Eram estas as familias mais nobres, e antigas d'esta Villa desde a sua
origem conhecida, e cujas descendencias se tem espalhado não só em toda
a comarca como tambem pela província da Beira, e mais terras do reino,
onde faziam vantajosos estabelecimentos, e nobres casamentos em casas
distinctas, onde conservam os mesmos appellidos, e por cujos nobiliarios
todos, ou pela maior parte procuram aqui a sua originaria descendencia
como a mais pura, e illustrada.
Hoje que é na era de 1687 ainda se contam para cima de duzentas e
setenta sepulturas com legendas, e brazões, e armas esculpidas em pedra
em edificios novos, e antigos com suas divizas, algumas das quais estão
consumidas do tempo por serem pela maior parte de pedra de Ançã, que por
ser branda não é de tanta duração.
Como falIei da Villa da Feira, e de Arrifana de Santa Maria, é
tambem indubítavel que ahi houve nobreza antiga, e original, e ainda
hoje além da casa dos mui illustres condes da Feira, a qual hoje
representa o sr. conde D. Fernando Forjaz Pereira Pimentel de Menezes e
Silva, senhor de todo o condado, ha a família dos nobres Soares
d'Albergaria, de Fijô – dos Ferreiras Leitões de Justas – dos Ferreiras
Silvas de Pombos, e ha as antigas casas dos Pintos de Paramos – dos
Camellos de Villar de Paraizo – dos Carneiros e Machados de Espargo; e
tanto na Feira, como em Arrifana ha ainda os nobres appellidos de Borges
– Mattos – Mascarenhas – Pinhos – Carvalhos –Gomes Rebello – Azevedos –
Magalhães – Coutinhos – Pereiras – Lagos – Botelhos etc. No seculo
passado, e ainda no principio d'este houveram algumas familias d'estes
appellidos que viviam muito á lei dos nobres, mas pela maior parte tem
acabado, e outras transplantaram-se para outros lugares onde gozam das
rendas, e fóros que mandam cobrar por seus feitores.
N'esta comarca da Feira houve o primeiro, e original solar dos
Brandões que eram dois irmãos Carlos Brandam, e Fernam Brandam que
acompanharam o conde D. Henrique quando veio para Castella, e d'ahi para
Portugal; eram naturaes de Normandia de França, e cavalheiros
esforçados. Sendo postos por fronteiros em Gaia e na Terra de Santa
Maria em quanto o conde D. Henrique foi peregrinar á Palestina, casaram
com duas filhas de Rui Fernandes de PorteI, que morava entre o mosteiro
de Grijó, e a Villa da Feira e ahi fizeram grandes casas onde moraram, e
se chamaram os Paços de Brandão, que depois se povoou, e se fez a
freguezia do mesmo nome de Paços de Brandão, que hoje tem.
Fernam Brandão seguiu D. Affonso Henriques na tomada de Coimbra, e
serviu aquelle principe, que depois foi rei, e teve muita descendencia
que foi para muitas casas nobres da Extremadura, Alemtejo, e para a
Beira Baixa.
A descendencia de Carlos Brandam foi para o Porto, Minho, e Beira
Alta, e durou a sua descendencia em paços de Brandão até ao tempo do
reinado do sr. rei D. Duarte e por este tempo passou a varonia para
Corêxas ao pé de Arrifana de Souza, e extinguiu-se esta familia em paços
de Brandão. Foi para Ossella Henrique Brandam que ahi casou e houve
filhos legitimos – e muito depois veio um descendente da linha de Fernam
Brandam para commendador de Riomeão, Frossos, e Rossas chamado D. fr.
Braz Brandão, que eu conheci, e é hoje commendador d'Algôzo no Alemtejo
da ordem de Malta, e deixou cá filhos bastardos de que fez caso e um
d'elles chamado Domingos mora em Frossos, e outro mora em Rossas de
Arouca: mas é para admirar que em paços de Brandão não ficasse
descendencia d'esta illustre família nem legitima, nem ao menos
bastarda, nem nas freguezias circumvisinhas. O tempo destruiu os paços
mas não o nome, e os bens d'aquella grandiosa casa passaram a terceiros
possuidores.
Esta villa d'Aveiro teve sempre guarnição de tropa, e no seculo
passado em tempo do sr. rei D. João III tinha tropa de couraceiros, e de
infantes que acompanharam com a nobreza d'esta villa o sr. rei D.
Sebastião a Africa onde ficou com elle destroçada na batalha de Alcacere
quibir, ficando depois este reino mui prostrado com o dominio de
Castella. Altos juizos de Deus!
No reinado do sr. rei D. Sebastião formaram-se as ordenanças com
regimento de capitães-móres, e de sargentos-móres, que eram nomeados das
pessoas da primeira nobreza da comarca; depois d'estes eram os capitães
das companhias que tambem são tirados de entre a nobreza, o que ainda
hoje se cumpre por proposta dos vereadores, e nobreza da villa, e
provedor do concelho de Esgueira, Esta ordenança armada com differentes
armas brancas, e de tiro, faziam a defensa da terra depois que o sr. rei
D. Sebastião levou com sigo para Africa a flôr da tropa de couraceiros e
de ginetes: e depois que o sr. rei D. João IV foi acclamado rei d'estes
reinos em dezembro de 1640, foram creadas tropas de auxiliares, e foi
esta nobre villa uma das primeiras do reino que teve esta tropa em forma
de regimento com mestre de campo, e sargentos-móres de batalha e,
capitães, outros graus inferiores com fardamentos mui vistosos e aceados,
e peitos de aço, e esta tropa que foi adestrada para a guerra, servia
mui honrosamente para defender a comarca, e terras visinhas dos ataques
dos castelhanos que procuravam conquistar estes reinos; e para impedir o
desembarque de uma armada do parlamento de Inglaterra mandado por um
chamado Oliveiro Cromuvél de accordo com o rei de Castella contra o
nosso rei o sr. D. João IV que santa gloria haja, mas por fim fizeram-se
as pazes ficando nós em mais socego. A tropa dos auxiliares de Aveiro
foi tida como a mais briosa de toda a beiramar do reino, e a mais gabada
pelos grandes serviços que prestou, pelo que foram-lhe dados muitos
louvores, que ficaram registrados nos livros da camara de Esgueira.
Havia tambem n'esta villa uma boa companhia dos fachos, que acendia
fachos, e fogueiras nas praias do mar, para dar rebate de noute, e para
fazer signaes. Toda a tropa de Aveiro, e da comarca, dos auxiliares, e
ordenança armada excedia a 3:500 homens dos mais valentes, e esforçados.
N'esta villa todos os nobres d'ella, e da villa de Esgueira que
fica d'aqui uma milha para o nascente, desde tempos antiquissimos tem
costume de virem ao cáes em dia de S. João Baptista celebrar a sua festa
com mui luzidas cavalhadas onde appareciam, e ainda agora apparecem os
mais ricos telizes primorosamente bordados com bordaduras de ouro e
prata, e sedas de varias côres, e veludos ricos de terciopêlo, com suas
armas brazonadas, e divizadas, trajando os seus mais ricos vestidos de
gala, e plumas, e depois de praticarem com a maior destreza, e a mais
brilhante mestria differentes jogos de cavallaria, correm a sima pela
villa, e acabada esta vistosa funcção seguem á estacada dos touros, onde
cada um á porfia mostra a sua destreza, e manhas em acoçar os valentes
animaes ora de pé, ora a cavallo; mas raro é o anno em que não haja
algum desgosto, o que procede do descomedido atrevimento, e ouzadia em
os acometter, principalmente os touros que se mandam vir do Alemtejo, e
Santarém, por os quererem mais bravios do que os de cá: e tambem
n'aquelle dia se fazem mui vistosos fogos de artificio de dia, e tambem
de noute com figuras como de bonifrates de mui engenhosas invenções.
Esta villa padece o achaque de maleitas, que na quadra da
primavera, e do outono fazem adoecer muita gente, e em alguns annos
morrem muitas pessoas, o que é attribuido ás aguas encharcadas nas
salinas, e outros lugares plainos, onde morrem as aguas do inverno, que
produzem exhalações nocivas, e se não fosse este mal, que ainda se não
pode affastar, seria esta villa a mais formosa, e talvez a mais rica de
quantas villas maritimas tem o reino; e as epidemias tem sido a
principal das rasões porque a maior parte da nobreza, e pessoas
abastadas a tenham abandonado.
Ha dois annos vieram aqui chamados pelos principaes d'esta villa, e
da de Esgueira, que soffre o mesmo achaque, dois estrangeiros
holIandezes cujas terras dizem são mais baixas do que o mar, para darem
o seu parecer com o fim de se remediar tão grande mal: os ditos
estrangeiros dizia-se que eram muito entendidos na arte de engenheria
das aguas a que chamam hydraulica, e aqui estiveram quatorze mezes a
observar as enchentes dos rios, e a corrente do Vouga, as mares, e as
correntes dos ventos, e por fim disseram que a causa de não escoarem as
aguas era porque sendo a barra d'esta villa em má direcção e ao
sudoeste, e ter o canal mais de tres leguas que são 9 milhas da Vagueira
de Mira aqui, nunca esta barra havia de prestar nem para embarcações de
mediano lote, nem para dar prompta saida a todas as aguas, e que no
sitio de S. Jacintho, tapando a barra de Mira, fazer alli uma nova, e
que era aquelle o melhor ponto, mas que para levar a obra ao cabo, e com
a preciza segurança eram necessarios muitos mil cruzados para se
gastarem, e muitos milhares de braços para trabalharem n'ella, e que
ainda assim não ficavam por fiadores da obra por ser feita em areia
movediça que estará sempre á mercê dos ventos e das marés e das
enchentes dos rios: e com esta resposta nos deixaram ficar no mesmo
estado, e sem esperança de melhoramento até quando Deus quizer, e o sr.
rei não nos acudir com o seu braço real do qual ainda esperamos remedio
a nossos males. Se assim não for, d'aqui a pouco mais de meio seculo não
terá esta villa por moradores se não os que se occupam na pesca, alguns
mareantes, e aquelles que não tiverem meios de irem para outras partes.
Deus Nosso Senhor nos acuda com a sua Divina Graça, e com a sua
infinita misericordia. Amen. Aveiro, 27 de janeiro de 1687. O
licenciado, Christovão de Pinho Queimado.
Fielmente copiada por mim do original,
V. C. C. de Souza Brandão. |