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Memória sobre Aveiro do Conselheiro José Ferreira da Cunha e Sousa

XVIII - Arada

CONQUANTO a freguesia de Arada não seja parte da cidade, contudo, pela sua proximidade, pois está situada quase às portas dela, convirá dizer alguma coisa acerca do que era na época a que me tenho referido, e das mudanças que nela tem havido.

A povoação de Arada era sede de concelho, com juiz ordinário e Câmara Municipal. Este concelho, porém, não abrangia toda a freguesia, compondo-se apenas da povoação deste nome, exactamente como agora é, com a diferença de mais algumas casas novas e do melhoramento de algumas antigas; pode dizer-se composta de três ruas; a principal, porém, é a que segue à Estrada Nova, começando a população na casa alta na quinta de D. Maria Isabel, hoje dos herdeiros do visconde de Valdemouro, que fica à direita de quem vai da cidade. Do mesmo lado ficava a capela de S. Sebastião, no sítio onde hoje ainda está, e quase ao fim desta rua a casa da Câmara, do mesmo lado. Um casebre insignificante com uma sala em cima para as sessões e audiências, com uma prisão térrea que tinha apenas uma janela gradeada.

Daqui, descendo-se à fonte, e passada a baixa que ainda hoje lá existe, atravessando aí a estrada uma levada de água a descoberto, continuava pela estrada a outra rua, com casas mais raras, até próximo do sítio a que chamam o Coimbrão, sítio em que não havia casas, mas aí há já dois moradores.

Era nesta rua que habitavam os paneleiros, fabricantes de louça preta de barro, em que então toda a gente cozinhava e ainda cozinham algumas pessoas que a preferem à louça de folha de ferro, hoje muito generalizada. A outra, que chamaremos também rua e à qual chamavam Rua Cega, começava defronte da casa da Câmara com casas muito rareadas, indo terminar na casa de Caetano José Ferreira do Amaral, para onde foi viver, depois que, pela extinção dos conventos, foi vendida a casa em que habitava, junto dos celeiros onde ele recolhia as rendas do convento padroeiro, o que tudo era situado defronte da casa da Câmara, à entrada da dita Rua Cega.

Destas três ruas e de alguma casa isolada de um e do outro lado da estrada é que se compunha o concelho, confinado com o concelho de Aveiro pelo norte e nascente, e terminando no vale de S. Pedro das Aradas, no qual se acha o esteiro da mesma denominação e a malhada para secar o moliço. Como freguesia, porém, pertenciam à Arada as povoações de Verdemilho, Bom Sucesso, e ainda a Quinta do Picado, que pertenciam todas ao concelho de Ílhavo, deixando de fazer parte dele quando, pela divisão territorial de 1835, a freguesia de Arada passou inteira para o concelho de Aveiro.

Estas três povoações pagavam conjuntamente com o concelho de Arada o dízimo ao Convento da Serra do Pilar, que era o padroeiro da freguesia e pagavam igualmente oitavos ao Conde de Carvalhais, senhorio de Ílhavo, sendo de notar que o lugar de Verdemilho (corrupção de Vila de Milho, primeiro nome) foi em  tempos remotos a sede do concelho de Ílhavo e que é à Vila de Milho que el-rei D. Dinis deu foral em...

É também de notar que estes povos eram obrigados a levar o oitavo dos seus produtos ao celeiro de Carvalhais, próximo da vila de Anadia, o que lhes era muito penoso, e por isso de há muito que pediam ao senhorio um celeiro dentro do concelho, até que afinal foram atendidos, mas com a condição que aceitaram de pagarem mais um alqueire cada fogo, que chamavam o alqueire do celeiro. Este, creio que ainda existe, e era uma casa sobradada, à entrada da rua de S. João, ao lado do norte.

A igreja paroquial desta freguesia era situada junto do esteiro de S. Pedro, achando-se também aí a residência paroquial, que era ao mesmo tempo hospedaria dos frades quando vinham a esta paróquia. Achava-se, pois, na extremidade da freguesia, sem uma casa próxima, pois que a Quinta da Boa Vista, hoje pertencente à viúva do Dr. Agostinho Fernandes Melício foi edificada, muito entrado já o século XIX, pelo pai da dita senhora, o Dr. Gonçalves Monteiro, natural das Ribas, concelho de Ílhavo. Ficava, pois, a igreja em um sítio ermo, muito distanciada das quatro povoações da freguesia, sendo além disso, os caminhos maus e lamacentos, principalmente nas proximidades da igreja, tanto no leito da ponte como na avenida que da estrada ia em direcção à igreja, em razão dos montes de moliço que dos barcos eram lançados para os caminhos, como do contínuo rodar dos carros que dali o conduziam para as lavouras. Mas o que importava isto? Ao que se atendeu foi à comodidade dos padroeiros, que, quando vinham da Serra do Pilar a esta freguesia, embarcando em Ovar, vinham pela ria desembarcar no esteiro, tendo, para assim dizer, um pé ainda no barco e o outro já na residência; os paroquianos que se arranjassem como quisessem e pudessem, e com efeito lá se arranjaram; construindo cada povoação a sua capela, onde ouviam a missa, pagando aos capelães a quem também se confessavam, indo apenas à igreja para cumprimento do preceito quaresmal e para baptizados, casamentos e condução dos seus mortos.

Achava-se, pois, a igreja quase como abandonada; ali entrei uma vez, notando o deplorável estado em que se achava, com as sepulturas destapadas, vários trastes e objectos pertencentes ao serviço encostados às paredes, por falta de casa onde fossem recolhidos, os três altares todos faltos de asseio e limpeza, mostrando a mais extrema falta de cuidado.

Além disso, pela situação da igreja, sobre um terreno falso, quase lodo, arruinava-se ela amiudadas vezes, porque ou uma parede desequilibrada ou outra fazia fendas, o que obrigava o povo às despesas da reconstrução. No cartório da extinta provedoria vi um processo de arrematação de obras feitas naquela igreja por ordem do provedor; depois dos autos de apontamentos, arrematação e aprovação das obras, seguia-se o requerimento em que o juiz da igreja, entidade que naquele tempo desempenhava, quanto à igreja, as funções hoje a cargo das juntas de paróquia, pedia ao provedor providências para que o padroeiro fizesse os consertos de que a capela-mor carecia, pois que, apesar das suas instâncias para com o procurador do convento, o dito Caetano José Ferreira do Amaral, nada dele tinha podido conseguir; seguia-se no processo o despacho do provedor, mandando proceder a sequestro nos frutos armazenados no celeiro dos frades e intimar o procurador do convento para fazer as ditas obras em um prazo que lhe assinou, sob pena de serem feitas às ordens do juízo e pagas pelos frutos embargados, vendendo-se, para esse efeito, a quantidade necessária.

Acudiu logo o procurador do convento, prometendo fazer as obras imediatamente, como fez, menos, porém, o trono, dizendo que para isso não tinha obrigação, mas afinal lá o fez, bem ou mal, depois de se repetir a queixa do juiz da igreja, novo sequestro e nova intimação.

Infelizmente, este processo, que era dos fins do século XVII, ou dos primeiros anos do século XVIII, foi queimado no incêndio do Governo Civil de 1864, onde se achava com todos os mais papeis da provedoria.

Desde 1834 instavam estes povos pela construção de uma nova igreja em sítio mais central e acessível; os de Arada, por esta povoação ser vila, cabeça do concelho e da freguesia, pugnavam para que a igreja fosse edificada em Arada, ou o mais próximo dela possível; os três lugares distantes pretendiam que o fosse no sítio do Outeirinho por ser o mais central da paróquia.

Houve questões, chegando-se a vias de facto e a cometer-se até um assassinato, conforme as diversas parcialidades desta divergência, a qual era principalmente promovida por Caetano José Ferreira do Amaral que, muito devotado a D. Miguel, e esperando que ele havia de voltar ao trono português, sendo estabelecidas as leis do regímen antigo e de novo povoados os conventos, entendia ele que, colocada a igreja fora da área do concelho de Arada, o Convento da Serra do Pilar tivesse por este motivo questões com o conde de Carvalhais, das quais resultasse o perdimento dos direitos que tinha aos dízimos da freguesia.

Venceu, enfim, o partido adverso, graças à integridade do secretário geral, servindo de Governador Civil, Dr. António Ferreira de Novais, o qual, indo pessoalmente percorrer a freguesia e examinar os locais em que lhe parecesse mais conveniente fundar a igreja, escolheu o do Outeirinho, sem ainda saber que  era ali que os três lugares pretendiam que ela fosse edificada.

Foi em 1856 que, e em 17 do mês de Fevereiro que ali se disse a primeira missa, tendo-se fundado também junto da igreja um cemitério paroquial.

Neste cemitério foi sepultado o conselheiro desembargador Joaquim José de Queiroz, um dos vultos mais importantes deste concelho, entre os homens que promoveram o glorioso movimento da Carta Constitucional, tendo sido ele o secretário da Junta criada no Porto em 16 de Maio de 1828, por ocasião da reacção contra a elevação de D. Miguel ao trono, e sendo mais tarde ministro dos Negócios da Justiça.

Para este cemitério foi igualmente conduzido por sua disposição o cadáver de Domingos dos Santos Barbosa Maia, vulgo, Domingos Carrancho, o qual, sendo presidente da Câmara de Aveiro de 1842 a 1845, foi o primeiro presidente que iniciou nesta cidade e seu concelho obras e melhoramentos de alguma importância, entre os quais o cemitério em que jaz.

 

 

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