A. G. da Rocha Madahil, Notícia de alguns ilhavenses familiares do Santo Ofício da Inquisição, Vol. 1, pp. 291-307.

NOTÍCIA DE ALGUNS ILHAVENSES

FAMILIARES DO SANTO OFÍCIO

DA INQUISIÇÃO

os estudos sobre o complexo e discutido tribunal da Inquisição, no nosso país e, duma maneira geral, em todos aqueles onde o terrível Instituto exerceu a sua actividade, vêm, de há multo, merecendo a mais cuidadosa atenção de quantos se dedicam a carrear materiais para o melhor conhecimento da História Pátria; a eles se têm entregado investigadores de vários ramos da História, e pode dizer-se que a todos o vasto manancial tem fornecido abundantes elementos de singular valia.


Entre nós, por vezes nele forrageou o admirável génio crítico de CAMILO, de ordinário tão bem documentado, extraindo, de informações e de processos do omnipotente tribunal, curioso assunto para vários dos seus empolgantes entrechos e notas históricas; HERCULANO, AIRES DE CAMPOS, CUNHA RIVARA, MARTINS DE CARVALHO, BRAAMCAMP FREIRE, LÚCIO DE AZEVEDO, ANTÓNIO BAIÃO, PEDRO DE AZEVEDO, JORDÃO DE FREITAS, VERGÍLIO CORREIA, e quantos mais, notável colheita realizaram mergulhando nos velhos papéis da Inquisição, vindo aclarar, muitas vezes, mais que um interessante e obscuro problema nacional. Como esboço de catálogo local, merece ainda particular menção a curiosa série publicada no bi-semanário A Voz da Justiça pelo Sr. Dr. MESQUITA DE FIGUEIREDO, interessando especialmente o actual concelho da Figueira da Foz.


Compreende-se bem a razão do grande valor que a inigualável fonte de informação possui: instituída, como é sabido, por D. João III, a Inquisição portuguesa viveu de 1536-bula de − 23 de Maio − até à Constituição de 1820, abrangendo, portanto, um enorme período da vida do país; pela sua própria
/ 292 / natureza, ela conhecia de tudo e, a pretexto de depuração da Fé e dos costumes − de real necessidade, aliás − por ela era devassado todo o viver íntimo da Nação, rara sendo a ocorrência pública ou familiar, que no Santo Ofício não fosse encontrar o seu último eco e registo.


Para o funcionamento da sua mecânica regimentar, tornavam-se mister diligências variadíssimas, informações levadas a extrema minúcia; e tudo era metodicamente reduzido a escrito, organizando-se processos cujo número hoje, embora bastante desfalcado já, se conta, mesmo assim, por muitos milhares: − perto de 40.000 processos [de culpa] restam para darem testemunho de cenas medonhas, de atrocidades sem exemplo, de longas agonias, declarava HERCULANO no prefácio da sua História do Estabelecimento da Inquisição em Portugal; pessoalmente tivemos nós ensejo de verificar, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, que esse elevado número não representa exagero; mais do que outra qualquer razão, é até essa circunstância numérica que tem amortecido o necessário ânimo para encetar um catálogo geral da colecção, metódico e ordenado de forma a permitir ao leitor o rendimento prático que hoje se não dispensa nesses auxiliares de todo o trabalho de investigação
(1).


Chegava o Santo Ofício a toda a parte, por todo o país a sua acção se infiltrava; agentes seus o informavam de todas as regiões, das mais recônditas até. Para se obter dele mais rendoso funcionamento, descentralizaram-se os seus serviços dividindo-se o continente em três inquisições com sede em Coimbra, Lisboa e Évora. O Conselho Geral do Santo Ofício coordenava a acção de todas três.


Ora se desta forma a Nação inteira era devassada − e nestas generalidades preliminares limitámo-nos a resumir o que pela investigação está fixado acerca de tão importante assunto − é lícito, aos ilhavenses que desejam conhecer um pouco da vida passada da sua terra e se não contentam com antigas fábulas báquicas nem com modernas maviosidades bandolinísticas, perguntar também: terá Ílhavo conhecido os rigores do odiado tribunal, ou, pelo menos, a vigilância dos seus agentes?


Deixemos, porque não vem ao caso, a reabilitação do Santo Ofício ultimamente proposta; é problema cuja transcendência nada tem que ver com esta breve notícia de alguns ilhavenses familiares do Santo Ofício da Inquisição.


Há bons treze anos − em 1922 − organizei, a pedido instante da Comissão Municipal administrativa de então, um projecto de
/ 293 / brasão de armas para aquela vila, minha terra natal; o curto espaço de tempo de que dispus para traçar a respectiva memória justificativa − dois escassos meses − permitiu-me, ainda assim, tomar conhecimento duma preciosa e não citada fonte documental para a história da terra: o magnífico arquivo municipal, desaproveitado até então, não obstante encontrarem-se nele documentos locais desde 1622, além do exemplar original do foral manuelino, de 1514, sua mais antiga e nobre espécie.


Tomei nota de tudo, publicando o respectivo catálogo que ordenei cronologicamente
(2).


Num caderno desse arquivo, borrão onde se iam registando os diplomas que interessavam à vida municipal ao passo que chegavam ao conhecimento da vereação, encontrei eu dois registos assim redigidos:


«Certidão em que os Senhores do Conselho Geral houveram por bem conceder a Antonio dos Santos, do Viveiro, termo da Vila de llhavo, familiar do Santo Oficio, o Privilegio dos do numero com data de 28 de Janeiro de 1722.


«Carta de familiar do Santo Oficio passada a Domingos Antonio Rodrigues da Vila de llhavo com data de 13 de Abril de 1739.»


(índice da Legislação registada na Câmara de Ílhavo: 18 de Fevereiro de 1728 a 3 de Dezembro de 1739; pág. 10 da memória acima citada.)


Era uma indicação preciosa, que cuidadosamente guardei, tanto mais que o primeiro dos assentos vinha esclarecer o enigma duma velha certidão de idade que no meu arquivo de família eu possuía e na qual se falava dum meu colateral «António dos Santos Famaliar», das Ribas, casado com Júlia Nunes Vidal, do Vale de Ílhavo, no 1º quartel do século XVIII. O suposto e estranho apelido Famaliar, para o qual ninguém me dava explicações, era, afinal, a função social daquele meu remoto parente e não o que se imaginava.


Anos depois, em Setembro de 1925, comunicava-me o Presidente do Município uma proposta que lhe fora oficialmente enviada da Torre do Tombo, na qual um amanuense-paleógrafo declarava ter casualmente encontrado uma «diligencia do Bacharel Manuel Tavares de Sequeira e Sá, solteiro) filho do capitão Paschoal de Sequeira Ferrão, natural e morador da vila da Ermida, freguesia de S. Salvador de Ílhavo, Bispado de Coimbra», e se oferecia para fazer a respectiva cópia... à razão de 1$50 a lauda.

/ 294 /

Para a história anedótica dos nossos arquivos, fui guardando o ofício, que ainda conservo; e para futuros estudos da terra tomei nota de mais aquela indicação.


Outros nomes, depois, se foram juntando a estes, em número suficiente para justificar esta primeira notícia concreta que da Inquisição em Ílhavo aparece a público, e à qual outras espero poder acrescentar.


Para bem se compreender a importância histórica dos processos de habilitações do Santo Ofício de que existem na Torre do Tombo mais de 12.000 (a par dos 40.000 processos crimes a que HERCULANO se referia, como acima vimos, e que são coisas absolutamente diferentes), vejamos como se podia ser familiar do Santo Ofício.


O ritual da Inquisição está cuidadosamente registado, e com bastante individuação, no Regimento do Sancto Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal... impresso em 1613, e depois em 1640 e em 1774 com notáveis actualizações e diferenças de texto.


Ao nosso caso interessa o regimento de 1640, de todos o que por mais tempo vigorou e, porventura, o mais rigoroso.


Familiar do Santo Ofício não era qualquer indivíduo que tal pretendesse; tornava-se mister satisfazer a determinados requisitos; a Inquisição rodeava-se prudentemente de rigores com que dificultava o acesso ao exercício dos seus cargos, no intuito de obter para os respectivos serviços as vantagens materiais e morais duma boa selecção, embora mais tarde, principalmente depois da intervenção do Marquês de Pombal, e por conveniências políticas, essas reservas fossem diminuindo a ponto de aparecerem denúncias contra o procedimento ou contra a ascendência mais que suspeita de familiares seus.


Inerentes a tão ambicionado cargo (solicitado,  quantas vezes, com o secreto pensamento de obter um salvo-conduto contra possíveis impertinências da Inquisição) andavam, pois, obrigações de responsabilidade e procedimento, e condições pessoais a que nem todos os candidatos podiam satisfazer.


De tudo nos dá miúda conta o citado regimento de 1640.


Por ele se exigia que os familiares fossem pessoas de bom procedimento e de confiança e capacidade conhecidas, possuíssem quantidade de bens de que pudessem viver abastadamente, e satisfizessem às condições gerais obrigatórias a todos os Ministros e Oficiais do Santo Ofício, isto é: provariam que eram naturais do Reino, cristãos velhos de sangue limpo sem raça de mouro, judeu ou gente novamente convertida à fé de Cristo e sem fama do contrário; era necessário também não terem incorrido em infâmia pública de feito ou de direito, nem terem sido presos ou penitenciados pela Inquisição, eles ou seus ascendentes.


Era imprescindível que fossem de vida e costumes honestos
/ 295 / e capazes de se encarregarem de negócios de importância; para isso, assumia o candidato a familiar o compromisso de guardar absoluto segredo a respeito de tudo o que dissesse respeito a seu cargo, porque no Santo Ofício não há cousa em que o segrêdo não seja necessário, recomenda o Regimento expressamente.


Mas não ficavam por aqui os requisitos para o provimento no cargo de familiar: como os demais funcionários do Santo Ofício, teriam eles o cuidado de proceder em todas as suas coisas de forma a darem de si bom exemplo, tratando-se com a modéstia e decência convenientes a seu estado, não vexando pessoa alguma nem ameaçando com o poder de seus cargos; falando de pessoas que praticassem o judaísmo − gente de nação, lhe chama o Regimento − poriam grande cuidado em distinguir do delinquente o delito em si, manifestando piedade por aquele e abominando este, o que dava lugar à subtileza curiosa de se atormentarem os desgraçados que sob a alçada do tribunal caíam, e de se promover que fossem levados ao fogo, mas sempre com o coração a trasbordar de santa piedade.


Evitariam o suborno, recusando prudentemente dádivas de pessoas suspeitas ao Santo Oficio e, prevendo abusos e humanas fraquezas, estabelecia-se que não tomassem mercadorias ou mantimentos a pessoa alguma por menos preço do que o ordinário, nem pedissem dinheiro emprestado à tal gente de nação, procurando mesmo não contrair dívidas que pudessem causar queixas ou diminuir a autoridade que a suas pessoas e ofícios era devida.


Doutras obrigações dos familiares do Santo Ofício reza ainda o Título 21: assim, na véspera do dia de S. Pedro, mártir, sempre que lhes fosse possível, achar-se-iam na Inquisição do Distrito a que pertencessem para acompanhar o Tribunal e assistir com ele à festa de celebração do santo.


Quando houvesse auto-de-fé, acompanhariam os presos na procissão, envergando então os hábitos de familiar que só em tais ocasiões, ou quando fossem efectuar alguma prisão, lhes era permitido vestir.


A parte mais odiosa do seu cargo consistia na obrigação de darem conta imediatamente à Inquisição − com toda a brevidade e segredo − das ocorrências dos lugares onde residissem que porventura lhes parecessem conter quebra de fé.


Não faltavam privilégios, também, a tornar mais apetecido o referido cargo de familiar: um dos nossos historiadores que melhor conhece o arquivo do Santo Ofício e que ao seu estudo mais se tem dedicado − o Sr. Dr. ANTÓNIO BAIÃO, ilustre Director do Arquivo Nacional da Torre do Tombo − resume desta maneira os privilégios concedidos àqueles oficiais pela carta de 14 de Dezembro de 1562, ao escrever da Inquisição em Portugal e no Brasil, na pág. 8 do volume V do Arquivo Histórico
/ 296 / Português: ...«ficam isentos de pagar fintas ou quaisquer outras contribuições que os concelhos, onde eles sejam moradores, lhes exijam; da obrigação de acompanhar presos ou dinheiro; de exercerem a tutoria, a curatela ou quaisquer ofícios do concelho; de lhes tomarem, para aposentadoria, as suas casas de moradia ou cavalariças, que até lhes devem dar quando para isso tenham necessidade; de lhes tomarem o pão, ou qualquer outra cousa contra sua vontade. São, além disso, isentos do serviço militar e de ter ganchos à porta, podendo usar das armas ofensivas − espada, punhal ou adaga − e de todas as defensivas e podendo, assim como suas mulheres e filhos, vestir-se de seda, que só podiam trazer as pessoas que usassem cavalo. » (3)


Os oficiais leigos deviam saber ler e escrever.


Gozavam ainda, em determinadas circunstâncias, do privilégio de tribunal especial, que podia estender-se até os seus criados.
(4)


Felipe I confirmou todos estes privilégios em 31 de Dezembro de 1584.


Para se averiguar se o candidato reunia as precisas condições impostas pelo Regimento, o Santo Ofício organizava meticulosa investigação e complicado processo. Provém justamente dessa minúcia informativa o grande merecimento que para a História local esses processos de habilitação ficaram tendo: é a genealogia do candidato, as suas condições de vida e costumes, e de todos os seus ascendentes, iguais exigências se fazendo a respeito de sua esposa, se fosse casado, e, finalmente, um avultado rol de testemunhas que se inquiriam sobre todas estas particularidades e que nos ministram outros tantos nomes, profissões e datas que, muitas vezes, só por estes processos de habilitação se ficam conhecendo.


São, portanto, elementos de primeira ordem que se não podem desprezar na história duma localidade.


De como os familiares ilhavenses se desempenharam da actividade que o Regimento lhes impunha, não trataremos agora; vejamos primeiro quem eram alguns desses conterrâneos nossos que lograram alcançar a ambicionada carta de familiar, que lhes conferia, na terra, uma situação privilegiada, e arquivemos os curiosos elementos que os seus processos de habilitação nos fornecem.

/ 297 /
Eles nos permitirão visionar um pequeno e animado quadro da vida de Ílhavo de passados tempos.


Comecemos pelo ANTÓNIO DOS SANTOS (5). . .

Era natural das Ribas do Viveiro, termo da vila de ílhavo, filho dos lavradores João André e Maria dos Santos, naturais daquele mesmo lugar e aí moradores.


Neto patemo de André Fernandes e de Jerónima Manuel, aquele de Ílhavo e esta das Ribas, onde ambos moravam; neto materno de Manuel dos Santos, natural da Alagoa, e de Maria Manuel, da Coutada, e aqui moradores.


Tinha 23 anos quando requereu; a petição não está datada, mas dos despachos subsequentes se depreende que deve ser de 1705. Era solteiro, vivia com os pais, e tinha ordens menores, ou de prima tonsura.


Fundamenta-se o requerimento com a declaração, de grande importância para nós, de que à data não existia nenhum familiar no lugar do Viveiro, na vila de Ílhavo, e circunvizinhanças de Aradas, Sôza e Vagos.


Teria anteriormente havido outro, ou seria António dos Santos o primeiro familiar de Ílhavo?
Não tenho, por enquanto, notícia de algum mais antigo que em Ílhavo vivesse, mas não repugna crer que tivesse existido, e perfeitamente o admito.


Basta recordar que o Regimento a que nos vimos reportando estabelecia, logo no 1.º número do livro 1.º, título 1.º, que «Hauera mais em cada hum dos lugares marítimos hü Visitador das naos de estrangeiros, com Escriuão de seu cargo, hum guarda, & hum Interprete, & em cada hüa das cidades, vilas, & lugares mais notaueis, hum Commissario com seu Escriuão, & os Familiares, que forem necessarios».


É certo que no século XVII Ílhavo não era porto de mar visitado habitualmente por navios estrangeiros, nem, em rigor, jamais o fora, Não era, também, lugar notável; estava, contudo,
tão intimamente integrado no vasto estuário onde os navios ancoravam, que não era difícil conceber a possibilidade dum desembarque clandestino que tivesse por fim evitar Aveiro e a sua alfândega.


Ora o Santo Ofício estabelecera um verdadeiro cordão sanitário na costa marítima acessível com o fim de impedir a entrada de livros contrários à Fé católica que favorecessem as
/ 298 / seitas heréticas ou desenvolvessem o livre-pensamento; a Europa abrasava-se, em lutas religiosas e a Inquisição punha o maior cuidado na visita e inspecção das naus que do Estrangeiro chegavam aos nossos portos.


Um familiar em Ílhavo anteriormente a 1705 não seria, portanto, medida descabida ou precaução inútil. Mas, como digo, o António dos Santos é o primeiro de que tenho notícia, e declarava não existir nenhum a essa data. Possivelmente, mesmo, essas funções terão sido até aí exercidas por alguns dos priores da freguesia, comissários do Santo Ofício.


A investigação histórica tem ainda longo caminho a percorrer, e os Arquivos não dão o rendimento que a nossa legítima curiosidade neste e noutros capítulos deseja.


Foi a petição do habilitando enviada em 30 de Novembro de 1705 aos inquisidores de Coimbra que designaram o P.e Pantaleão Afonso Alfena, seu comissário e reitor de Fermelã, para proceder às diligências extrajudiciais.


Em 1 de Março do ano seguinte informa o P.e Alfena, baseado em elementos colhidos de Miguel Fernandes e Manuel João, marnotos, e do P.e Domingos dos Santos, irmão germano da mãe do suplicante e parente do familiar do Santo Ofício, Agostinho Coelho de Figueiredo, de Esgueira.


A informação é completamente favorável quanto a limpeza de sangue, fortuna e idoneidade do habilitando, seus pais e avós.


Sua mãe e tio pertenciam à família do P.e Manuel da Rocha, pároco que fora de Verdemilho.


Em Outubro de 1706 juntam-se ao processo certidões negativas das inquisições de Évora, Lisboa e Coimbra acerca das culpas do requerente nos respectivos, cartórios; e só em 26 de Junho de 1708 se fez a autoação da comissão dos inquisidores de Coimbra; foi escrivão o P.e Vicente Simões, sacerdote do hábito de S. Pedro, natural de Aveiro e aí morador.


Manda então a Inquisição de Coimbra que se proceda às diligências do costume e se interroguem as testemunhas segundo o questionário em uso, de harmonia com o Regimento.


Depõem as testemunhas: Maria Gonçalves, mulher de André Nunes, marnoto, natural e moradora em Alqueidão, freguesia de S. Salvador de Ílhavo; Manuel João da Pequena, marnoto, natural de Verdemilho, freguesia das Aradas, morador na Coutada; Ana Miguéis, de alcunha a Erveira, viúva de João António hortelão, natural de Aveiro e moradora na Coutada, freguesia de S. Salvador de Ílhavo; Manuel André, o Forte, pescador, natural e moraopr em Ílhavo; Manuel André, coveiro e sacristão na vila de Ílhavo, dela natural e nela morador; Manuel André, de Alcunha o Velho, marnoto, natural e morador em Ílhavo; Manuel Gonçalves da Rocha, alferes de ordenanças, natural e morador em Alqueidão, de 71 anos. Pedro André, das Cancelas, lavrador, natural de Alqueidão, morador
/ 299 / em Ílhavo; António André, de alcunha o Marieiro, lavrador e marnoto, natural e morador em Ílhavo; Manuel dos Santos do Cruzeiro, lavrador, morador e natural da freguesia do Salvador da vila de Ílhavo.

 


Os depoimentos das testemunhas são contestes, salvo em um ponto então importante: a limpeza de sangue.


Dizem todas que muito bem conheceram os avós do habilitando e o conhecem a ele e aos seus pais, de 20, 30 e 40 anos e mais; que são família de lavradores na linha materna e paterna e têm meios de fortuna e se tratam limpamente; que são pessoas idóneas, etc.


Algumas testemunhas são mais minuciosas: Assim, a primeira diz que conhecia os pais e avós por lhes ir vender peixe; o alferes de ordenanças conhecia-os pessoalmente e ia a casa deles beber vinho; Manuel João diz que se lembra de matarem na freguesia de Verdemilho um clérigo chamado Manuel da Silva, de alcunha «o Passarinha» , que era sobrinho do avô paterno do habilitando; Ana Miguéis, «a Erveira», informa minuciosamente acerca das naturalidades dos avós maternos do habilitando; Manuel André, disse que Manuel dos Santos tinha a alcunha de «Caneleiro da Alagoa», e um seu neto é o P.e Domingos dos Santos, tio materno do habilitando; que trouxera de renda um campo onde semeava nabos que o dito Santos lhe comprava para sustentar os seus bois; o sacristão Manuel André, conhece o pai do habilitando que já tem sido mordomo das confrarias na igreja paroquial, e tem-no visitado quando está doente; das pessoas da família do habilitando fala, além de outros, de André Fernandes, «o Furado», irmão de Domingas Fernandes, e esta mulher de Manuel Silveira, lavrador, pais do P.e Manuel da Silva, «o Passarinha» e avós do P.e António da Silva (ambos estes padres de Alqueidão) − todos aqueles lavradores; que se lembra de Manuel dos Santos ser juiz da confraria do Senhor na igreja paroquial de Ílhavo, e de o ver ir alimentar de azeite a lâmpada, todos os dias; a testemunha Manuel dos Santos conhece os pais do habilitando desde solteiros, «e no trabalho do rio onde ião conduzir estercos para suas fazendas» e que o avô materno do habilitando (o já referido Manuel dos Santos) «lhe fizera entrega a ele testemunha da vara de juiz deste concelho de Ílhavo na era de 1675 anos».


Desta parte dos depoimentos ressalta muito nitidamente que os pais e avós maternos do requerente eram e haviam sido sempre lavradores, naturais e moradores da região e sempre ali residentes. Sedentários e de profissão sedentária.


Quanto à limpeza de sangue é que as testemunhas variam nos seus depoimentos.


É assim que as 1.ª, 3.ª e 4.ª testemunhas, sem discrepância, dizem que todos − pais e avós do habilitando − são legítimos
/ 300 / e inteiros cristãos velhos, sem raça de judeu, momo, gentio, etc. e sem nenhuma fama ou rumor em contrário.


A 2.ª testemunha, abonando embora a limpeza de sangue dos avós do requerente, refere-se à fama e rumor que correu de ter sangue de cristão novo seu avô materno Manuel dos Santos, antes do P.e Agostinho Coelho de Figueiredo ter sido habilitado familiar do Santo Ofício, fama de que também sofrera seu tio materno o P.e Domingos dos Santos, sacerdote do hábito de S. Pedro, morador na Coutada, o qual, por isso, esteve muitos anos sem receber ordens. Porém, depois, de ser familiar do Santo Ofício o referido P.e Agostinho, que era da mesma família do habilitando, e natural e morador em Esgueira, tal fama desapareceu.


A 5.ª testemunha alude à fama de cristão novo do pai do habilitando, dizendo provir do P.e Domingos dos Santos, a quem, por ódio, um pároco de Verdemilho acusara de tal (não diz quem era o pároco); tal fama cessou completamente, e ela não sabe mais pormenores.


A 6.ª testemunha, reputando também os avós do habilitando pessoas cristãs velhas inteiras, refere-se todavia à fama de cristão novo do avô materno do habilitando, acrescentando que tal rumor desaparecera de todo depois que foi Prior desta freguesia e comissário do Santo Ofício o P.e Bento de Almeida, e pôde então tomar ordens o tio do habilitando a que nos referimos.


A 7.ª testemunha repete o que já as anteriores testemunhas haviam dito acerca dos padres Bento de Almeida e Agostinho Coelho de Figueiredo, este natural de Esgueira, e do facto de, então, poder tomar ordens o tio do habilitando e ficar restabelecido o crédito e bom nome da família.


As testemunhas 8.ª e 9.ª dizem exactamente o mesmo, por outras palavras; e bem assim a 10.ª testemunha, que acrescenta ter o P.e Bento de Almeida, prior de Esgueira, «trabalhado com tanto calor neste negocio» que conseguiu que o dito Domingos dos Santos fosse emfim ordenado.


A informação do Comissário, o P.e Pantaleão Alfena, datada de 7 de Julho de 1708, a seguir às inquirições, faz um resumo da questão no que respeita à filiação, residência e ascendência do habilitando, dizendo que ao lugar das Ribas do Viveiro chamam também Ribas da Coutada, e acrescenta:


«...de presente existe na freguezia de Ilhavo de onde todos os sobreditos eram naturaes um clerigo chamado Antonio da Silva, neto dos mencionados Manuel da Silveira e Domingas Fernandes. Pela parte de sua Avó materna Maria Manuel do logar da Coutada, da mesma freguezia, tambem se tem a mesma diligencia, pois ha um sobrinho desta, chamado o P.e Manuel Gonçalves Fragoso de Verdemilho, filho de um irmão inteiro, por nome Manuel Gonçalves, e assim por parte desta
/ 301 / avó materna, como dos avós paternos nunca houve o mais leve rumor contra a limpeza do seu sangue, mas sim, sempre, conservaram a boa fama de limpos, sem alguma raça de nação infecta. No particular do seu avô Manuel dos Santos, «o Caneleiro», o qual nasceu em Verdemilho, freguezia de S. Pedro das Aradas, freguezia mais vizinha de Ilhavo do que das portas de Santa Sofia ás grades de Santa Cruz. Este «Caneleiro», bisavô do habilitando foi filho de Manuel dos Santos e sua mulher Maria Manuel irmã inteira do P.e João da Rocha moradores no lugar de Verdemilho; não poude averiguar por pessoas antigas nem por livros da mesma freguezia de S. Pedro das Aradas (que estão feitos pedaços e não diz uma pagina com outra) quaes foram os paes destes irmãos, como tambem de uma irmã chamada Antonia da Rocha, a Couteira, nem parentes deste me dão noticia alguma, como o P.e Manuel da Rocha desta vila de Aveiro, cuja mãe tratava ao dito P.e João da Rocha por tio; e de um chão que foi deste clerigo se fez o patrimonio ao dito P.e Manuel da Rocha. Deste nomeado P.e João da Rocha nasceu o rumor que causou o impedimento ao P.e Domingos dos Santos, da Coutada, irmão inteiro da mãe do habilitando, de que falIam tantas testemunhas nesta inquirição, o qual purgou o impedido em vida do Prior Bento de Almeida, comissario do Santo Oficio, e tenho certeza foi sentenceado o dito impedimento por nenhum, no ano de 1672, e me lembro de ouvir dizer publicamente que o fazer-se familiar do Santo Oficio Agostinho Coelho de Figueiredo fora mui util para o credito de muitas pessoas de Verdemilho, e se falava neste sacerdote Domingos dos Santos, da Coutada; a V.ª S.ª remeti um papel com a inquirição de um fulano Pinheiro, da freguesia de Valongo, parente do prior de Alquerubim (e me persuado faz para Outubro 3 anos), e dele consta a ascendencia de Agostinho Coelho de Figueiredo, que vae ao paço de Brandão, termo da Feira, bispado do Porto ele (?) nomea descendente de uns fulanos da Rocha e fulana de Castro, dos quaes, cuido eu, diz o papel, ou outro dos que foram com a mesma inquirição, procedera um clerigo que fora paroco em Verdemilho, e deste fora filho ou neto o dito P.e João da Rocha, pela qual razão, sendo familiar o dito Agostinho Coelho de Figueiredo, ficara corrente o P.e Domingos dos Santos, por bisneto de uma irmã do dito P.e João da Rocha. Meu irmão Manuel de Figueiredo Alfena, que faleceu, faz em Abril deste ano, quatro, e tinha 78, me disse que André de Figueiredo, comissario do Santo Oficio, e seu tio, servira de arcipreste nesta vila, e era seu escrivão o dito P.e João da Rocha; e em diligencias do Santo Oficio escrevia com o P.e Miguel João Reverendo (sic), e isto pelo rumor que havia contra o dito P.e João da Rocha. Seria a causa do dito rumor o que alcancei, e não me lembro se dei conta a V.ª S.ª na informação do dito fulano Pinheiro, e é que estes Rochas procedem de uns fulanos / 302 / Tamancas do Porto, que fazendo-se, ou em sua casa ou em sua companhia, uma prisão por parte do Santo Oficio, levaram isto a mal e resistiram ou fizeram algum agravo ao familiar, do que resultara ser preso o sujeito agravante, de cuja prisão no vulgo ficou a memoria de ser preso este ascendente de tantas famílias, sem examinarem a causa da dita prisão. Este dito P.e João da Rocha era sacerdote no ano de 1623, como consta de um baptisado, cujo termo está em um livro na 2.ª pagina; no ano antecedente era paroco um Francisco Ferreira, e no seguinte ao dito baptismo um Pedro de Andrade. Manuel André lavrador, morador e natural de Verdemilho, filho da Serena, me disse que seu sogro chamado Manuel Francisco, o Picão, que faleceu ha 11 anos e era de 80 naquele tempo, lhe dissera que o dito padre João da Rocha era filho de um paroco que fora da dita freguezia de S. Pedro das Aradas; porem não ha livro nem memoria que verifique do dito Manuel André Sereno, salvo a inquirição do dito P.e João da Rocha, que ha de estar no cartorio da Camara eclesiastica deste bispado, e é que o dito P.e Domingos dos Santos se valeria dela.»


Conclui por informar favoravelmente quanto aos outros requisitos do habilitando.


Tem lugar, a seguir, o parecer do membro do Conselho Geral João Duarte Ribeiro, datado de Lisboa, 28 de Outubro de 1710.
Resume o parecer do comissário e os depoimentos das testemunhas e conclui por dizer que se remeta a diligência aos inquisidores de Coimbra, a fim de pedir ao Ordinário as inquirições do P.e Domingos dos Santos e que o, secretário do Conselho (Geral) ajunte à diligência a habilitação do familiar Agostinho Coelho de Figueiredo.


Infelizmente não estão juntas ao processo nem uma nem outra coisa.


Em 17 de Abril de 1711 informa novamente o mesmo conselheiro João Duarte Ribeiro; transcrevemos na íntegra o seu parecer:


«Vi segunda vez estas diligencias de Antonio dos Santos com as do seu tio materno Domingos dos Santos e as do familiar Agostinho Coelho de Figueiredo, que no meu despacho de 28 10-1710 mandei juntar para se averiguar a forma que se dá ao pretendente por via de sua mãe e avô materno Manuel dos Santos pelo que ponderei no dito despacho e por as ditas diligencias e as a elas apensas consta que a familia do pretendente pela dita via teve por muitos anos impedimento na pureza de seu sangue que nunca prevaleceu por via de uma sua ascendente Catarina de Castro e suas irmãs. Porem constou pelas diligencias que se fizeram que Sebastião Jorge da Rocha e sua mulher Izabel de Castro ella natural das partes da cidade do Porto, e ele natural da Quinta de Baixo, freguezia de Passo (sic)
/ 303 / do (sic) Brandão e comarca da Feira, foram paes de Catarina de Castro, Helena de Castro e Maria de Castro, e Jeronimo da Assunção, frade loio, e o P.e Manuel da Rocha que foi clerigo; e que da dita Catarina de Castro, primeira filha dos ditos Sebastião Jorge da Rocha e Izabel de Castro que foi casada com Afonso Godinho, Almoxarife na vila de Aveiro, para onde ele veio, nasceu Brites Godinho que casou com João Gomes Pinho, e destes nasceu Branca de Pinho que de seu marido André Dias teve a Manuel Godinho; e tambem nasceu a dita Brites Godinho [e] Maria Gomes, que de seu marido Antonio Duarte Ferreira, capitão mor de Esgueira teve a Antonio Godinho. O qual e o dito seu primo Manuel Godinho tiveram sentença a seu favor no ano de 1634 contra Domingos Mateus Vinagre, sendo este condenado pela injuria de lhe chamar judeu, e se confirmou na Relação do Porto, como consta da fl. 89 da diligencia do dito Agostinho Coelho; e tambem consta da mesma diligencia (ou sentença?) que do mesmo João Gomes Pinho e de sua mulher Brites Godinho, nasceu Pedro Godinho Barbosa, juiz dos orfãos da vila de Esgueira, que atendendo a dita fol. 74 do dito familiar era pae de Brites Godinho mais do dito Agostinho Coelho de Figueiredo, que depois de interlocutorias diligencias feitas no Passo do Brandão, terra da Feira, foi julgado por cristão velho, e que a dita fama era falsa, como se vê dos despachos dellas de Novembro de 16...1 (6) e se lhe passou carta de familiar do Santo Oficio. Consta tambem que da dita Helena de Castro, filha 2.ª dos ditos Sebastião Jorge da Rocha e sua mulher Izabel de Castro, e de seu marido Baltazar Coelho da Costa moradores em Requeixo, comarca de Aveiro, nasceu Maria Coelha, natural de Requeixo que de seu marido Manuel Pimentel, da vila de Aveiro, nasceu Roque da Costa Pimentel, que de sua mulher Madalena da Silva Pimentel, moradores (sic) em o logar de Carvalhaes, freguezia de Santiago da Mouta teve a Manuel Pereira Pimentel, que depois de ser clerigo, habilitando-se para ser Prior da dita Igreja de Santiago da Mouta, e pondo-se-lhe o mesmo impedimento e mostrando mais ........ habilitassem no mesmo bispado de Coimbra de se lhe mandar purgar o impedimento apelou para Braga onde teve sentença a seu favor no ano de 1667, e foi provido na dita igreja como consta das diligencias a do dito familiar Agostinho Coelho de Figueiredo. Consta que da outra filha 3.ª Maria de Castro, que foi para a Castanheira, bispado de Coimbra, e casou com Heitor de Macedo nasceram descendentes que tambem se habilitaram. Finalmente consta que o dito 5.º filho Manuel da Rocha, filho dos ditos Sebastião Jorge da Rocha e Izabel de Castro, foi clerigo aprovado sem duvida de Verdemilho, que teve uma filha chamada Izabel da Rocha, que legitimou, e de / 304 / seu marido Manuel Cortes, da vila de Aveiro, teve uma filha que casou com Manuel dos Santos e um filho chamado João da Rocha, que foi da vila de Aveiro e habilitado para ordens, que tomou por sentença da Relação Eclesiastica de Coimbra, de 13-9-1632, como consta do 3.º apenso ás diligencias do P.e Domingos dos Santos que se apensaram a estas diligencias. E da dita filha, que casou com o dito Manuel dos Santos, nasceu outro Manuel dos Santos; que de sua mulher Brites André nasceu outro Manuel dos Santos; que de sua mulher Maria Manuel nasceu Maria dos Santos e Domingos dos Santos, que juntando ás suas diligencias estar habilitado o P.e João da Rocha, irmão de sua bisavó, e ser familiar do Santo Oficio Agostinho Coelho de Figueiredo, foi julgado por cristão velho por sentença da Relação de Coimbra de 16-5-1682, e foi clerigo, porque o unico impedimento provinha dos ditos ascendentes que vieram do Passo de Brandão. E da dita Maria dos Santos nasceu o filho a quem, pela dita mãe e avó materna, se pôs pelas testemunhas mencionadas no dito meu 1º despacho pela mesma via que tem por falso, e eu por falso julgo o rumor de cristão novo de que as ditas testemunhas depoem. Porque alem de por tal estar julgado tantas vezes é nascido e mal afectos por virem seus ascendentes de fora; se conhece que nas suas patrias originaes não ha tal fama e são e foram sempre tidos e havidos por cristãos velhos, pelo que seus descendentes foram julgados limpos de sangue, como foi Antonio Pinto Godinho, filho do licenciado Pedro Leitão e sua mulher Brites Godinho, neto materno de Antonio Duarte Ferreira e Maria Gomes, acima declarado, em 6 de Novembro de 1666; e Manuel Godinho e Antonio Godinho foram abades da igreja do Passo de Brandão chamada S. Ciprião; e outros muitos foram clerigos religiosos e freiras, como tambem curas de almas, que consta de diligencias apensas........»


Conclui por dar o habilitando como capaz de ser familiar, como requereu.


A seguir, tem o voto concorde de João Moniz da Silva, de 8 de Maio de 1711.


Por fim, decorridos seis anos de inquirições, despachos e expectativas, foi passada carta de familiar a António dos Santos em 2 de Julho de 1711.


Grande, e justificada, deve ter sido a satisfação quando tal notícia chegou às Ribas; António dos Santos ascendera a uma posição de destaque na hierarquia social; passava a ser das mais importantes pessoas da terra e, porventura, a mais temida de todas elas.


«A carta de familiar era, num país tão saturado de sangue judaico, altamente apreciada, e para a alcançar não se receavam os nossos antepassados de empregar os meios que são de
/ 305/   [Vol. I - N.º 4 - 1935]  conjecturar», comenta PEDRO DE AZEVEDO no estudo que dedicou a Os familiares do Santo Ofício em Vila Real (7).


Ainda noutro lugar o grande investigador nos dá conta das amargas conclusões a que a sua larga observação o conduzira, e escreve:

... «Por estes processos [dos familiares do Santo Ofício] vim a ganhar a convicção de que o aparecimento numa família de familiares, cavaleiros de ordens militares ou eclesiásticas, tanto seculares como regulares, e de bachareis em direito, não prova que ela fosse de origem cristã-velha.

Um comissário do Santo Ofício que se deixasse subornar por interesses pessoais ou materiais podia dirigir o inquérito de forma que um indivíduo mais que suspeito no sangue fosse dado por limpo, o que é confirmado por casos que se amontoam, quanto mais nos apartamos do século XVI, período em que ainda estavam na lembrança as origens cristãs e judaicas de cada um.


Para aumentar a confusão sucede que no século XVI e principio do século XVII não havia disposição que proibisse a entrada nas ordens religiosas e na nobreza a cristãos-novos e como mais tarde era ignorada esta circunstância, dava-se como prova da limpeza de sangue de uma família a existência nela de eclesiásticos e cavaleiros»
(8).


Em 1722, António dos Santos deliberou casar; de harmonia com o regimento do Santo Ofício, não o podia fazer sem autorização do tribunal, que mandava organizar processo de habilitação para as pretendidas consortes talqualmente como para os familiares, apensando-se depois ao processo do marido.


Requereu, portanto, o futuro marido, nosso conhecido já, diligências a favor de Júlia Vidal (no baptismo Juliana, crismada depois em Júlia) com quem desejava contraír matrimónio.


A habilitanda era filha de João Nunes e Isabel Vidal, naturais e moradores no lugar do Vale de Ílhavo de Cima, termo e freguesia de Ílhavo; neta paterna de Manuel Nunes, o «Neto», e
Maria Francisca, de alcunha a Maria Pequeno, naturais e moradores no Couto da Ermida; neta materna de Domingos André, o «Madanelo», natural e morador no Vale de Ílhavo, e de Antónia Vidal, natural do Ribeiro da Arrancada, freguesia de Vale Corgo, termo da vila de Broninhido (sic). Foi baptizada em 22 de Fevereiro de 1685, omitindo o assento a data do nascimento.


Por despacho de 22 de Maio de 1722, promovem os inquisidores de Coimbra as diligências, nos termos do Regimento. Vejamos como foi instruído o processo.


Certidões negativas dos notários das Inquisições de Lisboa,
/ 306 / Évora e Coimbra acerca das culpas da habilitanda. Certidão, de 21 de Junho de 1722, do notário da Inquisição de Coimbra de como, a fl. 57 do livro 10 respectivo, estava registada a carta de familiar de António dos Santos.


Mandado dos Inquisidores de Coimbra ao comissário e Licenciado Amaro Duarte Cardoso, Prior das Talhadas, para proceder às diligências, de 3 de Maio de 1772. Autoação e apresentação do mesmo, feita na igreja do Salvador, em Ílhavo, servindo de escrivão o P.e Manuel Diogo.

Foram inquiridas as seguintes testemunhas: P.e Manuel Nunes da Fonseca, clérigo do hábito de S. Pedro, natural e morador no lugar de Alqueidão, freguesia de Ílhavo; Domingos da Cruz Álvares, barbeiro e sangrador, natural e morador no lugar da Ermida; João André, viúvo, lavrador, natural e morador em a vila de Ílhavo, de cerca de 90 anos; Manuel João, o
«Torrão», viúvo, natural e morador na Ermida; João André, viúvo, lavrador, que foi alfaiate, natural e morador em Ílhavo; Manuel André, viúvo, lavrador, natural e morador em Ílhavo; João Gonçalves, jornaleiro, natural e morador em Ílhavo.


Os depoimentos são destituídos de interesse e apresentam quase completa uniformidade. Diz-se que os pais são rendeiros e vivem de suas fazendas, e que em tempos o pai foi alfaiate; que os avós maternos eram moleiros de uma sua azenha é viviam de suas fazendas; que as testemunhas os conhecem pessoalmente há 20, 30, 40 e 60 anos; etc. Os depoimentos são unânimes quanto à limpeza de sangue da habilitanda e de seus pais e, de
todos os seus avós, dizendo que nunca houve fama ou rumor, em contrário.


Segue-se a inquirição das testemunhas no lugar da Arrancada, freguesia de S. Pedro de Valongo, na capela de N. Sr.ª da Conceição, feita pelo P.e Amaro Duarte Cardoso, Prior da igreja de S. Mamede das Talhadas, comissário do Santo Ofício, e pelo escrivão P.e Manuel Diogo. De 12 de Junho de 1722.


Foram inquiridos: António Vidal, lavrador, viúvo, natural da Arrancada; Manuel Rodrigues, lavrador, natural e morador da vila de Bronhido; Miguel Ferreira, lavrador, natural e morador no lugar da Arrancada. Depoimentos de reduzido interesse; todos, unanimemente, atestam a pureza de sangue dos pais e avós da habilitanda. Segue-se o parecer do comissário, de 19 de Junho de 1722, favorável inteiramente. Transcrevem-se os termos de baptismo da habilitanda e de seus pais, e do casamento de seus avós paternos e maternos.


Parecer de 27 de Junho de 1722 do deputado do Conselho Geral, Francisco Carneiro de Figueiroa, que, embora favorável inteiramente à pretensão da requerente, nota não terem sido cumpridas as prescrições do Regimento pois que só se inquiriram 8 testemunhas, e, no lugar da naturalidade da avó materna da requerente, 4; todavia, para não demorar mais o casamento,
/ 307 / propõe se dispense a irregularidade. Votam também neste sentido mais 5 deputados.


Em 11 de Julho de 1722 foi mandado aviso à Inquisição de Coimbra de estarem aprovadas as diligências.


Se nos lembrarmos dos seis longos anos que o processo de António dos Santos levou a organizar, e se notarmos agora que as diligências a respeito de Júlia Vidal foram ondenadas em 22 de Maio de 1722 e estavam concluídas em 11 de Julho desse mesmo ano, tendo-lhe sido dispensada, ainda, a irregularidade duma deficiente inquirição de testemunhas, talvez seja lícito concluir que António dos Santos, por serviços prestados, por consideração que pessoalmente merecesse, ou por qualquer outro motivo ainda, dispunha de inegável influência dentro do tribunal do Santo Ofício da Inquisição, pois só assim se explica o rápido despacho que a sua petição obteve.


António dos Santos e Júlia Nunes Vidal tiveram descendência e prosperaram em bens e consideração; com uma filha deles (Joana Clara Vidal da Silveira) casou o capitão-mor João dos Santos Carrancho, pessoa das mais abastadas da terra, que depois se transferiu para Mafra, onde ficou ao serviço particular do príncipe D. João, regente do Reino, depois D. João VI.


Convidado a acompanhar a família real ao Brasil, preferiu perder a amizade do príncipe a deixar o Continente, e em Mafra acabou seus dias.


Existem em Lisboa descendentes seus, directos, e, em Ílhavo, colaterais.

A. G. DA ROCHA MADAHIL

Continua no vol. 3, pág. 311 ►►►

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(1) Sempre que a essa imprescindível necessidade se alude, ouve-se como resposta que seria insuficiente a vida de quem a semelhante tarefa se dedicasse, pois não lograria vê-la concluída... Tão longe o espírito dos nossos arquivos anda dos trabalhos colectivos, obra de gerações sucessivas, e tanto nos custa, a todos, emancipar-nos da nossa própria personalidade...   

(2)Decorre da pág. 9 à pág. 13 do opúsculo lLLIABUM − Série de subsídios para a história de Ílhavo − I − Um projecto de brasão de armas concelhio. Coimbra, Gráfica Conimbricense, Ld.ª, 1922.      

(3) Esta carta de privilégios se encontra igualmente publicada, na íntegra, a pág. 220 do 3.0 volume do Systema ou Collecção dos Regimentos Reaes, e também no voI. 12 de O Instituto, a pág. 48, num estudo de JOÃO CORREIA AIRES DE CAMPOS.
O Sr. Dr. ANTÓNIO BAlÃO, no Arquivo Histórico Português, aduz grande bibliografia acerca da Inquisição.
  

(4) Systema cit. pág. 223, Alvará de 20 de Janeiro de 1580. 

(5) Tem a sua diligência o n.º 1143 na Torre do Tombo. Devemos a cópia deste processo, que temos presente e da qual extraímos as informações que publicamos, à extrema generosidade do nosso bom amigo e ilustre Conservador do Arquivo Nacional, Prof. Dr. João Martins da Silva Marques. Aqui tributamos a S. Ex.ª os melhores e sempre devidos agradecimentos. 

(6) Ilegível o algarismo das dezenas.  

(7) Arquivo Histórico Português, voI. 9, pág. 46.  

(8)  Da limpeza de sangue das familiares de Vila Real, in Arquivo Histórico Português, voI. 1º, pág. 18.

 

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