Para o estudo geográfico que
venha a fazer-se do concelho de Ílhavo, estudo que até certo ponto conduzirá à compreensão dos destinos históricos da terra, e
permitirá que se ensaie a filosofia da vida do município, remate e
complemento da sua história, têm de ser tomados em consideração, como é
intuitivo, os cursos de água locais.
A vila, como noutro lugar notámos já(1), e facilmente se reconhece,
assenta sobre os arenitos e argilas do Senoniano, à
beira justamente da linha de transição entre essa mancha cretácica e
os terrenos modernos do litoral, dentro, portanto, do limite que a
Geologia e a Arqueologia marcam à antiga linha do mar.
Não pode dizer-se que seja pouco rica de águas porque em quase todo o seu perímetro o subsolo fornece à população, por
intermédio de poços pouco profundos e que se abrem com facilidade, o
caudal necessário para consumo e para regas; fontes públicas abastecem, ainda, várias zonas da vila.
Ílhavo é, contudo, pobre de
cursos de água; três ribeiras atravessam o centro da povoação, algumas
outras lhe correm a Norte e a Sul, mas todas de reduzido caudal; possivelmente pertencerão à mesma
toalha aquática subterrânea, orientada a Sudeste da vila, que,
convenientemente explorada, talvez permitisse um abastecimento em
melhores condições de abundância e de higiene.
Como quer que seja, vem de longa data o aproveitamento desses pequenos
cursos de água para accionar engenhos de
moer grão; ao lado deles, também, férteis veigas se têm formado donde uma permanente e remuneradora cultura agrícola
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extrai incessantemente os magníficos géneros que no mercado
da vila nunca faltam.
À volta desses cursos de água se desenvolveu e foi fixando, como quase sempre sucede, o pequeno núcleo de população que deu
origem a uma parte da vila; os documentos medievais por nós publicados (op.
cit.) permitem identificações concludentes, bem como a situação dos
casais pertencentes às congregações religiosas que possuíam domínios em
Ílhavo; ainda hoje perduram na toponímia local designações como azenha
dos frades, e outras.
Concedido o senhorio da terra a um donatário, compreende-se que os
terrenos sobre que incidiam os direitos senhoriais fossem objecto de
especial fiscalização; assim terá sido, portanto, que em 1772 D. José
Joaquim Lobo da Silveira requereu, na qualidade de administrador dos
bens de sua esposa, D. Joaquina Maria de Almada Castro e Noronha, 12.ª
donatária de Ílhavo, provisão régia para continuar uma anterior tombação
das águas das azenhas de todo o concelho, então interrompida, e fixar os
foros e cabanarias por elas devidas.
Esse documento, de capital importância para o estudo do
regímen de águas da vila, publica-se agora pela primeira vez, ao que
supomos; servimo-nos para isso da cópia que possuímos,
proveniente do arquivo da casa Rocha Fradinho, hoje propriedade nossa.
Sabemos que na Quinta do Picado, na casa Tavares Lebre,
existia, em tempo, outra cópia igual, bem como em Vale de Ílhavo; há poucos anos foi também presente
este tombo de
águas num pleito que se derimiu no tribunal de Aveiro; são todas
provenientes do mesmo original, que o procurador dos donatários em
Ílhavo possuía, documento autêntico com valor probativo em juízo, e cujo
paradeiro hoje desconhecemos.
A partir daqui, as páginas
seguintes (184 a 197) estão reproduzidas em formato PDF.
A parte final do artigo,
págs. 197 e 198, estão em formato HTML.
DOCUMENTO EM
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Como VALLAUX
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Géographie sociale: le sol et l' État
−
entendemos ser de rejeitar o determinismo físico absoluto, segundo o qual as
sociedades políticas seriam governadas por um ou mais agentes naturais;
é inegável, todavia, que o regímen das águas duma povoação condiciona
sempre, e explica, avultado número de factos da vida quotidiana que mais
tarde, depois de agrupados, constituem objecto de história, esquecida,
por vezes, a humilde e comezinha razão que os provocou e lhes deu
origem.
O tombo acima publicado, sujeito, aliás, a confronto com o seu
desaparecido original a fim de se eliminar qualquer possível inexactidão
da cópia utilizada, que nem sempre era de fácil interpretação,
constitui, como já fizemos notar e pela sua leitura se verifica,
elemento importante para o estudo da vila.
A simples relação dos foreiros e dos respectivos casais oferece-nos
apreciáveis subsídios para a topografia, o onomástico e a economia da
terra; juntos a outros que possuímos, a seu tempo se aproveitarão
devidamente.
Para o cálculo, não feito ainda, dos rendimentos do senhorio da vila,
também não é destituída de interesse a relação, pois deles nos
documenta uma parcela; recebia o donatário, das pensões julgadas pela
sentença do Juiz do Tombo, 42 arráteis de cera, 64,5 alqueires de trigo,
62 capões e 3 galinhas, entrando já para este total as 21 cabanarias, a
cada uma das quais no próprio tombo se dá, e por mais duma vez, a
equivalência de um
alqueire de trigo e um capão.
Publicámos já em 1922 (op. cit.) o foral novo, de 1514, outorgado a
Ílhavo na reforma manuelina; para o conhecimento do regímen tributário
da vila, outro elemento se arquiva hoje com o presente tombo das
azenhas, águas e levadas, recebido em 4 de Agosto de 1775 nos Paços de
Verdemilho, com a respectiva sentença do Dr. Francisco Pinheiro de
Sampaio, Juiz do tombo nas
terras do morgado de Carvalhais, e vilas de Ílhavo, Ferreiros e
Avelãs de cima; de tudo o escrivão Manuel Rodrigo (ou Rodrigues?) da
Silva deu conta e relação.
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Aos nossos leitores oferecemos o inventário por ele organizado, tal como
a nossa cópia o regista. Actualizámos apenas a ortografia, por se não
tratar de traslado coevo, autenticado ou passado segundo os preceitos
que o próprio tombo prescrevia. Conquanto a casa de cujo arquivo esta
cópia provém fosse enfiteuta de azenhas e vessadas que estas águas
atravessavam e, em determinada época, tivesse, mesmo, a representação
dos donatários, a verdade é que a presente cópia é posterior à extinção
do antigo sistema tributário. Feita, talvez, sobre um traslado
autêntico, mas não extraída do próprio original, a sua ortografia não
nos pareceu tão segura que entendêssemos dever reproduzi-la.
No mais, a nossa leitura, conferida, está conforme, como se diz em
estilo tabeliónico.
A. G. DA ROCHA MADAHIL
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