A ilha da miséria – O padre Damião – Bil
Ragsdale
STAVA
a bordo do Oceanic, um dos maiores steamers, da mala
Americana, que se dirigia de Hong-Kong a S. Francisco da Califórnia.
Dentro daquele hotel flutuante não havia
tristezas; tocava-se, dançava-se, jogava-se, conversava-se. Nada vinha
perturbar aquele viver de todos os dias, e só havia, nuns o desejo de
chegarem a ver em pouco tempo as pessoas queridas de família, noutros o
de aportarem a terras desconhecidas, para porem na sua carteira de
touriste mais alguns traços da vida oriental. Eu pertencia a ambos
os grupos: queria aliar ao prazer de abraçar os meus o de ver o
desconhecido.
O Oceanic seguia com a regularidade
das suas 16 milhas por hora.
Nem uma aragem enrugava a superfície das
tranquilas águas do Pacífico, nem uma nuvem escurecia aquele belo sol
tropical, nem uma estrela deixava de aparecer na abóbada celeste nas
amenas noites daquela longa travessia.
Num dia ressoou pelo navio a notícia de
tocarmos nas Sandwichs, nesse agrupamento de ilhas que formam o
Paraíso do Pacífico.
Ricas, belas e amenas, onde uma raça, que se
extingue vivia entregue às delícias do seu país, isenta dos ataques das
nações que lhe levaram com a civilização o pior dos vírus. Essas ilhas
tinham para
/ 404 /
mim o encanto de ir ver milhares de portugueses que formam uma das mais
belas agremiações espalhadas pelo mundo.
Fundeamos em Honolulu, e como curiosidade
nunca vista em outros mares, tínhamos as límpidas águas cor de safira
deixando ver por transparência o seu leito de coral e os inúmeros
habitantes aquáticos, rodeando, boiando ou mergulhando em volta do navio
na luta constante da vida. Que belo que era aquele mar! E que belo que
era o aspecto que da baía se gozava, das ilhas que nos rodeavam!
Não entro na descrição dessas tão
encantadoras ilhas, cheias de curiosidade para o touriste; a sua
vegetação luxuriante; os picos de altíssimas montanhas, vomitando lava
em cascatas de fogo; a vida estranha dos Kanakas, os seus usos e
costumes semi-selvagens; a esplêndida colónia portuguesa; finalmente,
tudo o que fez dar àquele lugar, que aparece no vasto oceano, o nome de
Paraíso do Pacífico.
Ao longe via-se o cume elevado de Kalaí, na
tétrica ilha de Molokaí, a ilha chamada da miséria e do terror, cujas
descrições mais ou menos fantasiosas nos faziam arrepiar os cabelos.
Mas como poderia em tão belo clima haver
motivos para tão triste fama?
É que no Paraíso do Pacífico não há somente
aves de variegadas cores, flores do mais fino aroma, homens de epiderme
dourada, danças, cantos; não há somente noites diáfanas e perfumadas;
lentas ondulações do mar nas costas de coral. Sobre tudo isso, sobre as
florestas misteriosas, na amorosa indolência das noites, acima das
residências escondidas na sombra fresca das acácias, por cima de cabanas
de palha ou de relva, paira um fantasma destruidor, terrível,
inexorável: a lepra!
*
Há 50 anos que um chinês ao serviço da casa
real se viu atacado da terrível moléstia, e desse foi passando aos
outros, não poupando indígenas nem estrangeiros. Do pouco cuidado dos
habitantes e da relaxação dos costumes passou-se a tomar medidas
enérgicas; e como o mal se roubasse caprichoso às investigações da
ciência, as medidas foram brutais, esmagadoras, mas necessárias.
O processo era simples: não podendo curar os
doentes, suprimiam-nos. E o lugar que lhes serviria de túmulo era a ilha
que se nos afigurava um jardim de flores, era a ilha de Molokaí Aí
viveriam, ou antes aí acabariam de morrer.
É terrível a selecção: velhos sequestrados
aos carinhos da família; maridos separados das esposas, filhos
arrancados dos seios das mães, tudo para ali é arrebatado com a triste
certeza de que jamais sairão daquele recinto, cujas muralhas são
inacessíveis: o mar em toda a volta. Todos estes seres, de faces
avermelhadas, tumefactas e Iuzidias, objectos de horror uns para os
outros, esperam como o último dos remédios, o alívio final: a Morte.
Quando os que ainda apresentam os primeiros
sintomas vêem os seus companheiros de infortúnio deixando atrás de si a
mão que se desloca, um braço que cai, com as órbitas vazias, ou cheias
do virulento pus, com que pungente dor não dirão eles: – É assim que nós
estaremos amanhã. E no meio deste esfacelar contínuo, em que muitas
vezes só resta parte do esqueleto, com a pele fendida e seca, a
/ 405 /
carne comida de tubérculos, com um entorpecimento completo, no meio
dessa massa informe, que foi um homem, um só órgão fica intacto, o
cérebro.
É o cúmulo da desgraça!
E é neste estado de podridão que começa para
o leproso a última etapa da via dolorosa.
Levados para o santuário dos mortos, até que
Deus lhes ponha um ponto final na vida, ali são acompanhados e cuidados
por um pessoal que será amanhã o que ele está sendo hoje. Enfermeiros,
criados, tudo quanto há na ilha é leproso; e todos, qualquer que seja a
sua categoria naquela necrópole, estão à mercê da mais poderosa
soberana: a Morte.
*
Para os grandes sofrimentos há as grandes
dedicações, as grandes consolações; nem tudo são agonias; há abnegações
extremas, únicas que se põem à cabeceira daqueles miseráveis seres
esfacelados.
Havia em Honolulu um homem novo, instruído,
duma rara distinção de espírito e de maneiras; as suas eminentes
qualidades destinavam-no a um futuro brilhante; padre, podia aspirar aos
mais elevados cargos da igreja.
Era o padre Damião.
Este espírito superior soube que na
imensidade do Oceano Pacífico e nas asperezas das montanhas de Molokaí
existiam centenas de desgraçados, roubados aos carinhos da família, e
aos braços dos amigos, a quem a terrível doença roía de dia para dia,
tendo por única consolação os seus companheiros de infortúnio, por único
alívio, a morte.
Esse moço, cheio de saúde e de vida, veio
sentar-se à cabeceira daqueles espectros, servindo-lhes de médico e de
enfermeiro; de pai, de irmão e de amigo.
Bem sabia ele que bastava entrar na chalupa
que conduzia os leprosos de Honolulu para Molokaí, para que nunca mais
pudesse voltar aos braços dos que com lágrimas de dor o viram partir.
Nada o atemorizou. Se chorava, era com
saudades dos que ficavam na praia, banhados de lágrimas; porque no
coração levava a alegria que trazem as grandes acções humanitárias.
Em vez de mãos ásperas ou pouco adestradas
no penso das chagas, encontravam eles, os seus queridos doentes, mãos
pacientes, ao passo que lhes fazia ouvir palavras de consolação e de
amor, naquela longa agonia, como uma canção de mãe sobre o berço de seu
querido filho.
Quantos ateus, protestantes ou inimigos da
religião, não se descobrem, reverentes, ao ouvirem pronunciar o nome do
padre Damião? Não há ninguém, viajantes, marinheiros colonos de todas as
nações e de todas as seitas que não conheça o nome do Apóstolo dos
leprosos de Molokaí.
No demorado cair de carnes podres e de
membros que se destacam, era preciso entreter-lhes o cérebro, que recebe
todas as impressões até ao último sinal de vida. Não se esqueceu aquele
mártir de os entreter na escola, de lhes ensinar músicas. Um dia o padre
Damião viu em si os primeiros sintomas da terrível doença. Já os
esperava, e se não os sentiu por si, sentiu-os pelos desgraçados que iam
ficar privados do mais desvelado companheiro, do melhor dos amigos. O
mal progrediu, e ao vê-lo definhar, corroer-se, aqueles que ainda tinham
olhos para o verem e glândulas lacrimais para o chorarem, adicionaram ao
/ 406 /
seu infortúnio outro não menos lamentável, o da perda do médico, do
enfermeiro, do Pai e do Amigo.
Morreu. A notícia correu com a rapidez do
raio, não só por todo o arquipélago, mas por toda a parte aonde tinha
chegado a fama do seu nome. Todos o choraram, porque todos sabiam a que
terrível sacrifício se submeteu aquele bondoso coração.
Eu não sei se houve sacrifício maior, e se o
exemplo que deu foi seguido. Sei apenas que a espontaneidade dele é uma
glória para a humanidade inteira.
*
Todos os anos se faz uma caça ao homem como
a um animal feroz. A lei não poupa ninguém, ricos ou pobres, indígenas
ou estrangeiros. É inexorável, ferindo até a realeza.
Um primo da rainha Ema partiu para o triste
vale de Kalawao, logo que a comissão sanitária soube que o terrível
vírus lhe ia corroendo inexoravelmente as carnes.
A ilha de Molokaí encerra um número superior
a mil leprosos, e a cada passo são mandados para lá aqueles que se acham
espalhados por todo o arquipélago, e que fogem à vigilância da lei.
Muitos entregam-se espontaneamente, e no número destes encontra-se um
dos homens mais eminentes do país: Bil Ragsdale.
É triste a história dele, mas digna de
menção.
Bil Ragsdale era um dos homens mais
considerados pela sua fortuna, pelas suas relações e pelo seu talento
como legista. Sendo mestiço parecia um branco.
Conhecendo bem o país, as tradições e os
usos, valeu-lhe a estima de todos os habitantes do país e da colónia
estrangeira.
Generoso, serviçal, esmoler, era adorado
pelo povo. Ministro, tornou-se notável como legista, criando medidas de
grande alcance para o seu país, que o adorava. Tinha como todo homem,
defeitos: de costumes fáceis, rico e elegante, passava uma vida
estragada, tendo de renunciar dela com um estoicismo admirável.
Um dia, vendo-se com os primeiros sintomas
da lepra, escreveu à comissão de saúde, denunciando-se como leproso, e
querendo, dizia, dar o exemplo de submissão às leis, pediu para embarcar
com os outros infelizes para a ilha de Molokaí. Desejava, porém, que se
guardasse sigilo até à hora da partida, e que o deixassem ir
directamente à chalupa, sem passar pelo lazareto.
Na manhã seguinte vestiu-se com todo o
esmero, montou a cavalo, percorreu pela última vez as floridas avenidas
da cidade, e dirigiu-se aos amigos com quem conversava, abraçando-os
ternamente.
/ 407 /
De tarde, à hora aprazada, seguiu para a
praia, levando por bagagem uma Bíblia e por companheiros alguns
leprosos.
Nessa tarde já a notícia da partida para o
eterno exílio tinha ecoado por toda a cidade, e, como ninguém se
convencesse, todos se dirigiram à praia.
Quando a multidão aglomerada o viu chegar, a
comoção foi indescritível. As lágrimas saltaram copiosas dos olhos
compadecidos daquele povo, que, como sinal de amizade, lhe dava coroas e
lhe dirigia palavras amigas. Ele, sereno, com um rosto cheio de bondade,
pediu silêncio, e de pé, no meio da chalupa, dirigiu ao povo uma pequena
alocução, em que o exortava a submeter-se à lei do exílio, terminando
por estas palavras: «Paz, meus irmãos; pedi não só por mim, mas por
todos aqueles que, vivos, descerem ao túmulo! Que Deus vos proteja
sempre de tamanha desgraça! Adeus!»
A chalupa afastou-se e com ele Bil Ragsdale.
Como o leproso de Aosta, bem merecia que um Xavier de Maîstre pusesse em
relevo a abnegação deste mártir.
*
Nos subúrbios de Honolulu estabeleceu-se o
hospital e lazareto de leprosos. Tinha na minha passagem por ali algumas
centenas de infelizes, jazendo uns em catres nus, outros esperando a
sorte dos primeiros, até que a todos chegasse a hora de esfacelamento
final.
Um padre e algumas irmãs de caridade
dirigiam o hospital. Num laboratório, dois médicos, um alemão e outro
brasileiro, recolhiam em placas o vírus daquelas chagas abertas, à
espera que a ciência dê solução do problema.
O hospital e o lazareto têm a aparência dum
pequeno bairro indígena. Cabanas de madeira e de bambu a seguir umas às
outras, formando pequenas ruas que se cortam em ângulos rectos, tendo a
um lado a capela, a outro o laboratório, e ao centro uma escola, é tudo
o que compõe aquele estabelecimento.
Tudo isto é cercado por um fosso que
intercepta qualquer comunicação com o resto da ilha.
Todo caiado, sem móveis, nos quartos não há
nem camas, nem roupas, nem cortinas para que o pó não se possa asilar
ali. A ventilação faz-se por um sistema de aberturas, de modo a
estabelecer constantes correntes de ar fresco. No meio
/ 408 /
das pequenas enfermarias, jardins que os mais válidos regam e cuidam com
esmero.
Dentro das casas estão os novos atacados; em
uma mais ampla sala jazem os que estão num período adiantado da doença,
e que por uma concessão especial ali são conservados. Este hospital, que
dantes era um alojamento provisório para os atacados ou suspeitos,
tornou-se hoje definitivo, a fim de estar mais ao alcance das medidas de
qualquer nação que queira estudar a doença.
Entramos na sala dos que estão no último
período da moléstia.
Que horror! O quadro mais medonho, mais
desolador, patenteou-se-nos à vista com as cores mais sinistras! Desde a
criança de peito até ao homem de avançada idade, tudo ali jazia, meio
comido, numa disformidade tal que chegava a não ter forma humana!
Uma mãe amamentava uma filha, duma graça
infinita, que, ao ver-nos, fazia esforços para saltar aos nossos braços.
A mãe era um monstro, e mostrava-nos já sem poder chorar, uma mancha
redonda, azulada, em uma das pernas da criança, primeiros sinais da
fatal doença, que o havia de vitimar.
Talvez seja aquele o primeiro membro a
destacar-se, se a morte inexorável como sempre, a não arrebatar
primeiro.
Estirado em uma cadeira de bambu, agonizava,
meio esfacelado, um branco. Era um americano. Estava no período agudo da
doença. As relíquias da sua opulência e as mil lembranças da sua
existência feliz são mais mil espinhos na sua atroz agonia. Já não tinha
um braço, as falanges da mão do outro braço tinham desaparecido; os
olhos eram duas chagas abertas.
Que medonho espectáculo!
Passamos, ao deixarmos este horroroso lugar,
por uma escola. Parece um coreto duma orquestra, tendo algumas mesas e
uma lousa. Nesta, uma menina escreveu com letras enormes, em língua
inglesa:
– Padre-nosso que estais no Céu…
O Padre-nosso! O apelo comovente da
criatura ao Criador; ironia amarga neste lugar maldito!
E sem nos dar grande atenção, ia
prosseguindo:
– Seja feita a vossa vontade…
Honolulu – 1890
DR. GONÇALVES PEREIRA
|