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Reminiscências. Crónicas e outros escritos, Aveiro, 2014, pp. 186-189..


Satyagrahis

Às 0 horas do dia 15 de Agosto de 1947 a Inglaterra, através do seu último vice-rei Lord Mountbaten, oficializa o abandono do enorme território que vinha administrando desde há dois séculos na província do Decão, e a que se chamava entre nós de Índia inglesa, originando a partição do mesmo, transferindo os poderes para dois novos estados, a Índia e o Paquistão, nas pessoas dos senhores Jawaharlal Nehru e Mohammed Ali Jinnah respectivamente.

No mais amplo território que “calhou” à Índia ficaram encravados os enclaves de Goa, Damão e Diu, que constituíam o que Portugal denominava de Estado da Índia Portuguesa e outros mais pequenos, como Pondicheri, Chandernagor, Mahé, que vinham sendo administrados até então pela França.

Desde logo o “pandita” Nehru começou a pensar que estes enclaves deveriam pertencer à União Indiana, como melhor designou o novo estado, e trata de diligenciar para o efeito. Se a França lhe fez a vontade passado pouco tempo, Portugal não esteve pelos ajustes e pela voz melífera de Salazar fazia saber ao “pandita” que não abdicava da sua soberania sobre aqueles territórios, que os portugueses de mil e quinhentos tanto tinham suado para os “conquistar”.

Em 1951 quando eu fui para Goa já as relações entre Portugal e a novel Índia eram bastante tensas e o conflito agudizava-se ainda que, por enquanto, só a nível diplomático e em diferendo a tentar ser resolvido pelas Nações Unidas. O tempo passava, Portugal não fazia a vontade ao senhor Nehru e este insistia na anexação.

Eis senão quando, o “pandita” se lembra de tentar a anexação pela via iniciada tempos atrás por Mahatma Gandhi quando este lutava pela independência da “sua” Índia, ou seja pela designada via da não-violência. E é então que aparecem os “satyagrahis”.

Façamos um parêntesis para introduzir a ideia deste palavrão. O termo começa com “Satya” que na filosofia hindu significa a verdade pura, a realidade suprema. Daqui deriva “satiagraha” (tradução directa “fecho da verdade”), o espírito dos adeptos da “ahîmsa” (ou não violência), quando decididos a obter qualquer coisa, sob o plano religioso ou político, ainda que a custo da própria vida. Como “satiagraha” ficou conhecido o movimento não-violento de resistência a uma opressão, iniciado por Gandhi em 1894 na África do Sul, e prosseguido na Índia a partir de 1920 com fins políticos. Os que seguem o “satiagraha” são designados de “satiagrahis”.

Apesar das invasões destes “satiagrahis” se autoproclamarem de pacíficas, e que inicialmente não passavam da fronteira porque os militares os não deixavam prosseguir, elas não deixaram contudo de fazer mossa quando em 22 de Julho de 1954, em escaramuças nos enclaves de Dadrá e Nagar-Aveli, que pertenciam ao território de Damão, um sargento e um soldado indígenas foram abatidos pelos tais “pacíficos” adeptos da não violência. Como resultado da escaramuça, apossaram-se daqueles dois enclaves, que Portugal reclamaria depois em vão.

Esse ano de 1954 foi o início a sério dos “satiagrahis”. Um dos mais acérrimos defensores da integração de Goa (e necessariamente dos dois outros territórios) na União Indiana era Peter Alvares, auto-proclamado presidente do “National Congress (Goa)” e que em Julho deste ano de 1954, em pregão lançado de Belgão, anuncia que no mês seguinte seria lançada uma ofensiva “satiagraha” de jacto, de avalanche, do “agora ou nunca”. Efectivamente a 15 de Agosto, coincidente com o aniversário da independência da Índia, uma fila de “satiagrahis” organizada ao som de cânticos de paz, tendo as respectivas famílias a despedirem-se (não esqueçamos que o movimento admitia, se necessário, o custo da própria vida), colares de flores ao pescoço, todos de branco vestidos, em ritmo de procissão romperam fronteira portuguesa adiante. Diziam-se eles próprios contratados a 4 rupias por cabeça (ao câmbio da altura correspondia isto a cerca de vinte escudos, veja-se a miséria do contrato).

Como não vinham armados, não perturbando demasiado a ordem pública com excepção do aparato da procissão em si e por tal motivo dificultar o escoamento do trânsito por ocuparem as vias, foram deixados avançar até Pangim. Aqui começaram as manifestações mais impertinentes e a ofensiva verbal de denegrir a soberania portuguesa. Naturalmente que a polícia de Goa, comandada que era na altura por um militar “de barba rija”, que tinha andado na guerra civil de Espanha, o capitão Romba de seu nome, estava atenta a estes movimentos e logo que eles extravasaram um pouco tratou de activar os seus efectivos e de os levar para a cadeia do Altinho, alcandorada na colina que domina a cidade de Pangim, ou Nova Goa como então era mais conhecida.

Na sua maior parte os integrantes desta invasão pacífica eram banais rapazolas, alguns mesmo adolescentes, a quem lhes teria sido prometido mundos e fundos. Para ver da ingenuidade destes “aboletados”, um que desfraldou a bandeira da União Indiana e gritou “Jai Hind” (Viva a Índia), disse depois que lhe tinham garantido que, logo que levantasse a bandeira, milhares de goeses se juntariam a ele. Juntou-se-lhe só um, mas foi para o prender.

Por aqui se pode ver o quanto esta gente vinha enganada e manipulada, não fazendo a mínima ideia do que vinha fazer. Havia até quem levantasse a suspeita de que o “satiagraha” podia eventualmente ser uma solução para a crise e para o desemprego que se verificava então na União Indiana. Para os que entretanto foram presos, e durante o tempo que estiveram na cadeia do Altinho, poder-se-á dizer que “tiraram a barriga de misérias” e testemunharam até terem sido bem tratados. A este respeito, convidamos a ler uma obra de um insuspeito Coronel francês, Remy de seu nome, que tendo estado nesses anos em Goa, escreveu depois a obra “Goa, Rome de l’Orient” onde relata conversas que entreteve com alguns destes “satiagrahis”.

Com maior ou menor actividade estas invasões de “satiagrahis” foram-se sucedendo, mas não sendo obtidos os resultados que pensaram obter com estes movimentos, os mesmos foram-se diluindo com o tempo. Até que, em 1961, resolveram agir de outra maneira, mandando a não-violência “às malvas” e actuando como se sabe para se apoderarem dos territórios dominados por quatrocentos e cinquenta anos pelos portugueses.


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