do Santo Oficio, o Privilegio dos do numero
com data de 28 de Janeiro de 1722.
«Carta de familiar do Santo Oficio passada a Domingos Antonio Rodrigues
da Vila de llhavo com data de 13 de Abril de 1739.»
(índice da Legislação registada na Câmara de Ílhavo: 18 de Fevereiro de
1728 a 3 de Dezembro de 1739; pág. 10 da memória acima citada.)
Era uma indicação preciosa, que cuidadosamente guardei, tanto mais que o
primeiro dos assentos vinha esclarecer o enigma duma velha certidão de
idade que no meu arquivo de família eu possuía e na qual se falava dum
meu colateral «António dos Santos Famaliar», das Ribas, casado com Júlia Nunes Vidal, do Vale de
Ílhavo, no 1º quartel do século XVIII. O suposto e
estranho apelido Famaliar, para o qual ninguém me dava explicações, era,
afinal, a função social daquele meu remoto parente e não o que se
imaginava.
Anos depois, em Setembro de 1925, comunicava-me o Presidente do
Município uma proposta que lhe fora oficialmente enviada da Torre do
Tombo, na qual um amanuense-paleógrafo declarava ter casualmente
encontrado uma «diligencia do Bacharel Manuel Tavares de Sequeira e Sá,
solteiro) filho do capitão Paschoal de Sequeira Ferrão, natural e morador
da vila da Ermida, freguesia de S. Salvador de Ílhavo, Bispado de
Coimbra», e se oferecia para fazer a respectiva cópia... à razão de 1$50
a lauda.
/ 294 /
Para a história anedótica dos nossos arquivos, fui
guardando o ofício, que ainda conservo; e para futuros estudos da terra
tomei nota de mais aquela indicação.
Outros nomes, depois, se foram juntando a estes, em número suficiente para justificar esta primeira notícia concreta que
da Inquisição em Ílhavo aparece a público, e à qual outras espero poder acrescentar.
Para bem se compreender a importância histórica dos processos de
habilitações do Santo Ofício de que existem na Torre do Tombo mais de
12.000 (a par dos 40.000 processos crimes a
que HERCULANO se referia, como acima vimos, e que são coisas
absolutamente diferentes), vejamos como se podia ser familiar do Santo
Ofício.
O ritual da Inquisição está cuidadosamente registado, e com
bastante individuação, no Regimento do Sancto Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal... impresso em 1613, e depois em 1640 e em
1774 com notáveis actualizações e diferenças de texto.
Ao nosso caso interessa o regimento de 1640, de todos o
que por mais tempo vigorou e, porventura, o mais rigoroso.
Familiar do Santo Ofício não era qualquer indivíduo que
tal pretendesse; tornava-se mister satisfazer a determinados requisitos; a Inquisição rodeava-se prudentemente de rigores com
que dificultava o acesso ao exercício dos seus cargos, no intuito de obter para os respectivos serviços as vantagens materiais e
morais duma boa selecção, embora mais tarde, principalmente
depois da intervenção do Marquês de Pombal, e por conveniências
políticas, essas reservas fossem diminuindo a ponto de
aparecerem denúncias contra o procedimento ou contra a ascendência mais
que suspeita de familiares seus.
Inerentes a tão ambicionado cargo (solicitado, quantas
vezes, com o secreto pensamento de obter um salvo-conduto
contra possíveis impertinências da Inquisição) andavam, pois, obrigações
de responsabilidade e procedimento, e condições
pessoais a que nem todos os candidatos podiam satisfazer.
De tudo nos dá miúda conta o citado regimento de 1640.
Por ele se exigia que os familiares fossem pessoas de bom
procedimento e de confiança e capacidade conhecidas, possuíssem quantidade de bens de que pudessem viver abastadamente, e satisfizessem às condições gerais obrigatórias a todos os
Ministros e Oficiais do Santo Ofício, isto é: provariam que eram
naturais do Reino, cristãos velhos de sangue limpo sem
raça de mouro, judeu ou gente novamente convertida à fé de
Cristo e sem fama do contrário; era necessário também não
terem incorrido em infâmia pública de feito ou de direito, nem
terem sido presos ou penitenciados pela Inquisição, eles ou seus
ascendentes.
Era imprescindível que fossem de vida e costumes honestos
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295 /
e capazes de se encarregarem de negócios de importância; para isso,
assumia o candidato a familiar o compromisso de guardar absoluto
segredo a respeito de tudo o que dissesse respeito a seu cargo, porque
no Santo Ofício não há cousa em que o segrêdo não seja necessário,
recomenda o Regimento expressamente.
Mas não ficavam por aqui os requisitos para o provimento no cargo de
familiar: como os demais funcionários do Santo Ofício, teriam eles o cuidado de proceder em todas as suas coisas de
forma a darem de si bom exemplo, tratando-se com a modéstia e decência
convenientes a seu estado, não vexando pessoa alguma nem ameaçando com
o poder de seus cargos; falando de pessoas que praticassem o judaísmo − gente de nação, lhe chama o
Regimento − poriam grande cuidado em
distinguir do delinquente o delito em si, manifestando piedade por
aquele e abominando este, o que dava lugar à subtileza curiosa de se
atormentarem os desgraçados que sob a alçada do tribunal caíam, e de se
promover que fossem levados ao fogo, mas sempre com o coração a trasbordar de santa piedade.
Evitariam o suborno, recusando prudentemente dádivas de
pessoas suspeitas ao Santo Oficio e, prevendo abusos e humanas
fraquezas, estabelecia-se que não tomassem mercadorias ou mantimentos a
pessoa alguma por menos preço do que o ordinário, nem pedissem dinheiro
emprestado à tal gente de nação, procurando mesmo não contrair dívidas
que pudessem causar queixas ou diminuir a autoridade que a suas pessoas
e ofícios era devida.
Doutras obrigações dos familiares do Santo Ofício reza ainda o Título
21: assim, na véspera do dia de S. Pedro, mártir, sempre que lhes fosse
possível, achar-se-iam na Inquisição do Distrito a que pertencessem para
acompanhar o Tribunal e
assistir com ele à festa de celebração do santo.
Quando houvesse auto-de-fé, acompanhariam os presos na procissão,
envergando então os hábitos de familiar que só em tais ocasiões, ou
quando fossem efectuar alguma prisão, lhes era permitido vestir.
A parte mais odiosa do seu cargo consistia na obrigação de darem conta
imediatamente à Inquisição − com toda a brevidade e segredo − das
ocorrências dos lugares onde residissem que porventura lhes parecessem
conter quebra de fé.
Não faltavam privilégios, também, a tornar mais apetecido o referido
cargo de familiar: um dos nossos historiadores que melhor conhece o
arquivo do Santo Ofício e que ao seu estudo mais se tem dedicado − o Sr.
Dr. ANTÓNIO BAIÃO, ilustre Director do Arquivo Nacional da Torre do Tombo
− resume desta maneira os
privilégios concedidos àqueles oficiais pela carta de 14 de Dezembro de
1562, ao escrever da Inquisição em Portugal e no Brasil, na pág. 8 do
volume V do Arquivo Histórico
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Português: ...«ficam isentos de pagar fintas ou quaisquer outras
contribuições que os concelhos, onde eles sejam moradores,
lhes exijam; da obrigação de acompanhar presos ou dinheiro;
de exercerem a tutoria, a curatela ou quaisquer ofícios do concelho; de
lhes tomarem, para aposentadoria, as suas casas de moradia ou
cavalariças, que até lhes devem dar quando para isso tenham necessidade;
de lhes tomarem o pão, ou qualquer outra cousa contra sua vontade. São,
além disso, isentos do serviço militar e de ter ganchos à porta, podendo
usar das armas ofensivas − espada, punhal ou adaga − e de todas as
defensivas e podendo, assim como suas mulheres e filhos,
vestir-se de seda, que só podiam trazer as pessoas que usassem
cavalo. » (3)
Os oficiais leigos deviam saber ler e escrever.
Gozavam ainda, em determinadas circunstâncias, do privilégio de tribunal especial, que podia estender-se até os seus
criados.(4)
Felipe I confirmou todos estes privilégios em 31 de Dezembro de 1584.
Para se averiguar se o candidato reunia as precisas condições impostas
pelo Regimento, o Santo Ofício organizava meticulosa investigação e
complicado processo. Provém justamente dessa minúcia informativa o
grande merecimento que para a História local esses processos de
habilitação ficaram tendo: é a genealogia do candidato, as suas
condições de vida e costumes, e de todos os seus ascendentes, iguais
exigências se fazendo a respeito de sua esposa, se fosse casado, e,
finalmente, um avultado rol de testemunhas que se inquiriam sobre todas
estas particularidades e que nos ministram outros tantos nomes,
profissões e datas que, muitas vezes, só por estes processos de
habilitação se ficam conhecendo.
São, portanto, elementos de primeira ordem que se não podem desprezar na
história duma localidade.
De como os familiares ilhavenses se desempenharam da
actividade que o Regimento lhes impunha, não trataremos agora; vejamos
primeiro quem eram alguns desses conterrâneos nossos que lograram
alcançar a ambicionada carta de familiar, que lhes conferia, na terra,
uma situação privilegiada, e
arquivemos os curiosos elementos que os seus processos de habilitação
nos fornecem.
/
297 /
Eles nos permitirão visionar um pequeno e animado quadro da vida de
Ílhavo de passados tempos.
Comecemos pelo ANTÓNIO DOS SANTOS (5). . .
Era natural das Ribas do Viveiro, termo da vila de ílhavo,
filho dos lavradores João André e Maria dos Santos, naturais daquele
mesmo lugar e aí moradores.
Neto patemo de André Fernandes e de Jerónima Manuel, aquele de Ílhavo e
esta das Ribas, onde ambos moravam; neto materno de Manuel dos Santos,
natural da Alagoa, e de Maria Manuel, da Coutada, e aqui moradores.
Tinha 23 anos quando requereu; a petição não está datada, mas dos
despachos subsequentes se depreende que deve ser de 1705. Era
solteiro, vivia com os pais, e tinha ordens menores, ou de prima tonsura.
Fundamenta-se o requerimento com a declaração, de grande importância
para nós, de que à data não existia nenhum familiar no lugar do
Viveiro, na vila de Ílhavo, e circunvizinhanças de Aradas, Sôza e Vagos.
Teria anteriormente havido outro, ou seria António dos
Santos o primeiro familiar de Ílhavo?
Não tenho, por enquanto, notícia de algum mais antigo que em Ílhavo vivesse, mas não repugna crer que tivesse existido, e
perfeitamente o admito.
Basta recordar que o Regimento a que nos vimos reportando estabelecia, logo no 1.º número do livro 1.º, título 1.º, que «Hauera mais em cada hum dos lugares marítimos
hü Visitador
das naos de estrangeiros, com Escriuão de seu cargo, hum guarda, & hum
Interprete, & em cada hüa das cidades, vilas, & lugares mais notaueis,
hum Commissario com seu Escriuão, & os Familiares, que forem necessarios».
É certo que no século XVII Ílhavo não era porto de mar visitado
habitualmente por navios estrangeiros, nem, em rigor,
jamais o fora, Não era, também, lugar notável; estava, contudo,
tão intimamente integrado no vasto estuário onde os navios
ancoravam, que não era difícil conceber a possibilidade dum desembarque
clandestino que tivesse por fim evitar Aveiro e a
sua alfândega.
Ora o Santo Ofício estabelecera um verdadeiro cordão sanitário na costa
marítima acessível com o fim de impedir a entrada de livros contrários à
Fé católica que favorecessem as
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298 /
seitas heréticas ou desenvolvessem o livre-pensamento; a Europa abrasava-se, em lutas religiosas e a
Inquisição punha o maior
cuidado na visita e inspecção das naus que do Estrangeiro chegavam aos nossos
portos.
Um familiar em Ílhavo anteriormente a 1705 não seria, portanto,
medida descabida ou precaução inútil.
Mas, como digo, o António dos Santos é o primeiro de que
tenho notícia, e declarava não existir nenhum a essa data. Possivelmente, mesmo, essas funções terão sido até aí exercidas
por alguns dos priores da freguesia, comissários do Santo Ofício.
A investigação histórica tem ainda longo caminho a percorrer, e os Arquivos não dão o rendimento que a nossa legítima
curiosidade neste e noutros capítulos deseja.
Foi a petição do habilitando enviada em 30 de Novembro
de 1705 aos inquisidores de Coimbra que designaram o P.e
Pantaleão Afonso Alfena, seu comissário e reitor de Fermelã,
para proceder às diligências extrajudiciais.
Em 1 de Março do ano seguinte informa o P.e Alfena, baseado em elementos colhidos de Miguel Fernandes e Manuel
João, marnotos, e do P.e Domingos dos Santos, irmão germano
da mãe do suplicante e parente do familiar do Santo Ofício, Agostinho
Coelho de Figueiredo, de Esgueira.
A informação é completamente favorável quanto a limpeza
de sangue, fortuna e idoneidade do habilitando, seus pais e avós.
Sua mãe e tio pertenciam à família do P.e Manuel da Rocha, pároco que fora de Verdemilho.
Em Outubro de 1706 juntam-se ao processo certidões negativas das inquisições de
Évora, Lisboa e Coimbra acerca das culpas do
requerente nos respectivos, cartórios; e só em 26 de
Junho de 1708 se fez a autoação da comissão dos inquisidores
de Coimbra; foi escrivão o P.e Vicente Simões, sacerdote do hábito de S. Pedro, natural de Aveiro e aí morador.
Manda então a Inquisição de Coimbra que se proceda às
diligências do costume e se interroguem as testemunhas segundo o questionário em uso, de harmonia com o
Regimento.
Depõem as testemunhas: Maria Gonçalves, mulher de
André Nunes, marnoto, natural e moradora em Alqueidão, freguesia de S. Salvador de
Ílhavo; Manuel João da Pequena, marnoto,
natural de Verdemilho, freguesia das Aradas, morador
na Coutada; Ana Miguéis, de alcunha a Erveira, viúva de João
António hortelão, natural de Aveiro e moradora na Coutada,
freguesia de S. Salvador de Ílhavo; Manuel André, o Forte,
pescador, natural e moraopr em Ílhavo; Manuel André, coveiro
e sacristão na vila de Ílhavo, dela natural e nela morador; Manuel André, de Alcunha o Velho, marnoto, natural e morador em
Ílhavo; Manuel Gonçalves da Rocha, alferes de ordenanças, natural e morador em Alqueidão, de 71 anos. Pedro André, das
Cancelas, lavrador, natural de Alqueidão, morador
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299 /
em Ílhavo; António André, de alcunha o Marieiro, lavrador e marnoto,
natural e morador em Ílhavo; Manuel dos Santos do Cruzeiro, lavrador,
morador e natural da freguesia do Salvador da vila de Ílhavo.
Os depoimentos das testemunhas são contestes, salvo em um ponto então
importante: a limpeza de sangue.
Dizem todas que muito bem conheceram os avós do habilitando e o conhecem
a ele e aos seus pais, de 20, 30 e 40 anos e mais; que são família de
lavradores na linha materna e paterna e têm meios de fortuna e se
tratam limpamente; que são pessoas idóneas, etc.
Algumas testemunhas são mais minuciosas: Assim, a primeira diz que
conhecia os pais e avós por lhes ir vender peixe; o alferes de
ordenanças conhecia-os pessoalmente e ia a casa deles beber vinho;
Manuel João diz que se lembra de matarem na freguesia de Verdemilho um
clérigo chamado Manuel da Silva, de alcunha «o Passarinha» , que era
sobrinho do avô paterno do habilitando; Ana Miguéis, «a Erveira»,
informa
minuciosamente acerca das naturalidades dos avós maternos do
habilitando; Manuel André, disse que Manuel dos Santos tinha a alcunha
de «Caneleiro da Alagoa», e um seu neto é o P.e Domingos dos Santos,
tio materno do habilitando; que trouxera de renda um campo onde semeava
nabos que o dito Santos lhe comprava para sustentar os seus bois; o
sacristão Manuel André, conhece o pai do habilitando que já tem sido
mordomo das confrarias na igreja paroquial, e tem-no visitado quando
está doente; das pessoas da família do habilitando fala, além de outros,
de André Fernandes, «o Furado», irmão de Domingas Fernandes, e esta
mulher de Manuel Silveira, lavrador, pais do P.e Manuel da Silva, «o
Passarinha» e avós do P.e António da Silva (ambos estes padres de
Alqueidão) − todos aqueles lavradores; que se lembra de Manuel dos Santos ser juiz da confraria do Senhor na igreja paroquial de
Ílhavo,
e de o ver ir alimentar de azeite a lâmpada, todos os dias; a testemunha Manuel dos Santos conhece os pais do habilitando desde solteiros,
«e no trabalho do rio onde ião conduzir estercos para suas fazendas» e
que o avô materno do habilitando (o já referido Manuel dos Santos) «lhe
fizera entrega a ele testemunha da vara de juiz deste concelho de Ílhavo
na era de 1675 anos».
Desta parte dos depoimentos ressalta muito nitidamente que os pais e
avós maternos do requerente eram e haviam sido sempre lavradores,
naturais e moradores da região e sempre ali residentes. Sedentários e de
profissão sedentária.
Quanto à limpeza de sangue é que as testemunhas variam
nos seus depoimentos.
É assim que as 1.ª, 3.ª e 4.ª testemunhas, sem discrepância, dizem que todos
− pais e avós do habilitando − são legítimos
/
300 /
e inteiros cristãos velhos, sem raça de judeu, momo, gentio, etc. e sem
nenhuma fama ou rumor em contrário.
A 2.ª testemunha, abonando embora a limpeza de sangue dos avós do
requerente, refere-se à fama e rumor que correu de ter sangue de cristão
novo seu avô materno Manuel dos Santos, antes do P.e Agostinho Coelho de
Figueiredo ter sido habilitado familiar do Santo Ofício, fama de que
também sofrera seu tio materno o P.e Domingos dos Santos, sacerdote do
hábito de S. Pedro, morador na Coutada, o qual, por isso, esteve muitos
anos sem receber ordens. Porém, depois, de ser familiar do Santo Ofício
o referido P.e Agostinho, que era da mesma família do habilitando, e
natural e morador em Esgueira, tal fama desapareceu.
A 5.ª testemunha alude à fama de cristão novo do pai do habilitando,
dizendo provir do P.e Domingos dos Santos, a quem, por ódio, um pároco
de Verdemilho acusara de tal (não diz quem era o pároco); tal fama
cessou completamente, e ela não sabe mais pormenores.
A 6.ª testemunha, reputando também os avós do habilitando pessoas
cristãs velhas inteiras, refere-se todavia à fama de cristão novo do
avô materno do habilitando, acrescentando que tal rumor desaparecera de
todo depois que foi Prior desta freguesia e comissário do Santo Ofício o
P.e Bento de Almeida, e pôde então tomar ordens o tio do habilitando a
que nos referimos.
A 7.ª testemunha repete o que já as anteriores testemunhas haviam dito
acerca dos padres Bento de Almeida e Agostinho Coelho de Figueiredo,
este natural de Esgueira, e do facto de, então, poder tomar ordens o tio
do habilitando e ficar restabelecido o crédito e bom nome da família.
As testemunhas 8.ª e 9.ª dizem exactamente o mesmo, por outras palavras;
e bem assim a 10.ª testemunha, que acrescenta ter o P.e Bento de
Almeida, prior de Esgueira, «trabalhado com
tanto calor neste negocio» que conseguiu que o dito Domingos
dos Santos fosse emfim ordenado.
A informação do Comissário, o P.e Pantaleão Alfena, datada de 7 de Julho
de 1708, a seguir às inquirições, faz um resumo da questão no que
respeita à filiação, residência e ascendência do habilitando, dizendo
que ao lugar das Ribas do Viveiro chamam também Ribas da Coutada, e
acrescenta:
«...de presente existe na freguezia de Ilhavo de onde todos os
sobreditos eram naturaes um clerigo chamado Antonio da
Silva, neto dos mencionados Manuel da Silveira e Domingas
Fernandes. Pela parte de sua Avó materna Maria Manuel do
logar da Coutada, da mesma freguezia, tambem se tem a mesma
diligencia, pois ha um sobrinho desta, chamado o P.e Manuel Gonçalves
Fragoso de Verdemilho, filho de um irmão inteiro, por nome Manuel
Gonçalves, e assim por parte desta
/ 301 /
avó materna, como dos avós paternos nunca houve o mais leve
rumor contra a limpeza do seu sangue, mas sim, sempre, conservaram a boa
fama de limpos, sem alguma raça de nação infecta. No particular do seu avô Manuel dos Santos, «o Caneleiro», o
qual nasceu em Verdemilho, freguezia de S. Pedro das Aradas, freguezia
mais vizinha de Ilhavo do que das portas de Santa Sofia ás grades de
Santa Cruz. Este «Caneleiro», bisavô
do habilitando foi filho de Manuel dos Santos e sua mulher Maria Manuel irmã inteira do
P.e João da Rocha moradores no lugar de
Verdemilho; não poude averiguar por pessoas antigas nem por livros da
mesma freguezia de S. Pedro das Aradas (que estão feitos pedaços e não
diz uma pagina com outra) quaes foram os paes destes irmãos, como
tambem de uma irmã chamada Antonia da Rocha, a Couteira, nem parentes
deste me dão noticia alguma, como o P.e Manuel da Rocha desta vila de
Aveiro, cuja mãe tratava ao dito P.e João da Rocha por tio; e de um chão
que foi deste clerigo se fez o patrimonio ao dito P.e Manuel da Rocha.
Deste nomeado P.e João da Rocha nasceu o rumor que causou o impedimento
ao P.e Domingos dos Santos, da Coutada, irmão inteiro da mãe do
habilitando, de que falIam tantas testemunhas nesta inquirição, o qual
purgou o impedido em vida do Prior Bento de Almeida, comissario do
Santo Oficio, e tenho certeza foi sentenceado o dito impedimento por
nenhum, no ano de 1672, e me lembro de ouvir dizer publicamente que o
fazer-se familiar do Santo Oficio Agostinho Coelho de Figueiredo fora
mui util para o credito de muitas pessoas de Verdemilho, e se falava
neste sacerdote Domingos dos Santos, da Coutada; a V.ª S.ª remeti um
papel com a inquirição de um fulano Pinheiro, da freguesia de Valongo,
parente do prior de Alquerubim (e me persuado faz para Outubro 3 anos), e dele consta a ascendencia de Agostinho Coelho de Figueiredo, que vae
ao paço de Brandão, termo da Feira, bispado do Porto ele (?) nomea
descendente de uns fulanos da Rocha e fulana de Castro, dos quaes, cuido
eu, diz o papel, ou outro dos que foram com a mesma inquirição,
procedera um clerigo que fora paroco em Verdemilho, e deste fora filho
ou neto o dito P.e João da Rocha, pela qual razão, sendo familiar o dito
Agostinho Coelho de Figueiredo, ficara corrente o P.e Domingos dos
Santos, por bisneto de uma irmã do dito P.e João da Rocha. Meu irmão
Manuel de Figueiredo Alfena, que faleceu, faz em Abril deste ano,
quatro, e tinha 78, me disse que André de
Figueiredo, comissario do Santo Oficio, e seu tio, servira de arcipreste
nesta vila, e era seu escrivão o dito P.e João da Rocha; e em
diligencias do Santo Oficio escrevia com o P.e Miguel João Reverendo (sic), e isto pelo rumor que havia contra o dito
P.e
João da Rocha. Seria a causa do dito rumor o que alcancei, e não me
lembro se dei conta a V.ª S.ª na informação do dito fulano Pinheiro, e é
que estes Rochas procedem de uns fulanos
/
302 /
Tamancas do Porto, que fazendo-se, ou em sua casa ou em sua companhia,
uma prisão por parte do Santo Oficio, levaram
isto a mal e resistiram ou fizeram algum agravo ao familiar, do que
resultara ser preso o sujeito agravante, de cuja prisão no vulgo ficou
a memoria de ser preso este ascendente de tantas famílias, sem
examinarem a causa da dita prisão. Este dito P.e João da Rocha era
sacerdote no ano de 1623, como consta de um baptisado, cujo termo está
em um livro na 2.ª pagina; no ano antecedente era paroco um Francisco
Ferreira, e no seguinte ao dito baptismo um Pedro de Andrade. Manuel André lavrador, morador e natural de Verdemilho, filho da Serena, me disse
que seu sogro chamado Manuel Francisco, o Picão, que faleceu ha 11 anos
e era de 80 naquele tempo, lhe dissera que o dito padre João da Rocha
era filho de um paroco que fora da dita freguezia de S. Pedro das
Aradas; porem não ha livro nem memoria que verifique do dito Manuel
André Sereno, salvo a inquirição do dito P.e João da Rocha, que ha de
estar no cartorio da Camara eclesiastica deste bispado, e é que o dito
P.e Domingos dos Santos se valeria dela.»
Conclui por informar favoravelmente quanto aos outros requisitos do
habilitando.
Tem lugar, a seguir, o parecer do membro do Conselho Geral João Duarte
Ribeiro, datado de Lisboa, 28 de Outubro de 1710.
Resume o parecer do comissário e os depoimentos das testemunhas e
conclui por dizer que se remeta a diligência aos inquisidores de
Coimbra, a fim de pedir ao Ordinário as inquirições do P.e Domingos dos
Santos e que o, secretário do Conselho (Geral) ajunte à diligência a
habilitação do familiar Agostinho Coelho de Figueiredo.
Infelizmente não estão juntas ao processo nem uma nem
outra coisa.
Em 17 de Abril de 1711 informa novamente o mesmo conselheiro João Duarte
Ribeiro; transcrevemos na íntegra o seu parecer:
«Vi segunda vez estas diligencias de Antonio dos Santos com as do seu
tio materno Domingos dos Santos e as do familiar Agostinho Coelho de
Figueiredo, que no meu despacho de 28 10-1710 mandei juntar para se
averiguar a forma que se dá ao pretendente por via de sua mãe e avô
materno Manuel dos Santos pelo que ponderei no dito despacho e por as
ditas diligencias e as a elas apensas consta que a familia do
pretendente pela dita via teve por muitos anos impedimento na pureza de
seu sangue que nunca prevaleceu por via de uma sua ascendente Catarina
de Castro e suas irmãs. Porem constou pelas diligencias que se fizeram
que Sebastião Jorge da Rocha e sua mulher Izabel de Castro ella natural
das partes da cidade do Porto, e ele natural da Quinta de Baixo,
freguezia de Passo (sic)
/
303 /
do (sic) Brandão e comarca da Feira, foram paes de Catarina de Castro,
Helena de Castro e Maria de Castro, e Jeronimo da Assunção, frade loio,
e o P.e Manuel da Rocha que foi clerigo; e que da dita Catarina de
Castro, primeira filha dos ditos Sebastião Jorge da Rocha e Izabel de
Castro que foi casada com
Afonso Godinho, Almoxarife na vila de Aveiro, para onde ele veio,
nasceu Brites Godinho que casou com João Gomes Pinho, e destes nasceu
Branca de Pinho que de seu marido André Dias teve a Manuel Godinho; e tambem nasceu a dita Brites Godinho [e]
Maria Gomes, que de seu marido Antonio Duarte
Ferreira, capitão mor de Esgueira teve a Antonio Godinho. O
qual e o dito seu primo Manuel Godinho tiveram sentença a seu favor no
ano de 1634 contra Domingos Mateus Vinagre, sendo este condenado pela
injuria de lhe chamar judeu, e se confirmou na Relação do Porto, como
consta da fl. 89 da diligencia do dito Agostinho Coelho; e tambem consta
da mesma diligencia (ou sentença?) que do mesmo João Gomes Pinho e de
sua mulher Brites Godinho, nasceu Pedro Godinho Barbosa, juiz dos orfãos
da vila de Esgueira, que atendendo a dita fol. 74 do dito familiar era pae de Brites Godinho mais do dito Agostinho
Coelho de Figueiredo, que depois de interlocutorias diligencias feitas
no Passo do Brandão, terra da Feira, foi julgado por cristão velho, e
que a dita fama era falsa, como se vê dos despachos dellas de Novembro
de 16...1 (6)
e se lhe passou carta de familiar do Santo Oficio. Consta tambem que da dita Helena
de Castro, filha 2.ª dos ditos Sebastião Jorge da Rocha e sua mulher Izabel de Castro, e de seu marido Baltazar Coelho da Costa moradores em
Requeixo, comarca de Aveiro, nasceu Maria Coelha, natural de Requeixo
que de seu marido Manuel Pimentel, da vila de Aveiro, nasceu Roque da
Costa Pimentel, que de sua mulher Madalena da Silva Pimentel, moradores
(sic) em o logar de Carvalhaes, freguezia de Santiago da Mouta teve a
Manuel Pereira Pimentel, que depois de ser clerigo, habilitando-se para
ser Prior da dita Igreja de Santiago da Mouta, e pondo-se-lhe o mesmo
impedimento e mostrando mais ........ habilitassem no mesmo bispado de Coimbra de se
lhe mandar purgar o impedimento apelou para Braga onde teve sentença a
seu favor no ano de 1667, e foi provido na dita
igreja como consta das diligencias a do dito familiar Agostinho Coelho
de Figueiredo. Consta que da outra filha 3.ª Maria de Castro, que foi
para a Castanheira, bispado de Coimbra, e casou com Heitor de Macedo
nasceram descendentes que tambem
se habilitaram. Finalmente consta que o dito 5.º filho Manuel da Rocha,
filho dos ditos Sebastião Jorge da Rocha e Izabel de Castro, foi clerigo
aprovado sem duvida de Verdemilho, que
teve uma filha chamada Izabel da Rocha, que legitimou, e de
/
304 /
seu marido Manuel Cortes, da vila de Aveiro, teve uma filha que casou
com Manuel dos Santos e um filho chamado João da Rocha, que foi da vila
de Aveiro e habilitado para ordens, que tomou por sentença da Relação
Eclesiastica de Coimbra, de 13-9-1632, como consta do 3.º apenso ás
diligencias do P.e
Domingos dos Santos que se apensaram a estas diligencias. E
da dita filha, que casou com o dito Manuel dos Santos, nasceu outro
Manuel dos Santos; que de sua mulher Brites André nasceu outro Manuel
dos Santos; que de sua mulher Maria Manuel nasceu Maria dos Santos e
Domingos dos Santos, que juntando
ás suas diligencias estar habilitado o P.e João da Rocha, irmão
de sua bisavó, e ser familiar do Santo Oficio Agostinho Coelho de
Figueiredo, foi julgado por cristão velho por sentença da Relação de
Coimbra de 16-5-1682, e foi clerigo, porque o unico impedimento
provinha dos ditos ascendentes que vieram do Passo de Brandão. E da dita
Maria dos Santos nasceu o filho a quem, pela dita mãe e avó materna, se
pôs pelas testemunhas mencionadas no dito meu 1º despacho pela mesma via
que tem
por falso, e eu por falso julgo o rumor de cristão novo de que as ditas
testemunhas depoem. Porque alem de por tal estar julgado tantas vezes é
nascido e mal afectos por virem seus ascendentes de fora; se conhece que
nas suas patrias originaes não ha tal fama e são e foram sempre tidos e
havidos por cristãos velhos, pelo que seus descendentes foram julgados limpos
de sangue, como foi Antonio Pinto Godinho, filho do licenciado Pedro
Leitão e sua mulher Brites Godinho, neto materno de Antonio Duarte
Ferreira e Maria Gomes, acima declarado, em
6 de Novembro de 1666; e Manuel Godinho e Antonio Godinho foram abades
da igreja do Passo de Brandão chamada S. Ciprião; e outros muitos foram
clerigos religiosos e freiras, como tambem curas de almas, que consta de
diligencias apensas........»
Conclui por dar o habilitando como capaz de ser familiar,
como requereu.
A seguir, tem o voto concorde de João Moniz da Silva, de
8 de Maio de 1711.
Por fim, decorridos seis anos de inquirições, despachos e expectativas,
foi passada carta de familiar a António dos Santos em 2 de Julho de
1711.
Grande, e justificada, deve ter sido a satisfação quando tal
notícia chegou às Ribas; António dos Santos ascendera a uma posição de
destaque na hierarquia social; passava a ser das mais importantes
pessoas da terra e, porventura, a mais temida de todas elas.
«A carta de familiar era, num país tão saturado de sangue judaico,
altamente apreciada, e para a alcançar não se receavam os nossos
antepassados de empregar os meios que são de
/ 305/
[Vol. I - N.º 4 - 1935] conjecturar»,
comenta PEDRO DE AZEVEDO no estudo que dedicou a Os
familiares do Santo Ofício em Vila Real
(7).
Ainda noutro lugar o grande investigador nos dá conta das amargas
conclusões a que a sua larga observação o conduzira, e escreve:
... «Por estes processos [dos familiares do Santo Ofício] vim
a ganhar a convicção de que o aparecimento numa família de familiares, cavaleiros de ordens militares ou eclesiásticas, tanto
seculares como regulares, e de bachareis em direito, não prova que ela
fosse de origem cristã-velha.
Um comissário do Santo Ofício que se deixasse subornar por
interesses
pessoais ou materiais podia dirigir o inquérito de forma que um
indivíduo mais que suspeito no sangue fosse dado por limpo, o que é
confirmado por casos que se amontoam,
quanto mais nos apartamos do século XVI, período em que ainda estavam na
lembrança as origens cristãs e judaicas de cada um.
Para aumentar a confusão sucede que no século XVI e principio do século
XVII não havia disposição que proibisse a entrada nas ordens religiosas e na nobreza a cristãos-novos e como
mais tarde era ignorada esta circunstância, dava-se como prova da
limpeza de sangue de uma família a existência nela de eclesiásticos e
cavaleiros»(8).
Em 1722, António dos Santos deliberou casar; de harmonia com o regimento
do Santo Ofício, não o podia fazer sem autorização do tribunal, que
mandava organizar processo de habilitação para as pretendidas consortes
talqualmente como para os familiares, apensando-se depois ao processo
do marido.
Requereu, portanto, o futuro marido, nosso conhecido já,
diligências a favor de Júlia Vidal (no baptismo Juliana, crismada depois
em Júlia) com quem desejava contraír matrimónio.
A habilitanda era filha de João Nunes e Isabel Vidal, naturais e
moradores no lugar do Vale de Ílhavo de Cima, termo e freguesia de
Ílhavo; neta paterna de Manuel Nunes, o «Neto», e
Maria Francisca, de alcunha a Maria Pequeno, naturais e moradores no Couto da Ermida; neta materna de
Domingos André, o «Madanelo»,
natural e morador no Vale de Ílhavo, e de Antónia Vidal, natural do
Ribeiro da Arrancada, freguesia de Vale Corgo, termo da vila de
Broninhido (sic). Foi baptizada em 22
de Fevereiro de 1685, omitindo o assento a data do nascimento.
Por despacho de 22 de Maio de 1722, promovem os inquisidores de Coimbra as diligências, nos termos do Regimento. Vejamos
como foi instruído o processo.
Certidões negativas dos notários das Inquisições de Lisboa,
/
306 /
Évora e Coimbra acerca das culpas da habilitanda. Certidão, de 21 de
Junho de 1722, do notário da Inquisição de Coimbra de como, a fl. 57 do
livro 10 respectivo, estava registada a carta de familiar de António dos
Santos.
Mandado dos Inquisidores de Coimbra ao comissário e Licenciado Amaro Duarte Cardoso, Prior das Talhadas, para proceder às
diligências, de 3 de Maio de 1772. Autoação e apresentação do mesmo,
feita na igreja do Salvador, em Ílhavo, servindo de escrivão o P.e
Manuel Diogo.
Foram inquiridas as seguintes testemunhas:
P.e Manuel Nunes da
Fonseca, clérigo do hábito de S. Pedro, natural e morador no lugar de
Alqueidão, freguesia de Ílhavo; Domingos da Cruz Álvares, barbeiro e
sangrador, natural e morador no lugar da Ermida; João André, viúvo,
lavrador, natural e morador em a vila de Ílhavo, de cerca de 90 anos;
Manuel João, o
«Torrão», viúvo, natural e morador na Ermida; João André, viúvo,
lavrador, que foi alfaiate, natural e morador em Ílhavo; Manuel André,
viúvo, lavrador, natural e morador em Ílhavo; João Gonçalves, jornaleiro, natural e morador em Ílhavo.
Os depoimentos são destituídos de interesse e apresentam quase
completa uniformidade. Diz-se que os pais são rendeiros
e vivem de suas fazendas, e que em tempos o pai foi alfaiate; que os
avós maternos eram moleiros de uma sua azenha é viviam de suas fazendas;
que as testemunhas os conhecem pessoalmente há 20, 30, 40 e 60 anos;
etc. Os depoimentos são unânimes quanto à limpeza de sangue da
habilitanda e de seus pais e, de
todos os seus avós, dizendo que nunca houve fama ou rumor, em contrário.
Segue-se a inquirição das testemunhas no lugar da Arrancada, freguesia
de S. Pedro de Valongo, na capela de N. Sr.ª da Conceição, feita pelo
P.e Amaro Duarte Cardoso, Prior da igreja de S. Mamede das Talhadas,
comissário do Santo Ofício, e pelo escrivão P.e Manuel Diogo. De 12 de
Junho de 1722.
Foram inquiridos: António Vidal, lavrador, viúvo, natural da Arrancada;
Manuel Rodrigues, lavrador, natural e morador da vila de Bronhido;
Miguel Ferreira, lavrador, natural e morador no lugar da Arrancada.
Depoimentos de reduzido interesse; todos, unanimemente, atestam a pureza
de sangue dos pais e avós da habilitanda. Segue-se o parecer do
comissário, de
19 de Junho de 1722, favorável inteiramente. Transcrevem-se os termos de
baptismo da habilitanda e de seus pais, e do casamento de seus avós
paternos e maternos.
Parecer de 27 de Junho de 1722 do deputado do Conselho Geral, Francisco
Carneiro de Figueiroa, que, embora favorável inteiramente à pretensão da
requerente, nota não terem sido cumpridas as prescrições do Regimento
pois que só se inquiriram 8 testemunhas, e, no lugar da naturalidade da
avó materna da requerente, 4; todavia, para não demorar mais o
casamento,
/ 307 /
propõe se dispense a irregularidade. Votam também neste sentido mais 5
deputados.
Em 11 de Julho de 1722 foi mandado aviso à Inquisição
de Coimbra de estarem aprovadas as diligências.
Se nos lembrarmos dos seis longos anos que o processo de António dos
Santos levou a organizar, e se notarmos agora
que as diligências a respeito de Júlia Vidal foram ondenadas
em 22 de Maio de 1722 e estavam concluídas em 11 de Julho
desse mesmo ano, tendo-lhe sido dispensada, ainda, a irregularidade duma deficiente inquirição de testemunhas, talvez seja
lícito concluir que António dos Santos, por serviços prestados, por
consideração que pessoalmente merecesse, ou por qualquer outro motivo ainda, dispunha de inegável influência dentro do
tribunal do Santo Ofício da Inquisição, pois só assim se explica
o rápido despacho que a sua petição obteve.
António dos Santos e Júlia Nunes Vidal tiveram descendência e
prosperaram em bens e consideração; com uma filha deles (Joana Clara Vidal da Silveira) casou o capitão-mor João dos
Santos Carrancho, pessoa das mais abastadas da terra, que depois se transferiu para Mafra, onde ficou ao serviço particular
do príncipe D. João, regente do Reino, depois D. João VI.
Convidado a acompanhar a família real ao Brasil, preferiu
perder a amizade do príncipe a deixar o Continente, e em Mafra acabou
seus dias.
Existem em Lisboa descendentes seus, directos, e, em Ílhavo, colaterais.
A. G. DA ROCHA MADAHIL
Continua no vol. 3, pág. 311
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