CABA de descer ao túmulo o mais notável chefe de Estado da primeira década do século XX; sobre a sua campa não se ouviram maldições de vencidos, em coro, com as orações dos triunfadores; sobre ela esfolharam-se flores em preito de saudade não apenas as de seus súbditos, mas as do mundo inteiro, porque o soberano fora chamado Eduardo VII, o Pacífico, e não o Bravo ou o Conquistador.

Não vamos fazer a biografia do grande rei; vamos apenas tornar conhecida de nossos leitores um aspecto da sua vida, geralmente desconhecido entre nós: Eduardo VII, como o seu dedicado amigo D. Carlos I, era lavrador.

Durante o seu curto reinado a agricultura na Inglaterra sofreu profundas modificações, que não podiam deixar de interessar o soberano, que procurava alcançar a felicidade para o seu povo.

Nos últimos anos, vastos terrenos, considerados impróprios para a cultura, tornaram-se como por encanto em extensos campos pela cultura cuidada, feita de acordo com as indicações da ciência. Os campos atraíam a população das cidades que ali vai procurar uma vida tranquila e sã. Os grandes proprietários associam na partilha dos lucros o pessoal da sua lavoura.

Por outro lado filantropos, como os grandes industriais do sabão Lever & Brothers, constroem a cidade ideal, a cidade jardim de Port Sunlight para os seus operários que ali encontram o conforto que só possuíam os ricos. Belas casas cercadas por jardins para a cultura de flores e hortaliças formam a cidade.

A classe média aspira a ter alguma coisa semelhante: uma casa própria e um pequeno terreno para cultura, e em breve surgem as novas cidades jardins de Hampstead e Letchworth.

/ 454 / As revistas inglesas publicam numerosos artigos interessando o público pela vida campestre e escritores como o romancista Rider Haggard deixam de escrever romances para nos descreverem em belas páginas os seus jardins e hortas nas diversas estações ou os aspectos da Inglaterra rural.

Aos que não podem viver no campo também se lhes oferece o ensejo de ali passarem algum tempo: algumas caixeiras e costureiras de Londres vão passar as férias no campo ocupando-se na colheita e acondicionamento de frutas destinadas aos mercados.

Um soberano, como Eduardo VII, não podia ficar indiferente diante de tal interesse pela cultura da terra e vida campesina e ele mesmo sentia de há muito em si a paixão pelos campos.

Se foi o primeiro homem do seu país, foi também o primeiro lavrador.

Sandringham transformou-se numa herdade modelo, com as suas sumptuosas abegoarias, cavalariças, currais, cortelhos e cerca de setenta casas de habitação para o pessoal.

Estas casas foram o início da habitação económica na Inglaterra. Neste país pensa-se e muito bem que nada deve ser dado; nada deve representar uma esmola. Procura-se facultar ao operário e ao homem do campo um lar confortável e salubre, mas nunca dando-lho. Pagará sempre uma renda, pequena de certo, não representando muitas vezes senão um juro insignificante do capital empregado na construção; mas devera pagá-la sempre. As casas do pessoal de Sandringham eram arrendadas pelo rei por quantias que nunca excediam quatro libras por ano.

Eduardo VII dirigiu pessoalmente a construção dessas casas e visitava-as amiúdo, inquirindo da vida dos seus inquilinos e verificando, de visu, as reparações e modificação a fazer-lhes.

A habitação económica para as classes pobres mereceu especial atenção ao bondoso soberano; quando era ainda Príncipe de Gales, num dos poucos discursos que pronunciou perante os Pares, sustentou com calorosa eloquência a necessidade absoluta de encarar a questão e resolvê-la. Quando em 1896 uma comissão parlamentar inquiriu das condições das habitações das classes pobres, o rei recebeu-a na sua herdade e mostrou-lhe como ele resolvera o problema, e a comissão afirmou publicamente que o que havia a fazer era apenas imitá-lo.

Na herdade e proximidades estabeleceu escolas e levantou igrejas, fundou um clube / 455 / com uma sala de bilhar e gabinete de leitura para os seus trabalhadores, que ele desejava fossem instruídos e morigerados.

A embriaguez era punida com a expulsão de um mês, seis meses a segunda reincidência e despedido para sempre aquele que pela terceira vez delinquisse.

Eduardo Vil indicava as árvores a abater, os locais onde se deviam plantar outras, escolhia os seus gados, interessava-se pelas exposições agrícolas e não se dedignava de figurar entre os concorrentes.

Possuía os mais belos exemplares da raça bovina de pontas curtas, um esplêndido rebanho de carneiros de South-Down e cavalos puro-sangue Shire, que eram submetidos à mais rigorosa selecção para garantir a pureza das raças.

Na sumptuosa herdade que se estende por cerca de 900 hectares, ainda há alojamentos para numerosos exemplares da raça canina e suína.

As matas, que cercam a herdade, formam coutadas, que pertenciam ao rei, ou que ele tinha arrendadas, e onde todos os anos se soltavam 10.000 a 12.000 faisões para as caçadas.

O rei que caçava desde os sete anos de idade era considerado uma das melhores espingardas do Reino Unido.

Em Sandringham a vida do rei era simples como a vida de qualquer abastado rendeiro inglês. Levantava-se cedo, almoçava, lia a sua correspondência e ocupava-se de assuntos de lavoura com o seu pessoal.

Ao domingo, dia de descanso para o grande reino, dirigia-se a pé, cercado pelos seus homens do campo, ou os seus hóspedes, para a igreja de St. Mary Magdalene a ouvir a leitura dos textos sagrados e dirigir ao céu as suas orações. Se, porventura, alguém o desconhecesse, nem por sombras veria naquele ancião de barba alvinitente o rei da primeira nação do mundo, o chefe supremo do império em que o sol nunca se põe.

Longe de pensar em comandar exércitos, de sonhar com cargas de cavalaria, ou com aeroplanos que espalhassem a morte sobre as cidades aterradas, Eduardo VlI, o Pacífico, nas noites tranquilas de Norfolk, sonhava de certo com os seus novilhos, ou com as loiras crianças que ele via saudarem-no quando visitava as casas que construíra para os seus modestos cavadores.

Quem sabe, se ao ver a sua poderosa esquadra saudando o aparecimento sobre as águas do Dreadnought, ele não pensaria, nesse instante, que valia bem mais para a humanidade, que o aço rutilante da armadura desse grande colosso tivesse sido empregado em enxadas e relhas de arado?

Se não pensou assim, realizou esse pensamento, legando a seu filho os Dreadnoughts como peças caras de rica baixela destinada a nunca servir, enquanto milhões de charruas sulcavam a terra fecunda do seu enorme Império.

Eis, porque, o excelso soberano desceu ao túmulo com a fronte cingida pela coroa de oliveira brava, tornada imarcescível pelo orvalho das lágrimas da humanidade.

ÁLVARO COELHO


 

 

01-01-2021