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Reminiscências. Crónicas e outros escritos, Aveiro, 2014, pp. 197-199.


Raawanfond
(em casa do Aquém Doutor)

A Blanche foi minha colega nos 4º e 5º anos do liceu, no colégio Abade Faria, que se situava na rua do mesmo nome em Margão, no tempo já a segunda cidade do estado (português na altura) de Goa. De nome completo Maria Blanche Araújo Silva, era filha do director do colégio, o professor Joaquim Silva. Tinha um irmão mais novo, o Jerónimo, mas que era tratado familiarmente por “Babuló”. A casa do sr. Director ficava mesmo ao lado do colégio, na esquina oposta. Foi isto nos anos de 1951 a 1953.

Deixei de ver a Blanche desde o último destes anos, porque enquanto eu seguia para Pangim para fazer os 6º e 7º anos, ela ficou por Margão e enveredou pelo magistério primário. Assim como igualmente deixei de ver o irmão.

Entretanto o Jerónimo completou o liceu e veio para o “continente”, onde se licenciou e acabou por fixar, enquanto a Blanche como professora primária por lá ficou por Goa e por Margão. Nas minhas deambulações mais recentes (de há meia dúzia de anos a esta data) pela Casa de Goa, em Lisboa, tive ocasião de voltar a encontrar o “Babuló”. E falámos naturalmente da irmã e da vontade que ambos teríamos em nos reencontrar, quase cinquenta anos passados, pois não houvera entretanto ocasião para nos vermos de novo, após o meu regresso de Goa.

A Blanche estivera de visita ao irmão em determinada altura, mas só tive conhecimento da sua estadia entre nós na véspera do seu regresso a Goa, tendo no entanto ainda oportunidade de a contactar por telefone e prometer-lhe uma visita em futuro muito próximo, já que me preparava para efectuar um novo “tour” por aquelas paragens.

E de facto assim aconteceu. Não só nos reencontrámos como ainda tivemos hipóteses e tempo de darmos conta das alterações entretanto sofridas pelos dois, uma vez que simpaticamente me aboletou em sua casa nos derradeiros cinco dias que estive em Goa em Janeiro de 1999.

A ideia com que ficara dos dois irmãos nos anos cinquenta era a de dois “descendentes”, já pelos nomes europeizados, como ainda pelo tom de pele que me pareceu na altura mais claro do que a maioria dos goeses. Apesar do irmão se encontrar já devidamente integrado no ambiente e na vida lisboeta, continua “goês”, de tom de pele e mentalidade, e a Blanche, vim agora a constatar, nunca deixou de o ser. Tive que rectificar a ideia que me ficara do passado, não só pelo aspecto exterior, como por conversas que nesta visita tive com a Blanche, já que com treze, catorze anos, que tínhamos na altura, essas particularidades nos passavam ao largo.

A Blanche, agora já viúva, saiu de casa do pai Silva para casar com um médico, de nome Luís Peregrino D’Costa (assim mesmo!...), indo depois viver para casa deste, nos arredores de Margão, mais propriamente num local chamado Raawanfond, também conhecido por Aquém de Baixo. A casa, tivemos ocasião de o constatar, é uma enorme moradia, uma bem conservada casa de família com cerca de trezentos anos, de arquitectura tipicamente hindu ainda que adaptada a gente católica como eram na altura os Silvas e os Peregrinos D’Costa. Tem ainda vestígios da defesa que os ascendentes do Aquém Doutor (como é por aqui conhecido o falecido marido da Blanche) foram obrigados a ter para se defenderem de possíveis ataques dos “ranes”, quando estes tentaram atacar Goa em épocas passadas, tais como orifícios-viseiras nas paredes, de onde poderiam ser assestadas armas de fogo a disparar para o exterior.

Ambos, embora assumidos praticantes, tanto que até uma capela existe no interior da moradia, eram descendentes de católicos “forçados”. Como a história refere, muitos dos católicos, ou melhor cristãos, eram oriundos de famílias hindus que, nos séculos quinze e dezasseis, eram, em pequenos, desviados das famílias e forçados a ser baptizados levando normalmente o apelido do padre que efectuava tal cerimónia. Daí os Costas, os Silvas, os Albuquerques, os Fernandes, os Viegas e muitos outros nomes portugueses que proliferam ainda hoje por aquelas paragens.
Tenho que considerar que me fazia efectivamente impressão na altura quando algum destes cristãos se apresentavam como sendo brâmanes uns (os letrados), vaisyas outros (os comerciantes) e depois a grande maioria sudras. Como sabemos, estas são as designações das castas hindus, e portanto embora cristianizados, continuavam todos a fazer questão na sua casta. E alguns problemas poderiam surgir por causa disso. Foi o que aconteceu com o casamento da Blanche com o Aquém Doutor, como era conhecido o Luís Peregrino D’Costa na aldeia de Raawanfond, pois enquanto ela era brâmane, considerada a casta superior, o doutor era sudra, que é a mais baixa das quatro castas existentes na Índia e então grande celeuma ocasionou esta paixão que foi durante bastante tempo contrariada, mas que o amor de Blanche pelo seu “peregrino” conseguiu fosse ultrapassada a barreira das castas. Perguntarão, como é que isto ainda acontece neste século?, mas isso é um facto e um estigma que os indianos não conseguiram ultrapassar, ainda que, como neste caso, os intervenientes se admitiam já como cristãos praticantes.

O caso, desta minha colega de liceu, vem confirmar a descendência hindu de grande parte dos cristãos que fomos encontrar em Goa naqueles tempos. A adopção do “sari” usado preferencialmente pela Blanche, como traje habitual no contacto com o exterior, o seu casamento com o doutor D’Costa que pertencia a uma casta diferente da sua, (doutor que foi um “freedom fighter”, lutando com persistência pela integração daqueles territórios na Índia), o tipo de vida que leva ainda agora em Raawanfond, tudo isto mostra que os Silvas não estariam tão ocidentalizados quanto eu pensava e que a sua ancestralidade continuava presente.

Os nomes próprios destes cristãos, forçados ou não, que até se alargar o território eram portuguesíssimos, a partir de 1961 deixaram em grande parte de o ser, e para o confirmar, o casal D’Costa-Silva, de nomes próprios Luís e Maria, colocaram ao filho, nascido em 1965, o nome de Pradip, que quer dizer “raio de luz” em língua local. Este, por sua vez, casou com uma jovem, nascida também depois da integração e de nome próprio, igualmente não português de todo, Eileen. Mas é bom referir-se que, apesar de terem nascidos “integrados” na grande nação indiana e de a língua portuguesa ser completamente banida em termos de estudo ou ainda de conservação, ambos falam a língua portuguesa sem dificuldade de maior, isto para além de serem umas jóias de pessoas, e a quem se deveu muito do bem-estar que me foi proporcionado nos tais últimos dias passados em Goa em Janeiro de 1999.


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