CONQUANTO
a freguesia de Arada não seja parte da cidade, contudo, pela sua
proximidade, pois está situada quase às portas dela, convirá dizer
alguma coisa acerca do que era na época a que me tenho referido, e das
mudanças que nela tem havido.
A povoação de Arada era sede de concelho, com juiz ordinário e Câmara
Municipal. Este concelho, porém, não abrangia toda a freguesia,
compondo-se apenas da povoação deste nome, exactamente como agora é, com
a diferença de mais algumas casas novas e do melhoramento de algumas
antigas; pode dizer-se composta de três ruas; a principal, porém, é a
que segue à Estrada Nova, começando a população na casa alta na quinta
de D. Maria Isabel, hoje dos herdeiros do visconde de Valdemouro, que
fica à direita de quem vai da cidade. Do mesmo lado ficava a capela de
S. Sebastião, no sítio onde hoje ainda está, e quase ao fim desta rua a
casa da Câmara, do mesmo lado. Um casebre insignificante com uma sala em
cima para as sessões e audiências, com uma prisão térrea que tinha
apenas uma janela gradeada.
Daqui, descendo-se à fonte, e passada a baixa que ainda hoje lá existe,
atravessando aí a estrada uma levada de água a descoberto, continuava
pela estrada a outra rua, com casas mais raras, até próximo do sítio a
que chamam o Coimbrão, sítio em que não havia casas, mas aí há já dois
moradores.
Era nesta rua que habitavam os paneleiros, fabricantes de louça preta de
barro, em que então toda a gente cozinhava e ainda cozinham algumas
pessoas que a preferem à louça de folha de ferro, hoje muito
generalizada. A outra, que chamaremos também rua e à qual chamavam Rua
Cega, começava defronte da casa da Câmara com casas muito rareadas, indo
terminar na casa de Caetano José Ferreira do Amaral, para onde foi
viver, depois que, pela extinção dos conventos, foi vendida a casa em
que habitava, junto dos celeiros onde ele recolhia as rendas do convento
padroeiro, o que tudo era situado defronte da casa da Câmara, à entrada
da dita Rua Cega.
Destas três ruas e de alguma casa isolada de um e do outro lado da
estrada é que se compunha o concelho, confinado com o concelho de Aveiro
pelo norte e nascente, e terminando no vale de S. Pedro das Aradas, no
qual se acha o esteiro da mesma denominação e a malhada para secar o
moliço. Como freguesia, porém, pertenciam à Arada as povoações de
Verdemilho, Bom Sucesso, e ainda a Quinta do Picado, que pertenciam
todas ao concelho de Ílhavo, deixando de fazer parte dele quando, pela
divisão territorial de 1835, a freguesia de Arada passou inteira para o
concelho de Aveiro.
Estas três povoações pagavam conjuntamente com o concelho de Arada o
dízimo ao Convento da Serra do Pilar, que era o padroeiro da freguesia e
pagavam igualmente oitavos ao Conde de Carvalhais, senhorio de Ílhavo,
sendo de notar que o lugar de Verdemilho (corrupção de Vila de Milho,
primeiro nome) foi em tempos remotos a sede do concelho de Ílhavo e que
é à Vila de Milho que el-rei D. Dinis deu foral em...
É também de notar que estes povos eram obrigados a levar o oitavo dos
seus produtos ao celeiro de Carvalhais, próximo da vila de Anadia, o que
lhes era muito penoso, e por isso de há muito que pediam ao senhorio um
celeiro dentro do concelho, até que afinal foram atendidos, mas com a
condição que aceitaram de pagarem mais um alqueire cada fogo, que
chamavam o alqueire do celeiro. Este, creio que ainda existe, e era uma
casa sobradada, à entrada da rua de S. João, ao lado do norte.
A igreja paroquial desta freguesia era situada junto do esteiro de S.
Pedro, achando-se também aí a residência paroquial, que era ao mesmo
tempo hospedaria dos frades quando vinham a esta paróquia. Achava-se,
pois, na extremidade da freguesia, sem uma casa próxima, pois que a
Quinta da Boa Vista, hoje pertencente à viúva do Dr. Agostinho Fernandes
Melício foi edificada, muito entrado já o século XIX, pelo pai da dita
senhora, o Dr. Gonçalves Monteiro, natural das Ribas, concelho de
Ílhavo. Ficava, pois, a igreja em um sítio ermo, muito distanciada das
quatro povoações da freguesia, sendo além disso, os caminhos maus e
lamacentos, principalmente nas proximidades da igreja, tanto no leito da
ponte como na avenida que da estrada ia em direcção à igreja, em razão
dos montes de moliço que dos barcos eram lançados para os caminhos, como
do contínuo rodar dos carros que dali o conduziam para as lavouras. Mas
o que importava isto? Ao que se atendeu foi à comodidade dos padroeiros,
que, quando vinham da Serra do Pilar a esta freguesia, embarcando em
Ovar, vinham pela ria desembarcar no esteiro, tendo, para assim dizer,
um pé ainda no barco e o outro já na residência; os paroquianos que se
arranjassem como quisessem e pudessem, e com efeito lá se arranjaram;
construindo cada povoação a sua capela, onde ouviam a missa, pagando aos
capelães a quem também se confessavam, indo apenas à igreja para
cumprimento do preceito quaresmal e para baptizados, casamentos e
condução dos seus mortos.
Achava-se, pois, a igreja quase como abandonada; ali entrei uma vez,
notando o deplorável estado em que se achava, com as sepulturas
destapadas, vários trastes e objectos pertencentes ao serviço encostados
às paredes, por falta de casa onde fossem recolhidos, os três altares
todos faltos de asseio e limpeza, mostrando a mais extrema falta de
cuidado.
Além disso, pela situação da igreja, sobre um terreno falso, quase lodo,
arruinava-se ela amiudadas vezes, porque ou uma parede desequilibrada ou
outra fazia fendas, o que obrigava o povo às despesas da reconstrução.
No cartório da extinta provedoria vi um processo de arrematação de obras
feitas naquela igreja por ordem do provedor; depois dos autos de
apontamentos, arrematação e aprovação das obras, seguia-se o
requerimento em que o juiz da igreja, entidade que naquele tempo
desempenhava, quanto à igreja, as funções hoje a cargo das juntas de
paróquia, pedia ao provedor providências para que o padroeiro fizesse os
consertos de que a capela-mor carecia, pois que, apesar das suas
instâncias para com o procurador do convento, o dito Caetano José
Ferreira do Amaral, nada dele tinha podido conseguir; seguia-se no
processo o despacho do provedor, mandando proceder a sequestro nos
frutos armazenados no celeiro dos frades e intimar o procurador do
convento para fazer as ditas obras em um prazo que lhe assinou, sob pena
de serem feitas às ordens do juízo e pagas pelos frutos embargados,
vendendo-se, para esse efeito, a quantidade necessária.
Acudiu logo o procurador do convento, prometendo fazer as obras
imediatamente, como fez, menos, porém, o trono, dizendo que para isso
não tinha obrigação, mas afinal lá o fez, bem ou mal, depois de se
repetir a queixa do juiz da igreja, novo sequestro e nova intimação.
Infelizmente, este processo, que era dos fins do século XVII, ou dos
primeiros anos do século XVIII, foi queimado no incêndio do Governo
Civil de 1864, onde se achava com todos os mais papeis da provedoria.
Desde 1834 instavam estes povos pela construção de uma nova igreja em
sítio mais central e acessível; os de Arada, por esta povoação ser vila,
cabeça do concelho e da freguesia, pugnavam para que a igreja fosse
edificada em Arada, ou o mais próximo dela possível; os três lugares
distantes pretendiam que o fosse no sítio do Outeirinho por ser o mais
central da paróquia.
Houve questões, chegando-se a vias de facto e a cometer-se até um
assassinato, conforme as diversas parcialidades desta divergência, a
qual era principalmente promovida por Caetano José Ferreira do Amaral
que, muito devotado a D. Miguel, e esperando que ele havia de voltar ao
trono português, sendo estabelecidas as leis do regímen antigo e de novo
povoados os conventos, entendia ele que, colocada a igreja fora da área
do concelho de Arada, o Convento da Serra do Pilar tivesse por este
motivo questões com o conde de Carvalhais, das quais resultasse o
perdimento dos direitos que tinha aos dízimos da freguesia.
Venceu, enfim, o partido adverso, graças à integridade do secretário
geral, servindo de Governador Civil, Dr. António Ferreira de Novais, o
qual, indo pessoalmente percorrer a freguesia e examinar os locais em
que lhe parecesse mais conveniente fundar a igreja, escolheu o do
Outeirinho, sem ainda saber que era ali que os três lugares pretendiam
que ela fosse edificada.
Foi em 1856 que, e em 17 do mês de Fevereiro que ali se disse a primeira
missa, tendo-se fundado também junto da igreja um cemitério paroquial.
Neste cemitério foi sepultado o conselheiro desembargador Joaquim José
de Queiroz, um dos vultos mais importantes deste concelho, entre os
homens que promoveram o glorioso movimento da Carta Constitucional,
tendo sido ele o secretário da Junta criada no Porto em 16 de Maio de
1828, por ocasião da reacção contra a elevação de D. Miguel ao trono, e
sendo mais tarde ministro dos Negócios da Justiça.
Para este cemitério foi igualmente conduzido por sua disposição o
cadáver de Domingos dos Santos Barbosa Maia, vulgo, Domingos Carrancho,
o qual, sendo presidente da Câmara de Aveiro de 1842 a 1845, foi o
primeiro presidente que iniciou nesta cidade e seu concelho obras e
melhoramentos de alguma importância, entre os quais o cemitério em que
jaz. |