Quando, no ano passado, para dar início ao cumprimento do Decreto
N.º 23.625, de 3 de Março, que organizou o Museu de Arte da Universidade
de Coimbra, procurei conhecer com inteiro pormenor o remanescente do
recheio da antiga Capela universitária, fui encontrar no fundo duma
gaveta, no gabinete outrora ocupado pelo Director, o estranho objecto de
ferro que a gravura abaixo representa, tendo enrolada uma tira de papel
onde sem dificuldade pude ler o seguinte:
Elucidário − Viterbo / Verb. Zagunear
Pertencia à Câmara do Couto de Esteves, q hoje é de Sever do Vouga
(Marques Gomes).
Pareceu-me letra do Doutor António de Vasconcelos que, para mais,
tinha sido, em tempo, Director da Capela, e de facto
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não me enganei; nesse mesmo dia aquele meu venerando amigo e antigo
Professor me confirmava os dizeres da tira de papel, explicando que o
falecido historiador aveirense, e seu amigo, João Augusto Marques Gomes,
lhe oferecera, após a implantação da República, aquela curiosa relíquia
da administração da justiça em Couto de Esteves.
O Professor Vasconcelos pensou primeiro em a depositar no Museu de
Machado de Castro, mas, por fim, resolveu destiná-la à própria
Universidade; com a extinção dos serviços da Capela, e mais sucessos da
época, esquecera a interessante peça no fundo daquela gaveta onde,
passados mais de vinte anos, eu a fora desencantar.
Era, pois, pertença indubitável da Universidade, e considerava-a o
Doutor António de Vasconcelos peça autêntica e inédita.
Quanto à sua aplicação e destino, a remissão para o Elucidário
de VITERBO nos esclareceria.
Na impossibilidade de pôr aqui, em letra redonda, tudo o que
o referido VITERBO conta a propósito desse obsoleto zegoniar (Elucidário,
voI. II, 2.ª ed., pág. 278, 2.ª coI.) que no vocabulário de hoje trocou
por novas e diversas roupagens linguísticas, de todos conhecidas, aquela
forma pejorativa caída em desuso, transcrevemos apenas estas palavras:
«Em Portugal se castigou antigamente o crime da língua com todo
o rigor, como se disse... Na casa da Câmara da vila de Sanceriz, junto a
Bragança, se vê ainda hoje um freio, com que se castigavam as mulheres
bravas de condição, e maldizentes, e mesmo todas as pessoas cujo crime
procedia de palavras: ele tem língua para a boca, argola para o queixo
de baixo, cambas que lançam sobre o nariz, tudo de ferro: tem igualmente
cabeçada com sobretesta para a cabeça, com fivela que fecha para trás, e
rédeas com passador.»
Ora a peça em referência era justamente o que restava dum desses
instrumentos de justiça ao serviço do sistema penal português vigente na
Idade-Média e que por alguns séculos mais se manteve, principalmente em
localidades cujo isolamento geográfico as tornava mais conservadoras de
velhos usos e costumes locais.
Era, portanto, aquilo o freio para as más línguas de Couto de
Esteves: amarravam-se ao pelourinho, amordaçavam-se com o aparelho e ali
ficavam expostas às vaias e ao escárnio da populaça.
− Servir-lhes-ia de emenda? − ocorre perguntar.
Há, talvez, lugar a dúvidas... A peça está tão gasta e a população
de Couto de Esteves era tão pequena...
814 habitantes lhe assinala MARQUES GOMES em 1877, extinto
já o concelho (O Distrito de Aveiro, pág. 298).
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Procurámos referências a este instrumento de tortura; apenas MARQUES
GOMES (loc. cit.) alude, e de passagem, a estes castigos corporais,
remetendo para PINHO LEAL em cujo dicionário (Portugal antigo e
moderno, voI. II, pág. 422, 2.ª col.) fomos encontrar esta curiosa nota:
«No edifício que foi casa da Câmara e que a junta de Paróquia
aplicou para escola de instrução primária, ainda existe um cutelo,
correntes, mordaças, embudes (Para o suplício da água) e outros
instrumentos de tortura, assim como outros objectos cuja aplicação hoje
se ignora.»
O que restaria de tudo isso?
Satisfez a nossa legítima curiosidade o dedicado amigo do Arquivo e
zeloso notário em Sever do Vouga, Dr. Henrique Baptista da Cunha, que
gentilmente pôs à nossa disposição as fotografias duma algema e duma
grossa corrente que ainda conseguiu, pessoalmente, encontrar e se
integram no sistema penal a que o fragmento de freio pertence.
Como complemento lógico destas relíquias locais, quisemos conhecer
o pelourinho de Couto de Esteves, mencionado, de mais
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a mais, pelo Rev. Abade de Pessegueiro do Vouga, JOSÉ LUCIANO DE
FIGUEIREDO LOBO E SILVA, na sua prestimosa monografia de Sever do
Vouga (pág. 52) e recenseado pelo etnógrafo Sr. LUlZ CHAVES, mais
duma vez, no utilíssimo estudo que dedicou aos Pelourinhos portugueses,
em 1930.
Ao Dr. Baptista da Cunha devemos igualmente o poder apresentá-lo
aos leitores do Arquivo,
não
tendo nós encontrado qualquer reprodução gráfica do mesmo.
É dos mais simples e rudes, este curioso exemplar do símbolo
medieval da jurisdição concelhia.
Três degraus de acesso, uma base mal definida, de secção quadrada,
coluna facetada, quase cilíndrica, lisa, e, como remate, um corpo a que
o Tempo; ou os homens, trouxe a estranha feição de glande fálica, e que
devemos considerar o capitel usual na coluna.
Na classificação geral que dos pelourinhos portugueses traçou,
agrupa o Sr. LUlZ CHAVES o de Couto de Esteves nos que apelida «de
bola, de tôpo arredondado» (loc. cit. pág. 64).
O pelourinho não ocupa já o primitivo lugar na povoação; para
abertura dum caminho foi desviado para junto duma casa onde ficou com
péssima vista; há a registar, ainda assim, o cuidado havido na sua
conservação, quando é certo que por toda a parte, em grandes cidades
até, a destruição destes monumentos chegou quase a ser sistemática.
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[VoI. 1 − N.º 1 − 1935]
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Não sei se ao freio do Couto de Esteves, que originou, afinal, as
linhas acima traçadas, alguma outra referência foi já feita; inédito o
considerava o Prof. António de Vasconcelos e debalde eu procurei
notícias de tão curiosa peça, não conhecendo a existência doutra igual
no nosso país.
O Sr. LUlZ CHAVES, que deve ter sido o mais recente historiador das
penas corporais infamantes, apenas relata, certamente inspirado no
Elucidário de VITERBO, que «em Sanceriz, perto de Bragança,
impunha-se o freio da língua de ferro às mulheres injuriosas» (op. cit.
pág. 24).
Nada mais encontrei.
Relíquia dum sistema penal inspirado por uma ideologia
absolutamente realista e. de verdadeiro objectivo prático, onde a pena
de Talião dominava, o freio da língua de ferro é hoje apenas um símbolo;
ora em presença duma sociedade de demolidores sistemáticos e de
caluniadores de profissão, que hoje por aí vemos, nos rodeia e por vezes
procura inutilizar-nos, sociedade para a qual na Imprensa de nossos dias
tem sido lembrada já a conveniência de serem restauradas as funções dos
antigos pelourinhos, desde já proponho que se algum dia o Arquivo do
Distrito de Aveiro tiver de usar ex-libris ou emblema próprio, esse seja
o freio de Couto de Esteves...
A. G. DA ROCHA MADAHIL
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