O interesse e o gosto despertados pela cultura
popular, não são, obviamente, exclusivos de João Sarabando. O
Cancioneiro de Aveiro, obra compilada por este autor e publicada em
1966, insere-se num longo período de praticamente um século (entre
1870 e 1970), em que “...a antropologia portuguesa não só teve na
cultura popular de matriz rural o seu objecto principal de pesquisa,
como o seu interesse por tópico se organizou em torno de
preocupações hegemonizadas pelo tema da identidade nacional
portuguesa.”[1]
Não diríamos que J. S. estivesse particularmente preocupado com esta
última questão, procedendo, antes, a este trabalho de recolha pela
paixão que nutria por tudo o que era popular e regional.
Na linha da tradição antropológica portuguesa,
também aqui, a cultura popular é sinónimo de ruralidade, vista sob
um olhar que está para além do tempo, já que, embora sendo observada
e registada no presente, ela é testemunho de um passado[2]
que há que anotar e preservar antes que desapareça.
3.1 – Metodologia utilizada
À semelhança de um Leite de Vasconcelos, que
muito admira[3],
ou de um Rocha Peixoto, há em J. S. uma preocupação em recolher a
informação na boca do povo e in loco, para que a genuinidade seja
assegurada. É o próprio autor que nos diz, no prefácio da obra por
ele compilada, que para a sua realização procedeu ao registo de
“...todas as espécies ouvidas e tal qual as...” escutara,
“...independentemente do seu cunho popular ou literário, da raiz
local ou pronunciado sabor a regiões distantes...”.
Este seu método
consistiu numa persistente e criteriosa recolha de registos usados
pelas gentes de Aveiro, captando nesse seu árduo, mas sempre
apaixonado trabalho, o saber, o fazer e o ser de um povo que lhe era
tão especial.
Ainda nesse seu
prefácio, o autor informa que a sua recolha se cingiu ao Concelho de
Aveiro, reconhecendo que fez a escolha possível, dentro de um
espólio que se afigura de grandes dimensões e, como tal, humanamente
“...impossível recolher tudo quanto o povo canta...”, até porque a
criação popular é um processo constante.
3.2 – Temáticas abordadas
Em O Cancioneiro
de Aveiro, João Sarabando organizou as trovas recolhidas por temas.
O primeiro designou-o de Ambiente, nele englobando a coreografia, a
geografia, os astros, a flora e a fauna. Seguiu-se uma temática mais
geral a que deu o título de O Homem, nele enquadrando subtemas como
a família; o físico; vestuário; divertimentos; o namoro; o
casamento; o ciúme; a religião; a morte, etc. Terminou essa
organização com o tema Actividades.
Composto, assim,
por quadras populares de temáticas variadas, O Cancioneiro de Aveiro
constitui um testemunho precioso dos hábitos e costumes do concelho
de Aveiro, nos inícios do séc. XX.
Estas quadras
reflectem a lide diária de um povo que partilha a sua vida entre a
ria e o campo, transparecendo as suas tristezas, mas também as suas
alegrias, através do canto, dos despiques no arraial, dos serões ou
simplesmente durante os seus afazeres diários.
São composições
poéticas de simples elaboração, constituídas por quadras onde impera
a redondilha maior, com rima algo tosca, apresentando, quase sempre,
o esquema rimático abcb:
O meu coração é
terra,
Hei-de o mandar
cavar,
Para semear os
desejos
Que tenho de te falar.[4]
Ao limitar-se a recolha ao concelho de Aveiro e
sabendo-se ser este amplamente banhado pelas águas do rio, da ria e
até do mar, poderá ser estranho ao leitor o facto da temática ligada
à água ser escassa no Cancioneiro. E daí, talvez não, pois conforme
nos lembra J. Sarabando, “...a faina da pesca requer silêncio
absoluto, não vá o peixe fugir a sete barbatanas.”[5]
O campo e toda a
vida a ele ligada ocupam, sem dúvida, o grande espaço temático desta
recolha. No entanto, também encontramos nas quadras populares
variadas alusões à vida na cidade, como:
a) - Ruas e praças
(rua da Fonte Nova; rua larga; rua dos mercadores; praça
do Peixe; a Estação; rua do Pedregal; Cais
das Pirâmides)
b) - Associações
desportivas (clube dos Galitos); (pág. 57, 6ª estrofe)
c) - Bairros
(Vera-Cruz, Alboi); (pág.121, 4ª est. e pág. 138, 4ªest.)
d) - Romarias (S. Gonçalinho)[6]
(pág. 62, 3ª est.)
Cf. LEAL, João, Etnografias
Portuguesas (1870-1970) Cultura Popular e Identidade Nacional.
Lisboa, D. Quixote,2000
A recolha retrata, sobretudo, o
Portugal do 1º quartel do séc. XX.
No extenso mas organizado arquivo
pessoal de J. Sarabando encontramos um cartão com anotações
sobre este Etnólogo, filólogo e poeta (anexo 5).
in: Sarabando, João,
Cancioneiro de Aveiro, Aveiro, Tip. A Lusitânia, 1966, pág.
74.
As antigas rivalidades
entre os da freg. da Glória (ceboleiros) e os da
Vera-Cruz (cagaréus) podem ser presenciadas, sobretudo na 11ª
estrofe da pág. 66, confirmadas pela variante presente na
anotação nº. 46 do próprio compilador: “ S. Gonçalo lá de Baixo
/ é das velhas pescadeiras; O santo de cá de Cima/ é das novas,
curraleiras.” J. S. explica que “Esta variante traduz certa
emulação existente entre os devotos de S. Gonçalo (“lá de baixo”
– V. Cruz) e os de “cá de Cima” – Glória).
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