I
ARTIGO PREAMBULAR
Esta palavra Geologia aterroriza quantos a desconhecem.
O cientifismo evidente do vocábulo, a ideia álgida que nos sugere o
pensar em camadas subterrâneas, a aparente frieza dos seus descritivos,
a real
petrificação das rochas, dos fósseis e dos estratos, a arrevesada
nomenclatura que essa ciência utiliza, a complexidade da taxonomia, de
que se serve, a vastidão dos conhecimentos de que necessita, a
multiplicidade de aspectos que foca, o emaranhado de problemas que
profunda e tenta resolver, fazem com que gente inúmera ignore
desrazoavelmente a sua utilidade e passe ao largo dos seus domínios como caravana arreceada, sem penetrar no
jardim maravilhoso da sua beleza.
E no entanto a Geologia não é mais difícil, nem mais árida, nem mais exigente que qualquer outra ciência.
Se o fora, não poderia a modéstia das minhas faculdades fazer dela uma
predilecção do meu espírito, nem a minha tendência de homem mais
propenso a lidar com letras e artes que com ciências naturais, físicas
ou exactas, se adaptaria às exigências do seu conhecimento.
Foi a Geografia que me levou ao seu estudo e foi o seu estudo que me fez
verdadeiramente o que eu sou hoje: um devoto da Terra, deleitando-me na
contemplação dos seus mistérios, dos seus recursos e dos seus encantos
e na decifração dos seus enigmas, como as imaginações fogosas se
deleitam no passo dos romances de enredo e aventura.
Disse um dia o grande estatuário TEIXEIRA LOPES numa roda de
admiradores em que eu me encontrava: penso como
/
162 /
Rodin. A beleza do homem está no esqueleto. Os
músculos são ornamento da ossatura!
(1)
Analisando o segmento litoral do extremo ocidente europeu, compreendido
entre o Douro e o Mondego, no país português, fui levado a parafrasear o ditame dos dois gloriosos
escultores e, de mim para mim, afirmei: a beleza da Terra está
na Geologia. A paisagem é, essencialmente, o exterior fisionómico, de
um complexo geográfico.
E cheguei à conclusão de que para se compreenderem
aquelas formas superficiais da Terra que formam o relevo e dão a cada
país o seu aspecto peculiar, em que a combinação da
morfologia com o revestimento provoca em nós o amor do torrão natal ou o
mero sentimento admirativo, é indispensável
penetrarmos nas suas entranhas. O carácter geográfico e a paisagem duma
região resultam assim o complemento da estrutura.
Na mão do engenheiro a Geologia representa apenas um
manancial de utilidade, riqueza que fornece ou mero instrumento capaz de
desviar obstáculos, resolver problemas materiais ou assegurar o êxito de
uma iniciativa.
Para aqueles que a cultivam e amam e para todos nós os seus amadores,
esta ciência é mais alguma coisa ainda: uma série de pontos da curva
estética da Natureza que começa no
cristal e se perde no Infinito!...
*
Depois do terciário é a Geologia quem nos orienta na descoberta dos primeiros passos do Homem; é ela quem nos oferece os documentos mais vetustos da história da civilização.
Geologia e Arqueologia dão-se as mãos nos alvores da Pré-história em uma transição tão lenta e numa união tão íntima que
o espírito se deslumbra com semelhante concordância e tão completa
harmonia.
E, ao mesmo tempo, o espírito perturba-se na procura das
origens e na pesquisa das formas primitivas, vendo escoarem-se os milénios, e meditando no tempo decorrido e no esforço da
razão humana entre o que seria a fase dos eolitos e a fase nitidamente
/ 163 / paleoIítica, isto
é, desde que o homem utilizou o primeiro
calhau para aumentar o seu poder, até que teve a arte
de fabricar com a quartzite, com o sílex e com o osso admiráveis artefactos, assistindo às inenarráveis vicissitudes das tempestades do quaternário, às glaciações e aos dilúvios, e a tudo
resistindo para povoar o orbe quando os elementos se abrandaram e ele pôde proclamar-se, de facto, o rei da Criação.
Da Geologia à História vai, como se vê, pequeno passo,
bem mais curto que o que liga a Geologia à Astronomia
−
e esse
passo, de milhares de anos, aliás, chama-se Pré-história e a Pré-história é o laço que une essas duas ciências, no início tão afins.
Numa das minhas visitas a Madrid adreguei dirigir-me um
dia ao Prado, logo depois de ter examinado no Museu Arqueológico Nacional as reproduções dos bisontes da caverna de AItamira. Ao ver na galeria magnífica os Borrachos de Velasquez, as
Virgens de Murillo e as Majas de Goya, compreendi
melhormente, como numa revelação súbita, toda a história ancestral das nossas artes plásticas e toda a
ânsia criadora dos
eleitos que de Fídias a Miguel Ângelo e de Apeles a Rafael, continuaram a obra dos artistas trogloditas que na obscuridade
das grutas do madalenense, abrigados do rigor do tempo,
esculpiam e pintavam, soberbas de realismo, as cenas favoritas
da caça e da magia.
Essa hora foi para a minha devoção pelos assuntos geológicos e arqueológicos uma hora de rejuvenescimento, como
aquela em que EDGARD QUINET, descobrindo os termos da relação entre o domínio das ciências naturais, particularmente das
geológicas, e o das ciências históricas, morais e literárias, pôde
exclamar:
− «Se a história da Natureza esclarece a história do
homem, reciprocamente, a história do homem pode esclarecer a
história da Natureza porque ambas fazem parte do mesmo conjunto e obedecem à mesma lei.
Se o espírito humano organizou sucessivamente Estados,
formou línguas e construiu templos de Planos diferentes, por
que é que, seguindo as mesmas leis, a Natureza não teria formado
as suas floras e as suas faunas diversas?
A Arquitectura é a concha do molusco humano. Há a concha
do molusco hindu, persa, egípcio, grego, romano, gótico, que se
chama respectivamente: hipogeus, pirâmides, Partenon, Panteon,
catedral.
Como é que os amonites deram lugar às conchas relativamente modernas?
Esta questão é do mesmo género desta outra:
como se fez a
passagem do templo egípcio para o Partenon e do Partenon para
Notre-Dame de Paris?
Se ignorássemos as formas intermediárias, seria impossível
responder.»
Foi por esta razão, adivinhada por EDGARD QUINET, que,
/
164 /
mercê da Geologia, a velha Terra me pareceu também, como
a ele no meio dos Alpes, mais jovem e mais bela e surgiu aos
meus olhos como o maior dos livros, a Bíblia das Bíblias, o mais rico e
vasto de todos os Museus, a História de toda a História.
E assim a Geologia que eu pensava pôr de banda por a
julgar desnecessária, retomava na minha sede de conhecimentos
um lugar primacial, o lugar de uma fonte, perene de ensinamento e preciosa de claríssima verdade!
Nunca mais deixei de beber da sua linfa e de me servir da
sua luz para ver melhor o solo que piso e a terra que adoro.
Por isso penso que a formação perfeita da consciência pátria de um povo exige uma consciência geográfica de que a Geologia é um
elemento basilar e indispensável.
*
Porém, outras pessoas mais competentes poderiam tomar a
peito ou enriquecer sobremaneira a secção geológica necessária
neste ARQVIVO.
O pesado encargo que assumo não poderá ir muito além
das generalidades e das anotações bibliográficas e não pode ser
desempenhado por um estudo completo e ordenado cronologicamente com o rigor que seria mister.
Além disso, muitos problemas da geologia distrital estão
por debater; outros não foram ainda esclarecidos.
Numa comunicação que fiz há poucas semanas na Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, do Porto, a propósito do homem paleolítico do vale do Cértima (Mealhada e
Pampilhosa) pus em foco as dificuldades enormes que se encontram quando se pretende distinguir o quaternário do terciário nos
terrenos estéreis de fósseis ou de produtos da indústria lítica.
Quais são no distrito de Aveiro as formações post-pliocénicas, pleistocénicas e incontroversamente antropozóicas?
Os terraços aluvionares dos nossos rios e seus afluentes
estão por inventariar.
CHOFFAT deixou em aberto a discussão sobre a separação
dos arieiros mesozóicos dos depósitos idênticos do cenozóico,
cuja pretensa continuidade nos deixa sempre perplexos.
A quase horizontalidade do cretácico, demonstrativa de uma
persistência de tranquilidade através de agitadíssimos ciclos que
permitiram a dois passos o levantamento do Buçaco e do
Caramulo e subverteram ao sul do Mondego as camadas suas
contemporâneas, como me observava há pouco o sr. dr. JOÃO
CARRINGTON SIMÓES DA COSTA, é um problema para chamar às
páginas desta revista autoridades como a do ilustre autor do
Paleozóico em Portugal.
Os problemas do precâmbrico e da distinção do arcaico e
/ 165 / do algônquico, quase insolúveis embora, mereceriam novas tentativas por parte de especialistas.
O sr. dr. ARISTIDES DE AMORIM GIRÃO, figura querida da geografia
regional, aventou, na sua brilhante e já hoje clássica Bacia do Vouga, a hipótese do levantamento do Caramulo e do
Buçaco no post-terciário. Foi um compromisso que tomou com
a geologia da região e que me leva a fazer votos por que nos
dê ainda um estudo mais detalhado das consequências e repercussões desse importantíssimo acidente que tanto
alterou o rebordo da meseta e deixou no entanto em paz a orla mesozóica.
A tectónica do herciniense e a estratigrafia do Buçaco, onde se nos
deparam alguns dos nossos mais intrincados problemas
geológicos, foram tratadas moderna mente pelo sr. ERNESTO FLEDURY, e é de desejar que se tornem de novo objecto das atenções
de tão respeitável mestre.
Pelas suas numerosas referências a problemas vários da
geognosia da região, bem podiam, se nos quisessem honrar
com a sua presença nestas colunas e neste capítulo, os srs. professores MENDES CORREIA e ANSELMO FERRAZ DE CARVALHO, dar
um brilho especial à coordenação regional de trabalhos geológicos que
nestas páginas se vai tentar.
O problema das oscilações do litoral, que já tive a honra
de debater com o distinto geólogo que é o sr. professor FREIRE
DE ANDRADE em face dos vales paralelos dos arredores de
Aveiro, seria um tema que de direito caberia ao persistente
estudioso dos vales submarinos da costa portuguesa.
E não penso apenas nos catedráticos e nos geólogos consumados.
Não faltam, também, no professorado secundário elementos
competentíssimos capazes de darem a esta secção um contributo precioso,
obviando às minhas deficiências tanto mais inevitáveis quanto é certo
que estes estudos apenas me são possíveis nas
horas de férias e que o geólogo tem de ser por vezes um químico, um cristalógrafo, um geómetra, um botânico, Um zoólogo,
um paleontologista.
Daqui evoco dois nomes a quem a região aveirense não é
nem pode ser indiferente, os dos srs. drs. ÁLVARO SAMPAIO e
JOSÉ BARATA, sem desprimor para outros de aptidões menos de
mim conhecidas, como sendo daqueles capazes de darem à renovação dos estudos da geologia distrital um concurso digno do
melhor apreço.
E se aos estudantes e principiantes, em cujo número sempre me conto, falta, por vezes, o poder de síntese e a faculdade
de relacionação e generalização de fenómenos de que só o geólogo é capaz, nem por isso o seu labor pode deixar de ser útil,
pois que recolhendo espécimes, observando acidentes locais,
tentando nótulas, podem prestar serviços de real e indiscutível
interesse.
/
166 /
O programa desta secção e desta revista
− que não o meu
programa pessoal
−
é tão vasto como o campo de acção do distrito, onde cabem boas-vontades
sem limite.
Pudesse a minha ousadia servir de estímulo, despertar competências e acordar continuadores dos mestres da geologia portuguesa
que, desde o século passado, nos deram lições que
hão de ficar eternas pelo brilho que atingiram e pelo renome
e glória que conquistaram para o nosso País!
Não seria ingrato e vão o sacrifício dos que trouxessem a este programa o contributo de um estudo firmado pelo seu nome, laureado já ou obscuro ainda.
O distrito e o seu ARQVIVO saberiam reconhecer, e a
minha concepção da Geologia não é tão eivada de romantismo
que exclua e afaste os geólogos verdadeiros.
PIERRE TERMIER proclamou: «À l'égard du Temps, de la Vie
et de la Mort, aucune science n'est plus évocatrice, plus inspiratrice, plus iniciatrice que la géologie.»
A geologia particular do distrito de Aveiro não podia, para
mim, e não pode, para ninguém, desmerecer deste conceito expresso por um sábio moderno em uma forma lapidar.
ALBERTO SOUTO
|