É notável o incremento da cidade realizado nos últimos quarenta anos
do século passado. Conquanto de 1834 por diante fossem mudando e
melhorando as condições dela, fazendo-se novas construções,
desaparecendo muitos pardieiros, até nas suas ruas principais, que muito
a desfeavam, fazendo-se enfim habitações em muitos sítios vagos, onde
tinha havido casas das quais nem vestígios restavam, durante toda a
metade do século XIX, pouco adiantou a cidade, e só depois da passagem
da linha férrea é que os seus melhoramentos se foram desenvolvendo
sucessivamente.
Até 1834 os limites da cidade eram propriamente os que vou referir.
Entrando pela estrada nova, aquele primeiro lanço da estrada de Aveiro a
Coimbra, mandado construir nos fins do século XVIlI pelo governo de D.
Maria I, e que se estende desde S. Sebastião até ao princípio da vila de
Arada, era em 1834 a única estrada propriamente dita que existia por
estes sítios, larga, ladeada de frondosos álamos, cujos ramos,
entrelaçando-se os de um com os de outro lado, faziam agradável sombra,
sendo por isso o único passeio público da cidade, frequentado pelas
pessoas mais gradas dela, assim seculares como eclesiásticos, tendo em
todo o seu comprimento do lado do poente uns três ou quatro bancos de
alvenaria com encosto, onde se sentavam os passeantes, gozando de bom ar
e de boas vistas, e vendo passar continuamente gente de pé e de cavalo,
porque era a única saída da cidade para as povoações do Sul e Sudoeste.
Por ali vinham os carros de cal, de madeiras e lenha, os viajantes que
de Coimbra preferiam esta estrada, para aproveitar as cinco léguas de
barco, entre Aveiro e Ovar, as padeiras de Ílhavo e Vale de Ílhavo, as
lavadeiras de roupa, tudo o que ia ou vinha da cidade ou para a cidade.
É verdade que a antiga saída dela para as povoações do sudoeste, Ílhavo,
Sôza e Vagos, e mesmo para Mira e Figueira da Foz, era o caminho de
Nossa Senhora da Ajuda, na direcção de Santiago, mas que, chegando à,
casa da quinta dos Barbosas, e hoje do Sr. Arnaldo Augusto Alvares
Fortuna, tomava por uma azinhaga à esquerda, que seguia até à fonte do
Lila; aberta, porém, a estrada nova, o povo achou mais curto e mais
agradável esta estrada até um ponto um pouco aquém da abertura da nova
estrada de Aveiro à Figueira da Foz, atravessava as terras lavradas, ia
dar à mesma fonte do Lila, daí, subindo a ladeira e passando o lamaçal
da ponte de S. Pedro, subia a outra ladeira até Verdemilho, seguindo
para Ílhavo, pelas Ribas os que se dirigiam àquela vila, ou continuando
por Verdemilho e Bom Sucesso, e atravessando o sítio do Passadouro,
próximo dos Moutinhos, iam até ao Vale de Ílhavo, donde havia caminho
para Sôza e também para a Pedricosa, onde se passava a barca para Vagos,
e pelo areal se fazia caminho até Mira. Também se fazia caminho por
Arada e Borangal, até ao Outeirinho, onde se acha a igreja da freguesia.
Chama-se ainda hoje a este caminho o caminho das padeiras, por ser o que
diariamente seguem as mulheres que do Vale de Ílhavo vêm vender pão à
cidade. É para notar-se que a estrada nova, até ao princípio de Arada,
era mais larga do que actualmente, pois para fora da linha dos álamos
ainda havia terreno público, e tanto que do lado do poente havia por
fora dos álamos, em terreno hoje cultivado, um caminho para duas pessoas
a par, que os viajantes preferiam, principalmente quando as chuvas
faziam lama e poços de água no leito da estrada, sempre cortada das
rodas dos carros, estragos a que não havia muito cuidado de atender.
Chegados à Fonte dos Amores, tínhamos o largo de S. Sebastião, que
era triangular, sendo o vértice para a rua do mesmo nome, e a base uma
linha que partia da fonte para nascente, até, ao Caminho de S. Bernardo,
onde estava a capela de S. Sebastião. Este caminho era uma azinhaga
ladeada de cômoros de silvas, que, passando ao lado de Vilar, lá ia dar
a S. Bernardo.
A capela pertencia à Câmara, mas só se abria no dia em que a Câmara
ali ia em procissão, que saía da igreja de S. Miguel, ouvir missa
cantada no dia do Santo, e também em um dos dias, das ladainhas, em que
a procissão delas ali ia cantar missa com a Câmara, e sendo obrigada a
acompanhá-la uma pessoa de cada casa, sob pena de multa.
Outras duas procissões era a Câmara obrigada a fazer, a do Anjo
Custódio no dia próprio e respectivo, e a da Visitação de Nossa Senhora
a Santa Isabel. Estas, porém, saindo igualmente da igreja de São Miguel,
dirigiam-se à igreja de S. Domingos, havendo aí missa cantada.
A imagem de S. Sebastião, quando por ocasião da abertura da nova
estrada de S. Bernardo foi demolida a sua capela, foi levada para o
arquivo da Câmara, e daí, passados alguns anos, para a capela de S. João
do Rossio, onde é venerada.
O largo de S. Sebastião era um pousio inculto, com covas e algumas
depressões de nível, nas proximidades dos prédios cultivados, base do
triângulo entre a fonte e a capela.
A cidade, isto é, as ruas com casas unidas, terminava a três ou
quatro casas da rua de S. Sebastião, acima da travessa de S. Martinho;
daí, até Arada e S. Bernardo, não havia casa alguma, além da casa da
quinta dos Srs. Cunhas, próximo do passo de nível do caminho de ferro no
caminho de S. Bernardo, e tinha havido uma outra casa pertencente aos
antepassados dos Srs. Cristos, situada em frente da Fonte dos Amores,
pouco mais ou menos no sítio onde abre a estrada vulgarmente chamada das
Pombas, que vai entroncar na de Santiago.
A rua de S. Martinho, ainda hoje, conserva-se pouco mais ou menos
como em 1834, com a diferença de se terem reformado alguns prédios e
construído alguns novos, tanto na rua como na travessa que a une com a
rua de S. Sebastião, travessa que naquele tempo era um pequeno largo,
quase sempre um charco de água de lama.
Seguia-se o bairro chamado das Olarias, até à Fonte Nova, por onde
se não nota outra diferença senão a construção de algumas casas novas,
algumas em sítios onde já tinha havido prédios, mas sem que deles
houvesse vestígios, e com a diferença de não haver, nesse tempo, o
caminho que vai da Fonte Nova, dando passagem para a freguesia da Vera
Cruz, e com a diferença, finalmente, de ter desaparecido uma rua
desabitada que seguia da Fonte Nova até ao portão da entrada para o
Cemitério, à Corredoura. A parte desta rua que fica ao nascente do
Cemitério, do qual nos ocuparemos em especial, está hoje em grande parte
ocupada pelos jazigos de família, ou capelas do Cemitério. Tudo era
cerca do convento de S. Domingos, assim o Cemitério como a parte
confinante com a Corredoura, que é hoje propriedade particular.
Seguia-se a Corredoura, que está melhorada, tendo-se construído
algumas casas em terreno que então era baldio.
A rua da Fábrica, nome que tem de uma de faiança, donde ele se
deriva, fábrica que existia na casa de quinta do morgado de Vagos, não
teve alteração alguma até ao presente, fechando aí a parte urbana da
cidade, pelo lado do nascente, como agora; isto quanto à freguesia de
Nossa Senhora da Glória. Pelo poente, porém, da rua de S. Sebastião,
passava-se ao Campo de Santo António por uma azinhaga que hoje é
pública, na qual está o edifício dos Asilos de infância desvalida.
Afora estas ruas, não havia para aqui mais casas das que hoje
existem na rua do Passeio, em que findava a cidade, a não se querer que
ela fosse por um lado findar no convento de Santo António; apesar de
este se achar isolado e haver entre ele e as últimas habitações da
cidade o Campo, hoje jardim público, e então uma alameda de velhos
freixos, já em parte substituídos por álamos e outras árvores menos
importantes, e por outro lado nas três ou quatro
casas que havia nas traseiras da capela de Nossa Senhora da Ajuda(3),
apesar de estas casas estarem, como ainda hoje estão, separadas das da
cidade propriamente dita.
O Campo de Santo António não era todo nivelado; para o lado do
poente descaía em rampa, para um caminho de carro, por onde agora vai o
muro de suporte, feito para deter os entulhos e terras necessárias para
nivelar o terreno; este caminho findava em uma porta de carros, entrada
para a quinta de Nossa Senhora da Ajuda, e em volta do Campo achavam-se
as cruzes de pedra que ainda hoje se vêem no pequeno largo em frente das
igrejas.
Serviam as cruzes para as vias-sacras que os terceiros faziam em
certos dias, e também para quem tinha devoção de entregar-se a este
piedoso exercício.
Do Campo de Santo António vinham os confins da cidade pela rua de
Santo António, traseiras do edifício do Governo Civil; nesta rua não
havia mais do que a casa fronteira do jardim, a última do povoado, no
começo da mesma rua.
Esta casa pertencia a um morgado da serra, por apelido Soares de
Albergaria, de quem se contavam muitas façanhas, como jogador de pau nas
feiras e arraiais, que ele às vezes varria completamente; estava em
parte desmoronada e desabitada, mostrando assim pertencer a um morgado
rico. Foi afinal comprada pela viúva Barbosa, da Praça, que a reedificou
e que pertence hoje, se não me engano, ao Sr. Dr. António Emílio de
Almeida Azevedo.
Na segunda metade do século passado, fizeram-se nela mais duas
casas, uma do Conselheiro Dr. Artur Ravara, e outra da família Rangel de
Quadros, da Rua Direita.
A travessa entre o Governo Civil e a casa de D. Rosalina de
Azevedo, cunhada de José Antunes de Azevedo, hoje viúva, foi aberta há
uns poucos de anos, e ficou chamada recentemente travessa Artur Ravara.
A lápide onde estava escrito este nome partiu-se e não se
substituiu.
Seguiam os limites da cidade pela rua das Arribas, até ao Campo dos
Santos Mártires, e aí terminava o povoado da cidade nas traseiras e
muros de quintais da rua das Barcas.
O largo onde hoje está o novo bairro, era um campo pouco nivelado,
cortado quase a meio por um esteiro ou canal, que vinha do esteiro dos
Santos Mártires, até próximo daquelas traseiras; tinha guardas como as
do Canal das Pirâmides, e por se ter tornado inútil, foi aterrado e
desfeitas as paredes, isto já depois de 1834. Ficou o campo, pois, sendo
só um, onde os varredores da cidade depositavam os detritos que juntavam
pelas ruas da cidade, até terem carrada; não havia ali casa alguma, nem
se prestava a passeio; era uma espécie de monturo.
Na quinta dos Santos Mártires, dentro já dela, e unida à capela,
havia uma casa, que, apesar de térrea, era vasta, parecendo ter sido
feita para habitação de família, tendo na frente um pequeno largo
circuitado, que mostrava ter sido deixado para jardim.
Nesta casa reunia-se a Associação Secreta que em Aveiro havia, das
que se formaram em vários pontos, e cooperaram para o glorioso movimento
de 24 de Agosto de 1820; era por isso mal vista do povo e das pessoas
afectas ao absolutismo, e o Sr. Alfredo Rangel, último administrador do
vínculo, demoliu-a quando reedificou a capela e recolheu nos jazigos os
ossos dos seus antepassados que andavam espalhados pelas proximidades da
mesma capela. Acerca desta ocupar-nos-emos em especial.
Naquele sítio fazia-se, como hoje, descarga de moliço, parte do
qual ia pela viela de D. Jerónima, para a estrada de Santiago, até onde
a condução era mais breve do que indo do esteiro daquela povoação.
E, como não havia a estrada ou Caminho das Pombas, a que já nos
referimos, o que era destinado para as terras da estrada nova de Vilar e
S. Bernardo, ia pelas ruas da cidade a toda a hora do dia, assim como a
toda a hora se fazia a limpeza de quinteiros e latrinas da cidade e o
estrume que os varredores juntavam. Estes varredores não eram pagos pela
Câmara; ao contrário, ela recebia deles certa quantia, a título de
licença; eram filhos e criados dos lavradores residentes nas povoações
circunvizinhas; não faziam a limpeza da cidade, mas, percorrendo as
ruas, em uma das mãos a canastra e na outra a pá e a vassoura, só
colhiam delas o que entendiam ser conveniente para as suas estrumeiras;
também costumavam trazer palhas, sobre as quais lançavam lodo tirado à
beira dos canais, onde não havia cortina.
A viela de D. Jerónima era o que agora é, a estrada, que, partindo
da malhada dos Santos Mártires, vai até ao sítio de Nossa Senhora da
Ajuda, mas então uma azinhaga estreita e assombrada pelas árvores e
silvas dos valados laterais; sendo um dos sítios que o povo chama
pesados, pelos aparecimentos de bruxas e lobisomens, onde os
bandarristas acreditavam haver tesouros e mouras encantadas.
Um passadiço alto comunicava a quinta dos Santos Mártires com as
terras do outro lado, onde hoje há um prédio importante, pertencente à
esposa do Sr. José Reinaldo de Quadros Oudinot, irmã do último
administrador do vínculo.
Era, pois, completamente desabitado aquele lugar dos Santos
Mártires, onde em 1870, pouco mais ou menos, se cingiu novo bairro,
abrindo-se ruas e aforando-se terrenos para casas.
Passada a ponte, não havia casa alguma de habitação; apenas
palheiros para recolher sal ou outros objectos pertencentes aos
trabalhos da pesca ou salinagem. O Matadouro ali existente é obra de
1870, pouco mais ou menos, e o abatimento dos gados para os açougues
fazia-se no armazém ao fundo da rua chamada da Fábrica, nome que esta
deu à rua, e cuja laboração findou peta morte do último empresário, a
viúva de Pedro António Marques, em 1907.
Direi ainda, que o caminho para Arada, antes da abertura da estrada
nova, se fazia descendo por uma viela que ainda hoje se conserva, logo
acima da última casa da rua de Ílhavo, seguindo da mesma viela uma
azinhaga estreita e lamacenta, que ia findar ao princípio da vila.
O bairro das Olarias era aquela parte da cidade que, limitada pela
Fonte Nova e pela rua do Rato, ia até à rua de S. Martinho; a parte mais
povoada era a rua que partia da do Rato, ficando-lhe à esquerda onde
está hoje o asilo do sexo feminino, que então pertencia ao desembargador
Salazar, secretário da alçada que o governo de D. Miguel mandou ao
Porto, para sentenciar e condenar os pronunciados nas devassas chamadas
de rebelião, entre os quais, infelizmente para D. Miguel, a par de
constitucionais convictos, havia um grande número de absolutistas que a
feroz sanha das autoridades ou ódios pessoais levaram às cadeias,
aumentando assim o número das vítimas daquele desgraçado período de 1828
a 1834.
No bairro das Olarias apenas conheci dois velhos que me diziam
terem sido oleiros, mas que já não trabalhavam. Havia, porém, ainda, um
depósito de louças fabricadas anteriormente, e que não tinham saída,
assim como ornatos para os telhados, assim não só figuras de gatos e
cães, como pucarinhos de água, que muita gente colocava nos cumes e
beirais de suas casas. Também ali se fabricavam formas dos chamados pães
de açúcar que iam para o Brasil e que deixaram de ir, desde o
infelicíssimo tratado de 1810, sendo algumas dessas formas aplicadas à
construção de muros de quintais, e bastantes vi eu no muro que fechava a
quinta da Fábrica pelo lado da Corredoura.
Também nas Olarias houve bons oficiais de escultura, havendo ainda
em algumas casas da cidade imagens de santos que, na exposição artística
do Distrito de Aveiro, em 1882, foram devidamente apreciadas. |