José Pereira Tavares, A festa de São Gonçalinho, Vol. 1, pp. 127-133.

TRADIÇÕES DE AVEIRO

A FESTA DE S. GONÇALINHO

Um dos mais populares, arreigados e pitorescos costumes de Aveiro é a festa de «S. Gonçalinho», no bairro da Beira-Mar, em Janeiro de cada ano. Vem de longe esse culto a S. Gonçalo, mas não será fácil determinar com precisão quando principiou.

Acerca da ermida onde se venera o santo, escreveu MARQUES GOMES nas «Memórias de Aveiro»: «É de bastante antiguidade, e foi reformada em 1714. Os carmelitas descalços estabeleceram aqui o seu convento» (pág. 145). Sôbre êste convento, escreveu, na mesma obra, aquêle autor: − «Passando em Aveiro, em 1613, com direcção ao Porto, alguns carmelitas descalços, foram hospedar-se no Paço dos Tavares. Por essa ocasião um dos membros desta ilustre família fez-lhes vêr a grande utilidade que podiam alcançar, se fundassem aqui um convento da sua ordem. − Sendo eleito provincial fr. António do Santíssimo Sacramento, que tinha sido um daquelles a quem lembrou a fundação o fidalgo Tavares, mandou a Aveiro fr. Thomaz de S. Cirillo, prior do colegio de Coimbra, para escolher o local em que se devia edificar o convento, e bem assim para alcançar licença da câmara. Esta licença foi concedida no dia 22 de Julho de 1613, para o que se reuniram nos paços do concelho, além da câmara, todos os nobres e homens bons da villa. O auto em que se concede auctorisação para os carmelitas fundarem o seu convento foi feito pelo escrivão da camara, Sebastião da Rocha Pimenta, e assignado pelo juiz de fora, Gaspar Corado, e por os cidadãos Miguel Affonso Migalhas, José Coelho, Antonio de Almeida da Costa, Diogo Vieira Guedes, Thomaz da Costa Corte-Real, Jeronymo Cardoso, José Barreto, Antonio Coelho, Braz Pereira, Andrade Laçarote, Pedro de Araujo e Miguel da Veiga. O bispo de Coimbra, D. Affonso de Castello Branco, assim como D. Alvaro de Lancastre, 3.º duque de Aveiro, deram a licença pala a edificação em 12 de outubro do mesmo anno, de 1613. − As obras não se fizeram esperar / 128 / muito, e o convento principiou-se a construir em umas casas junto da capella de S. Gonçalo, que haviam pertencido a Gil Homem da Costa; eram acanhadissimas as proporções do novo convento, não obstante ser pequeno o numero dos frades que n'elle habitavam. − Passado um anno depois da fundação, o convento foi julgado extincto por a Mesa do Desembargo do Paço, em vista dos frades não terem alcançado auctorisação regia.

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Foi pessima a construção do primitivo convento; os frades vendo-o ameaçar ruina, trataram logo de edificar um outro, porém num local mais apropriado do aquelle era.» (pág. 104-105)


Vê-se, pois, que a capela primitiva, atendendo mesmo ao aspecto da actual, deve ter sido erigida no século XVI.


A CAPELA

A capela, de forma hexagonal, ergue-se na parte ocidental da cidade, na Beira-Mar, a cerca de cinquenta metros da Praça do Peixe. Tem em frente um adro público, antigamente vedado, em parte, por pequeno muro, que a Câmara mandou demolir para evitar que o ângulo que ele fazia com as casas do sul continuasse a ser vazadoiro de imundícies, mesmo de quem passava... A capela é servida por duas portas. Por cima da principal, vê-se o nicho, envidraçado, do patrono. A outra, ao lado direito, dá passagem para a modestíssima sacristia. Na parte superior da capela há uma espécie de platibanda, relativamente recente, e a meio dela, e na mesma linha do nicho, a sineta.


O INTERIOR

No interior, primeiro ângulo da direita, aninha-se um acanhadíssimo coro, onde os componentes das orquestras se vêem em enormes dificuldades de acomodação, quando / 129 /  [Vol. I − N.º 2 − 1935]  é necessário fazerem-se ouvir. As estantes, os bancos dos músicos e os instrumentos mais bojudos têm de ser passados à mão, por fora, porque a exiguidade da escada de acesso não permite que outra coisa se faça. À esquerda, noutro ângulo, o púlpito, duma tal ou qual elegância. O pavimento é soalhado.


ALTARES E SANTOS

A capelinha tem três altares. No altar-mor, em lugar de honra, na parte superior dum trono, ergue-se o «santo protector» o «S. Gonçalinho» , e na parte inferior do trono, simetricamente dispostos, outros Santos: à direita, S. Bento («que faz um milagre por dia») e à esquerda, S. João, ambos trazidos da antiga capela de S. João, do Rossio, há anos demolida. No mesmo altar, em três pequenos «oratórios», vêem-se as imagens do Mártir S. Sebastião (à direita), da Senhora das Necessidades (ao centro) e de S. Roque (à esquerda).

O altar da direita, logo a seguir ao coro, apresenta quatro imagens: no centro, em cima, o «Senhor Ecce Homo»; dispostos aos lados, S. Nicolau (à direita) e a Senhora da Piedade (à esquerda), um e outra provenientes da demolida capela de S. João; e em baixo, ao centro, a Senhora de Fátima, que ali foi posta recentemente.

O altar da esquerda, que se segue ao púlpito, possui três Santos: S. Nicolau, privativo desta capela, uma outra imagem de S. Gonçalo (à direita) e S. João (à esquerda), estes dois também antiga pertença da capela do Rossio.

 

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AS OFERTAS
O auxílio do Santo é invocado pelos crentes para a cura de doenças de ossos. As «ofertas» consistem em pernas, braços e mãos de cera, velas de cera para alumiar o Santo, e cavacas doces, de que abaixo nos ocuparemos
peso maior ou menor delas, conforme a promessa. Por uma velhinha que nos prestou muitos esclarecimentos, soubemos que um crente, doente das pernas, sempre oferecia flores, por ocasião da festa, para enfeitar o, bastão do Santo; e a mesma ínformadora lembra-se de que nos seus tempos de infância havia na capela vários pares de muletas, de que os doentes se serviam, e que restituíam depois, com oferendas de azeite para o Santo, quando se achavam curados.

É tão forte a crença nas virtudes de «S. Gonçalinho», que nenhum «americano», ao emigrar para a América, deixa de levar consigo a litografia do Santo, e é raro que algum deles se esqueça de enviar, lá de longe, para a festa, qualquer importância em dolas (dólares).

Mas, se «S. Gonçalinho» é milagroso e disso ninguém duvida , também é vingativo «vingatible» disse a nossa informadora). Contam-se dois casos de vingança, por actos graves de irreverência. Uma vez, andando a caiar a frente da capelinha, um homem veio malhar cá abaixo e partiu uma perna do que ficou tolhidinho para o resto dos seus dias por ter posto, por brincadeira, o resto do cigarro na boca da imagem, que se guarda dentro do nicho da frontaria. E outro, maroto e mau, que, para enganar o Santo, se lembrou de substituir as cavacas da oferenda por cascas de pinheiro, caiadas, adoeceu!


A FESTA

O dia próprio da festa é o dia 10 de Janeiro; mas, se não cai ao domingo, aquela, transfere-se para o domingo seguinte. No sábado, há «véspera». A capela e cercanias, bem como a rua que conduz à Praça do Peixe, são ornamentadas com bandeiras, arcos de madeira, enfeitados a papel de seda, são pregados nos paus, e neles se dependuram hoje, em substituição dos antigos balões «à venezana», lâmpadas eléctricas de variadas cores.

Como as noites de Janeiro são muito frias, e por, vezes chuvosas e húmidas, fazem-se fogueiras, para as quais os «vizinhos» contribuem com lenha, ou coisa que o valha canastras das do peixe, cestos velhos e inúteis; mas as principais são: uma, junto da Praça do Peixe, outra no adro da capelinha. Em geral, tocam duas bandas de música, até altas horas da noite. Nos intervalos, queimam-se muitos foguetes «estalaria», de / 131 / vistas e dinamite ; mas, em tempos distantes informação preciosa da velhinha , a «véspera» também tinha entremez, que se representava no adro.

E naquela noite de Janeiro, de frio cortante, ali acorre o bom aveirense, em especial a gente da Beira-Mar, as mulheres com os xailes puxados para a cabeça, os homens embrulhados nos gabões os últimos abencerragens dum vestuário tão tipicamente aveirense! , em cujos capuzes enfiam as cabeças, se a frialdade aperta. Acercam-se dos coretos, ora dum, ora doutro, e ali, a pé quedo, vão apreciando as diferentes peças de música, quando não preferem estacionar, estoicamente, junto do coreto onde toca a banda da sua predilecção. O aveirense é doido por música. As mulheres debandarão, acossadas pelo frio, cada vez mais incómodo; os homens, não: só regressam a casa quando o último músico saltar as escadas do coreto.

No domingo, de manhã, a festa é toda «de dentro»: cifra-se em missa e sermão. A meio da tarde, porém, há sermão, eleição dos mordomos para o ano seguinte, música e lançamento de cavacas. Esta é que é a parte mais característica da festa de «S. Gonçalinho», a mais típica, a mais original e pitoresca. A dada altura, a platibanda da capela enche-se de gente, a sineta começa a badalar com furor, e as cavacas são lançadas sobre a multidão embasbacada e expectante. Os rapazes não têm parança: precipitam-se sobre os pontos em que vai caindo o maná daquele dia, empurram-se, agatanham-se, correm para outros pontos, espojam-se no chão, à cata dalguma cavaca perdida, enquanto o mar de gente, em pitorescos fluxos e refluxos, e no meio das gargalhadas que algum lance mais cómico provocou, lhes vai dando lugar, ou lhes vai tolhendo propositadamente os movimentos. E é de ver, muitas vezes, o espectáculo insólito de muita gente abrir os guarda-sóis e os virar ao contrário, para receber no ar as cavacas, furtando-as assim à gula do rapazio sôfrego, que se fica a olhar, desconsolado. E, no entretanto, a sineta repica, repica sempre, torna a repicar, incessantemente, até que, como exausta de forças, emudece, precisamente quando o último devedor do Santo lança sobre o povoléu a derradeira cavaca. Depois, acabou-se a festa, e começa a debandada; mas falta ainda o resto: os mordomos cessantes têm obrigação de ir cumprimentar a casa cada um dos que nesse dia foram eleitos para «servir» no ano seguinte. E então os mordomos e a banda, seguidos de longa cauda de curiosos, em que predomina o rapazio, lá marcham ao som das mais recentes «modas» que o povo consagrou e vulgarizou, e durante todo o percurso, de rua para rua, de casa para casa, não deixam de estralejar foguetes.

Parece que só em época próxima de nós se criou o hábito de prolongar a festa até à segunda-feira. O que nesse dia se passa, porém, é já estranho ao culto, um forçado enxerto, filho / 132 / da hora que passa, toda de movimento. Pela tarde, uma música, ou um simples grupo de músicos arremedo de «jazz» −, posta-se num dos coretos e durante umas horas executa música de dança. Ao som dela, à volta do coreto, pelas ruas que ali convergem, por todos os cantos onde se possa ouvir o que se vai tocando, mesmo que seja somente um ou outro compasso, estende-se essa curiosa sala de baile, em cujo pavimento, não raro cheio de lama, os rapazes e raparigas, estudantes e tricanas, pescadores e pescadeiras, fazem como que o ensaio geral para os bailes do Entrudo. Terminada a dança, que muitas centenas de pessoas, de todas as categorias, presenciam, o resto do fogo vem pôr termo à festa do Santo e aos folgares do povo.

QUADRAS POPULARES

Das poesias populares, alusivas ao Santo, pudemos recolher algumas quadras, que ouvimos à simpática velhinha a que atrás fizemos referência. A primeira é absolutamente local:


S. Gonçalo lá de cima (2)
é das velhas curraleiras;
S. Gonçalo cá de baixo (3)
é das novas, pescadeiras.


Agora, estoutras, igualmente em versos de redondilha-maior:


S. Gonçalo foi ao forno,
todo o cabelo queimou.
O santo não teve a culpa (4):
foi de quem o lá mandou.


Se S. Gonçalo casara
co'a Senhora da Graça,
teria meninas de oiro
com relicários de prata.


Se (tu) fores ao S. Gonçalo,
leva-me um cestinha de ovos;
se ele disser que são poucos...
São poucos, mas não são chocos!


S. Gonçalo. de Amarante
também tem os seus amores,
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que lhe acharam na algibeira
um ramalhete de flores.


S. Gonçalo de Amarante
também tem os seus cuidados,
que lhe acharam na algibeira
um ramalhete de cravos.


Finalmente, estas duas quadras, em redondilha-menor:


Senhor S. Gonçalo,
minha mulher mente;
eu durmo co'ela,
mas não sou contente.


Senhor S. Gonçalo,
arredai os bancos,
que eu quero fazer
a dança dos mancos.


Aveiro, Maio de 1935.

JOSÉ TAVARES

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(1)Trata aqui o autor de como se conseguiu a confirmação da fundação do convento.

(2)De S. Domingos, igreja matriz da freguesia da Glória, de Aveiro.

(3)«S. Gonçalinho», que fica na freguesia da Vera-Cruz.

(4)Variante: A culpa não foi do santo.

 

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