Um dos mais populares,
arreigados e pitorescos costumes de Aveiro é a festa de «S. Gonçalinho»,
no bairro da Beira-Mar, em Janeiro de cada ano. Vem de longe esse culto
a S. Gonçalo, mas não será fácil determinar com precisão quando
principiou.
Acerca da ermida onde se venera o santo, escreveu MARQUES GOMES nas «Memórias
de Aveiro»: «É de bastante antiguidade, e foi reformada em 1714.
Os carmelitas descalços estabeleceram aqui o seu convento» (pág. 145).
Sôbre êste convento, escreveu, na mesma obra, aquêle autor: − «Passando
em Aveiro, em 1613, com direcção ao Porto, alguns carmelitas descalços,
foram hospedar-se no Paço dos Tavares. Por essa ocasião um dos membros
desta ilustre família fez-lhes vêr a grande utilidade que podiam
alcançar, se fundassem aqui um convento da sua ordem. − Sendo eleito
provincial fr. António do Santíssimo Sacramento, que tinha sido um
daquelles a quem lembrou a fundação o fidalgo Tavares, mandou a Aveiro
fr. Thomaz de S. Cirillo, prior do colegio de Coimbra, para escolher o
local em que se devia edificar o convento, e bem assim para alcançar
licença da câmara. Esta licença foi concedida no dia 22 de Julho de
1613, para o que se reuniram nos paços do concelho, além da câmara,
todos os nobres e homens bons da villa. O auto em que se concede
auctorisação para os carmelitas fundarem o seu convento foi feito pelo
escrivão da camara, Sebastião da Rocha Pimenta, e assignado pelo juiz de
fora, Gaspar Corado, e por os cidadãos Miguel Affonso Migalhas, José
Coelho, Antonio de Almeida da Costa, Diogo Vieira Guedes, Thomaz da
Costa Corte-Real, Jeronymo Cardoso, José Barreto, Antonio Coelho, Braz
Pereira, Andrade Laçarote, Pedro de Araujo e Miguel da Veiga.
−
O bispo de Coimbra, D. Affonso de Castello Branco, assim como D. Alvaro
de Lancastre, 3.º duque de Aveiro, deram a licença pala a edificação em
12 de outubro do mesmo anno, de 1613. − As obras não se fizeram esperar
/ 128 /
muito, e o convento principiou-se a construir em umas casas junto da
capella de S. Gonçalo, que haviam pertencido a Gil Homem da Costa; eram
acanhadissimas as proporções do novo convento, não obstante ser pequeno
o numero dos frades que n'elle habitavam. − Passado um anno depois da
fundação, o convento foi julgado extincto por a Mesa do Desembargo do
Paço, em vista dos frades não terem alcançado auctorisação regia.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
(1)
Foi pessima a construção do primitivo convento; os frades vendo-o
ameaçar ruina, trataram logo de edificar um outro, porém num local mais
apropriado do aquelle era.» (pág. 104-105)
Vê-se, pois, que a capela primitiva, atendendo mesmo ao aspecto da
actual, deve ter sido erigida no século XVI.
A CAPELA
A
capela, de forma hexagonal, ergue-se na parte ocidental da cidade, na
Beira-Mar, a cerca de cinquenta metros da Praça do Peixe. Tem em frente
um adro público, antigamente vedado, em parte, por pequeno muro, que a
Câmara mandou demolir para evitar que o ângulo que ele fazia com as
casas do sul continuasse a ser vazadoiro de imundícies, mesmo de quem
passava... A capela é servida por duas portas. Por cima da principal,
vê-se o nicho, envidraçado, do patrono. A outra, ao lado direito, dá
passagem para a modestíssima sacristia. Na parte superior da capela há
uma espécie de platibanda, relativamente recente, e a meio dela, e na
mesma linha do nicho, a sineta.
O INTERIOR
No interior, primeiro ângulo da direita, aninha-se um acanhadíssimo
coro, onde os componentes das orquestras se vêem em enormes dificuldades
de acomodação, quando
/ 129 /
[Vol. I − N.º 2 − 1935] é
necessário fazerem-se ouvir. As estantes, os bancos dos músicos e os
instrumentos mais bojudos têm de ser passados à mão, por fora, porque a
exiguidade da escada de acesso não permite que outra coisa se faça. À
esquerda, noutro ângulo, o púlpito, duma tal ou qual elegância. O
pavimento é soalhado.
ALTARES E SANTOS
A capelinha tem três altares. No altar-mor, em lugar de honra, na parte
superior dum trono, ergue-se o «santo protector»
−
o «S. Gonçalinho»
−,
e na parte inferior do trono, simetricamente dispostos, outros Santos: à
direita, S. Bento («que faz um milagre por dia») e à esquerda, S. João,
ambos trazidos da antiga capela de S. João, do Rossio, há anos demolida.
No mesmo altar, em três pequenos «oratórios», vêem-se as imagens do
Mártir S. Sebastião (à direita), da Senhora das Necessidades (ao centro)
e de S. Roque (à esquerda).
O
altar da direita, logo a seguir ao coro, apresenta quatro imagens: no
centro, em cima, o «Senhor Ecce Homo»; dispostos aos lados, S. Nicolau
(à direita) e a Senhora da Piedade (à esquerda), um e outra provenientes
da demolida capela de S. João; e em baixo, ao centro, a Senhora de
Fátima, que ali foi posta recentemente.
O altar da esquerda, que se segue ao púlpito, possui três Santos: S.
Nicolau, privativo desta capela, uma outra imagem de S. Gonçalo (à
direita) e S. João (à esquerda), estes dois também antiga pertença da
capela do Rossio.
/
130 /
AS OFERTAS
O auxílio do Santo é invocado pelos crentes para a cura de doenças de
ossos. As «ofertas» consistem em pernas, braços e mãos de cera, velas de
cera para alumiar o Santo, e cavacas doces, de que abaixo nos
ocuparemos
−
peso maior ou menor delas, conforme a promessa. Por uma velhinha que nos
prestou muitos esclarecimentos, soubemos que um crente, doente das
pernas, sempre oferecia flores, por ocasião da festa, para enfeitar o,
bastão do Santo; e a mesma ínformadora lembra-se de que nos seus tempos
de infância havia na capela vários pares de muletas, de que os doentes
se serviam, e que restituíam depois, com oferendas de azeite para o
Santo, quando se achavam curados.
É tão forte a crença nas virtudes de «S. Gonçalinho», que nenhum
«americano», ao emigrar para a América, deixa de levar consigo a
litografia do Santo, e é raro que algum deles se esqueça de enviar, lá
de longe, para a festa, qualquer importância em dolas (dólares).
Mas, se «S. Gonçalinho» é milagroso
−
e disso ninguém duvida
−,
também é vingativo «vingatible»
−
disse a nossa informadora). Contam-se dois casos de vingança, por actos
graves de irreverência. Uma vez, andando a caiar a frente da capelinha,
um homem veio malhar cá abaixo e partiu uma perna do que ficou
tolhidinho para o resto dos seus dias por ter posto, por brincadeira, o
resto do cigarro na boca da imagem, que se guarda dentro do nicho da
frontaria. E outro, maroto e mau, que, para enganar o Santo, se lembrou
de substituir as cavacas da oferenda por cascas de pinheiro, caiadas,
adoeceu!
A FESTA
O
dia próprio da festa é o dia 10 de Janeiro; mas, se não cai ao domingo,
aquela, transfere-se para o domingo seguinte. No sábado, há «véspera». A
capela e cercanias, bem como a rua que conduz à Praça do Peixe, são
ornamentadas com bandeiras, arcos de madeira, enfeitados a papel de
seda, são pregados nos paus, e neles se dependuram hoje, em substituição
dos antigos balões «à venezana», lâmpadas eléctricas de variadas cores.
Como as noites de Janeiro são muito frias, e por, vezes chuvosas e
húmidas, fazem-se fogueiras, para as quais os «vizinhos» contribuem com
lenha, ou coisa que o valha
−
canastras das do peixe, cestos velhos e inúteis; mas as principais são:
uma, junto da Praça do Peixe, outra no adro da capelinha. Em geral,
tocam duas bandas de música, até altas horas da noite. Nos intervalos,
queimam-se muitos foguetes
−
«estalaria», de
/ 131 /
vistas e dinamite
−;
mas, em tempos distantes
−
informação preciosa da velhinha
−,
a «véspera» também tinha entremez, que se representava no adro.
E naquela noite de Janeiro, de frio cortante, ali acorre o bom
aveirense, em especial a gente da Beira-Mar, as mulheres com os xailes
puxados para a cabeça, os homens embrulhados nos gabões
−
os últimos abencerragens dum vestuário tão tipicamente aveirense!
−,
em cujos capuzes enfiam as cabeças, se a frialdade aperta. Acercam-se
dos coretos, ora dum, ora doutro, e ali, a pé quedo, vão apreciando as
diferentes peças de música, quando não preferem estacionar,
estoicamente, junto do coreto onde toca a banda da sua predilecção. O
aveirense é doido por música. As mulheres debandarão, acossadas pelo
frio, cada vez mais incómodo; os homens, não: só regressam a casa quando
o último músico saltar as escadas do coreto.
No domingo, de manhã, a festa é toda «de dentro»: cifra-se em missa e
sermão. A meio da tarde, porém, há sermão, eleição dos mordomos para o
ano seguinte, música e lançamento de cavacas. Esta é que é a parte mais
característica da festa de «S. Gonçalinho», a mais típica, a mais
original e pitoresca. A dada altura, a platibanda da capela enche-se de
gente, a sineta começa a badalar com furor, e as cavacas são lançadas
sobre a multidão embasbacada e expectante. Os rapazes não têm parança:
precipitam-se sobre os pontos em que vai caindo o maná daquele dia,
empurram-se, agatanham-se, correm para outros pontos, espojam-se no
chão, à cata dalguma cavaca perdida, enquanto o mar de gente, em
pitorescos fluxos e refluxos, e no meio das gargalhadas que algum lance
mais cómico provocou, lhes vai dando lugar, ou lhes vai tolhendo
propositadamente os movimentos. E é de ver, muitas vezes, o espectáculo
insólito de muita gente abrir os guarda-sóis e os virar ao contrário,
para receber no ar as cavacas, furtando-as assim à gula do rapazio
sôfrego, que se fica a olhar, desconsolado. E, no entretanto, a sineta
repica, repica sempre, torna a repicar, incessantemente, até que, como
exausta de forças, emudece, precisamente quando o último devedor do
Santo lança sobre o povoléu a derradeira cavaca. Depois, acabou-se a
festa, e começa a debandada; mas falta ainda o resto: os mordomos
cessantes têm obrigação de ir cumprimentar a casa cada um dos que nesse
dia foram eleitos para «servir» no ano seguinte. E então os mordomos e a
banda, seguidos de longa cauda de curiosos, em que predomina o rapazio,
lá marcham ao som das mais recentes «modas» que o povo consagrou e
vulgarizou, e durante todo o percurso, de rua para rua, de casa para
casa, não deixam de estralejar foguetes.
Parece que só em época próxima de nós se criou o hábito de prolongar a
festa até à segunda-feira. O que nesse dia se passa, porém, é já
estranho ao culto, um forçado enxerto, filho
/ 132 /
da hora que passa, toda de movimento. Pela tarde, uma música, ou um
simples grupo de músicos
−
arremedo de «jazz» −, posta-se num dos coretos e durante umas horas
executa música de dança. Ao som dela, à volta do coreto, pelas ruas que
ali convergem, por todos os cantos onde se possa ouvir o que se vai
tocando, mesmo que seja somente um ou outro compasso, estende-se essa
curiosa sala de baile, em cujo pavimento, não raro cheio de lama, os
rapazes e raparigas, estudantes e tricanas, pescadores e pescadeiras,
fazem como que o ensaio geral para os bailes do Entrudo. Terminada a
dança, que muitas centenas de pessoas, de todas as categorias,
presenciam, o resto do fogo vem pôr termo à festa do Santo e aos
folgares do povo.
QUADRAS POPULARES
Das poesias populares, alusivas ao Santo, pudemos recolher algumas
quadras, que ouvimos à simpática velhinha a que atrás fizemos
referência. A primeira é absolutamente local:
S. Gonçalo lá de cima (2)
é das velhas curraleiras;
S. Gonçalo cá de baixo (3)
é das novas, pescadeiras.
Agora, estoutras, igualmente em versos de redondilha-maior:
S. Gonçalo foi ao forno,
todo o cabelo queimou.
O santo não teve a culpa (4):
foi de quem o lá mandou.
Se S. Gonçalo casara
co'a Senhora da Graça,
teria meninas de oiro
com relicários de prata.
Se (tu) fores ao S. Gonçalo,
leva-me um cestinha de ovos;
se ele disser que são poucos...
São poucos, mas não são chocos!
S. Gonçalo. de Amarante
também tem os seus amores,
/ 133 /
que lhe acharam na algibeira
um ramalhete de flores.
S. Gonçalo de Amarante
também tem os seus cuidados,
que lhe acharam na algibeira
um ramalhete de cravos.
Finalmente, estas duas quadras, em redondilha-menor:
Senhor S. Gonçalo,
minha mulher mente;
eu durmo co'ela,
mas não sou contente.
Senhor S. Gonçalo,
arredai os bancos,
que eu quero fazer
a dança dos mancos.
Aveiro, Maio de 1935.
JOSÉ TAVARES
_________________________________________
(1) − Trata aqui o autor de como se conseguiu
a confirmação da fundação do convento.
(2) − De S. Domingos, igreja matriz da
freguesia da Glória, de Aveiro.
(3) − «S. Gonçalinho», que fica na freguesia da Vera-Cruz.
(4) − Variante:
−
A culpa não foi do santo.
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