VILA REAL DO ALENTEJO,
ALDEIA DO TERMO DE OLIVENÇA
Por AMADEU RODRIGUES PIRES (FOTOS DO AUTOR)
Numa tarde calmosa de Fevereiro, com o sol a
dardejar sobre o casario de Olivença, como se fosse em plena estação de
verão, deixamos as Portas do Calvário, desta heróica praça forte da
Restauração brigantina, e seguimos pela estrada de macadame que se abre
para as bandas do ocidente, através dos longos azinhais e frondosos
olivedos, que dão a esta região o seu típico panorama, saborosamente
alentejano.
E quando despontamos na curva da estrada que
roça pela Quinta do José Lino e avistamos lá para as margens do Guadiana
as terras de Vila Real do Alentejo, os nossos olhos extasiam-se sobre
aquelas ubérrimas searas, ainda verdejantes, onde se acoitava muito alva
e rasteirinha esta nossa saudosa aldeia, como se fora uma pombinha
prisioneira no seu pombal nativo, e já exausta de tão longo cativeiro.
Abrangida pelo velho termo de Olivença,
portanto do distrito de Évora, Vila Real do Alentejo é a secular
fidalguinha debruçada sobre o majestoso Guadiana, o cavaleiro enamorado
das suas lágrimas de saudade, que vão correndo pelas margens
alentejanas, e se dilatam do Algarve até ao Minho, num infinito amplexo
de fé lusíada, à Pátria-Mãe da sua infância.
Alvejando donairosa sobre luxuriante
planície, ergue-se no extremo-oeste das terras de Olivença, na margem de
uma mansa ribeirinha a que
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114 / também chamam «de Vila
Real», e que carinhosamente refresca as suas hortas e campos de olivedos
por entre os velhos choupos que a acompanham no seu curso, qual viçosa
grinalda com que a Natureza prodigamente engalanou as suas terras de
cultivo.
Esta aldeiazinha, estreitamente ligada ao
folclore e tradições portuguesas, está a duas léguas da velha Olivença,
– cabeça do seu termo – e a dois escassos quilómetros da alcantilada
Juromenha, a irmã dilecta de tantos séculos de glória, que se levanta
sobranceira na outra margem do Guadiana, e em cuja bandeira portuguesa,
que tremula nas suas muralhas, revive a fé e a esperança em que a
pequena Vila Real põe toda a sua infinita saudade... E quando pela
tarde, em declínio, ressoam as trindades no pequenino campanário da sua
capelinha e o povo se descobre em sentida oração, parece que a
ressonância do velho sino português reflecte a voz lusíada de N. S. da
Assunção, abençoando a lusa-chama que perdura no coração das suas
gentes.
A graciosa aldeia de Vila Real do Alentejo
é, depois de Ramapalhas, a povoação mais pequena desta região, e embora
o cunho lusitano se mantenha fiel em todo o velho termo de Olivença,
Vila Real é, talvez, entre todas as povoações, a que mais arraigadamente
mantém o culto dos costumes e tradições portuguesas. Conquistada aos
mouros, nos primórdios da nacionalidade – quando o heroísmo, irmanado
com Fé, dilatava o amor da Pátria – refulgem na vanguarda da sua
gloriosa conquista os valorosos Cavaleiros do TempIo, que combateram
heroicamente as hostes muçulmanas, o poder e despeito dos Reis de Leão e
Castela, engrandecendo o Património Nacional e ajudando a erguer aos
olhos do Mundo,
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115 / a Torre de Glória da
Pátria portuguesa.
Com duas escassas centenas de habitantes, as
suas casas muito caiadas e rasteirinhas e as suas chaminés rectilíneas,
encimadas por característicos e bizarros capelos que nos mostram
exuberantemente as lusas tradições dos seus alveneis, Vila Real do
Alentejo é bem o protótipo da secular aldeia alentejana; e se não fora
uma deturpadora inscrição que agora a denomina Vila Real de «Olivenza»,
outra nota não haveria da passagem de estrangeiros por esta terra
portuguesa.
E quando, arrastados pela nossa
sensibilidade de alentejanos-natos, demos os primeiros passos nas suas
velhas ruas, quase desertas, calcetadas por mãos portuguesas e ladeadas,
uniformemente, pelos beirais dos seus telhados baixinhos, onde quase
chegamos com a mão, parece que a voz do sangue se propagou
misteriosamente por toda a aldeia, as portas franqueiam-se de par em
par, como se fossem refúgios de mouras encantadas, que se abriam
magicamente para nos mostrarem a alegria dos seus rostos morenos e o
interior dos seus lares, cobertos com telha-vã e aromatizados pelos
melões pendentes das madres, em redes de junça, ou pelo cheiro do
alecrim e da
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116 / alfazema que exalam as
arcas, em que guardam as roupas domingueiras. Na lareira pavimentada com
os rectangulares tijolos mouriscos, que cobrem igualmente o chão das
outras dependências, arde, lentamente, o tradicional madeiro, sob a
trempe de ferro forjado, em que assenta a panela de barro com a ceia que
há-de reconfortar os esforços para a labuta do outro dia.
Desviando agora as nossas vistas lá para o
fim da rua, onde uma casinha mais saída do seu natural alinhamento forma
um pequeno recanto que uma furtiva réstia de sol ilumina, vemos outro
quadro tipicamente alentejano – um grupo de «tias» e «manas», talvez uma
família inteira, sentadas nas suas cadeirinhas baixas e abrigadas por
enormes chapéus enfeitados com flores de papel e penas de pavão e
perdiz, estão cantarolando uma melancólica canção, enquanto vão
costurando ou procurando no açafate de cortiça, pousado no chão, os
utensílios para o amanho das roupas do trabalho ou dos dias de festa, e
que os homens da família. vão vestir na semana próxima, ou no domingo,
muito cedinho, quando o sineirinho da sua igreja os chamar ao ritual, do
dia santificado. E embevecidos neste sabor da terra transtagana,
caminhamos lentamente sobre a irregular «calçada à portuguesa» até que a
rua, alargando-se docemente, vai terminar num pequeno largo, rodeado de
casinhas muito brancas, e tendo por fundo a secular capelinha de Nossa
Senhora da Assumpção, com o seu adro gradeado e encimada por um
/
117 / pequeno campanário, onde
se abriga o velho sino anunciador da natividade de tantos portugueses e
do fim de tantos outros que o tempo amortalhou nas próprias lágrimas da
sua terra cativa.
Vencidos pela nostalgia destas terras de
trigais e oliveiras, visionamos neste panorama que nos rodeia, um Natal
da nossa infância feliz, passado aqui perto, ali na outra margem, na
freguesia de Nossa Senhora da Ajuda, sob os telhados de uma casinha que
ainda conservamos, por relíquia de família, junto da mutilada ponte,
erguida por D. Manuel, na interrompida estrada de Elvas a Olivença. E no
murmúrio das águas da mansa ribeirinha de Vila Real, que está correndo
aos nossos pés, entrecortado pelo coaxar das rãs e pela ressonância dos
chocalhos sacudidos pelos rebanhos que pastoreiam nos campos próximos,
sonhamos o presépio da «Noite do Menino», neste nostálgico panorama do
nosso Alentejo inesquecível, que se conserva imutável, neste
prolongamento de terra transtagana em que assenta o termo de Olivença,
com a mesma paisagem de verdes searas em que baloiçam papoilas
vermelhinhas, com os mesmos arados cravados na terra, aguardando a faina
interrompida, e com os seus bardos desertos, esperando as ovelhas ao
cair da tarde, vigiadas por possantes molossos, que vagueiam,
arrogantemente, na escuridão da noite, quais sentinelas invencíveis,
durante as horas em que o pastor repousa na choça que fica perto. Nas
eiras, lajeadas à portuguesa, lá se erguem também, como pirâmides
amarelecidas pelo tórrido calor destas paragens, as vetustas almiaras
alentejanas, talvez oriundas dos árabes, e que resguardam, sob a sua
cobertura, impenetrável, de piorno, a palha que durante
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118 / a invernia há-de
alimentar os gados que lavram estas terras barrentas, onde germina o pão
destas bondosas gentes.
Já no extremo da nossa aldeiazinha, descemos
a curta encosta que nos leva ao sítio da «Barca dos Pescadores» e lá
encontramos, também, preparando as suas redes, junto da casa que lhes
serve de abrigo, os velhos profissionais da pesca do «peixe do rio»
falando alegremente o nosso idioma e oferecendo-nos, com aquela
característica franqueza alentejana, da sua apetitosa «escalda», que
estão confeccionando com os barbos e bogas pescados nestas águas, e
condimentada com os aromáticos poejos, ao velho uso alentejano, e que
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119 / espontaneamente crescem
nas terras humedecidas. Mais em baixo, entre os juncais que vamos
percorrendo, pelas margens alagadiças, surgem-nos os porqueiros
monotonamente recostados nos cajados, que apoiam na axila, e do qual
pende uma comprida correia, que serve de zurrague, como é uso no alto
Alentejo, para a condução dos gados desta espécie, E às nossas
«boas-tardes», que recebem com um franco sorriso, respondem-nos na mesma
linguagem, mas sem perderem de vista os pachorrentos animais que pastam
nas margens pantanosas ou que emergem dos lameirões, roncando
agressivamente, à nossa aproximação, quais fantasmas imundos, onde
rebrilham os pequenos olhos sob a lama que os confunde.
É este o velho panorama transtagano das
margens do Guadiana, em Vila Real do Alentejo, igual ao da outra margem,
com a mesma linguagem e os mesmos usos, que as mesmas gentes revivem,
todos os dias, com os olhos apegados à bandeira da sua Pátria, que
tremula em Juromenha...
E já com o astro-rei a extinguir-se no
horizonte, entre labaredas de nuvens incandescentes, voltamos à caminho
de Olivença, assinalada lá ao longe, pela sua Torre de Menagem que se
eleva majestosamente entre o alvo casario em que se recorta a silhueta,
semi-escurecida, das suas musgosas muralhas. E quando, na curva da
Quinta do José Lino, volvemos os olhos num saudoso adeus à nossa
pequenina aldeia de Vila Real, visionámos, numa maravilhosa alegoria,
que as suas casas rasteirinhas, com o alvo campanário iluminado
festivamente pelo último raio do sol-poente, estavam mais perto de
Juromenha... E que o sineirinho de Nossa Senhora da Assumpção, com o
povo rendendo graças à Pátria portuguesa, estava tangendo as Ave-marias,
sob a bandeira verde-rubra que cobria a sua aldeia. |