ONHECI-O há pouco no júri do concurso de beleza e
robustez promovido pelo jornal “O Século”. Chamou-me a atenção o
olhar investigador e entusiástico com que ele examinava as
criancinhas, e perguntei a alguém, que estava perto de mim, quem
era.
– Não conhece? – retorquiu-me admirado. É o Malhôa.
– Por isso a sua fisionomia me não era estranha.
Tenho visto mais de uma vez o seu retrato, mas – que quer? – fixar
feições não é o meu forte.
Falei-lhe depois. A propósito das crianças, algumas
gentilíssimas, descreveu-me a feira dos modelos em Itália e outras
curiosidades observadas nas suas viagens: Escutei-o com prazer
porque conta bem.
Agora, ao dirigir-me ao seu ateliê para lhe pedir
fotografias e autorização para me ocupar neste artigo da sua notável
personalidade, eu não sabia quem ia encontrar, desconhecendo quase
completamente o seu carácter que só em curtos momentos tinha podido
estudar; por isso para me afazer à ideia de que a recepção seria
cordial evoquei pelo caminho a sua obra dizendo-me que não me era
estranha, nem o podia ser, a pessoa cujas obras se casam de tal
forma com o meu gosto e pensamento que me parecem familiares.
Ao chegar à sua porta parei admirada.
Era linda, elegantíssima a construção que se oferecia
aos meus olhos, e que na frontaria, logo abaixo da cornija,
ostentava em letras doiradas a legenda: Pro Arte.
Fiquei encantada de pensar que as maravilhas que toda
a Lisboa conhece e admira eram produzidas ali, naquele tépido ninho
de graça e de afecto que transpira conforto e felicidade.
José Malhôa, acedendo amavelmente aos meus desejos,
guiou-me os passos ao seu estudo, e aí, absorvida na contemplação
das suas telas e carvões, demorei-me duas horas que me pareceram
minutos, durante as quais eu, tão excessivamente tagarela, consegui
escutar sem esforço, o que é muito difícil a uma mulher.
Com a mais cativante franqueza o grande pintor
mostrou-me carvões sobre carvões, telas sobre telas, deixando-me
completamente maravilhada. Os nossos costumes, o nosso céu, o nosso
Portugal, palpitam com tal intensidade de vida em toda a obra de
José Malhôa que parece estar ligado a ela um pedaço do nosso
coração.
Malhôa expõe no Salon. Este facto acordou-me
logo no espírito a ideia da impressão que sentiria um português
vendo-se num país estranho em frente dum dos seus quadros.
Julgo adivinhá-la.
O Mestre Escola, creio que o das Pupilas do
Senhor Reitor, que ele enviou à exposição de Barcelona,
ameaçando com a / SERÕES N.º 47 - FL. 2 /
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/ palmatória os rapazes que lhe
roubaram as maçãs, a Rapariga das cebolas. Na ilha dos
amores, que ele fez, segundo julgo, para o museu de artilharia,
são verdadeiros primores; mas para mim, não há nada, nada que iguale
os seus bêbados. Os olhos, a expressão do rosto do bêbado e toda a
atitude dos dois personagens do quadro, que se intitula Assez,
mon père, é um deslumbramento; mas, ainda mais do que tudo isso,
o seu grupo de bêbados sentados a mesa. Diante deste magistral
trabalho acode-me aos lábios a frase: Nem só Velasquez! Depois, à
medida que os meus olhos, não cansados de ver, se entregavam à doce
tarefa de fixar pontos vários com igual prazer, ia-me aumentando a
curiosidade pela vida do homem, criador de todos esses primores, e
pude formar dele a mais lisonjeira opinião. Os seus princípios foram
duros, como os de muitas outras celebridades, mas, carácter enérgico
e pertinaz, soube vencer todos os obstáculos que encontrou no
caminho. Não foi estudar ao estrangeiro; entregue a si, foi ele que
se completou e se fez o que hoje é.
A sua concepção de arte é – A verdade;
exprimindo-a em toda a sua nudez está convicto que segue o melhor
caminho. Alma lavada de mesquinhos sentimentos, lamenta que os seus
colegas, alguns com tanto e tão raro merecimento, não frequentem o
Salon onde desejaria vê-los premiados como ele tem sido.
Contou-me com a mais enternecedora simplicidade, que,
sendo avesso a favores, nunca pediu benevolência a ninguém. A
primeira vez que expôs disse-lhe um amigo:
– Recomendaste o quadro?
– Eu ?!... Não.
– Então podes estar convencido que vem pelo caminho
por onde foi.
Passa-se tempo e, por acaso, abrindo José Malhôa uma
revista de arte, encontra o seu quadro reproduzido entre os
premiados.
Imagine-se a sua satisfação.
Casado com uma inteligente senhora,
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que o compreende e aprecia, sem filhos cuja
educação o preocupe,
José Malhôa vive da arte e para a arte. Tem na esposa, além do
afecto da mulher, o amigo dedicado e o companheiro sempre pronto
para todas as viagens e excursões. Por isso a sua vida é, por assim
dizer, bem fadada.
Em Lisboa pouco ou nada pára:
– Paris ou Figueiró dos Vinhos.
E o olhar ilumina-se-lhe com ternura.
É ali que ele trabalha real e verdadeiramente, quase
de sol a sol. O povo, que primeiramente o recebeu com rudeza quase
hostil supondo-o um engenheiro que fora
ali
traçar o plano de alguma estrada, é-lhe hoje amigo sincero; e ao
vê-lo passar com a sua caixa de tintas, seguido dum Cristo vestido
com a sua túnica e que carrega, em vez de cruz, com o cavalete e o
banco, sorri com bonomia, dizendo:
– Lá anda o Malhôa a entreter-se.
E não o perturba no seu trabalho. Ao principio não
sucedia assim. Paravam, cercavam-no, incomodavam-no com perguntas;
mas ele soube e conseguiu educá-los.
São muito curiosos alguns dos episódios que ele
conta, passados com camponeses.
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Dois que retive:
Um dia um mocetão, espadaúdo e forte, pôs-se a
examinar a maneira por que ele pintava e fez-lhe abruptamente a
seguinte pergunta:
– Por quanto vende o senhor isso depois de pronto?
José Malhôa pensando que, se lhe dissesse a verdade,
não seria acreditado, fingiu nada ouvir e não respondeu.
No dia seguinte o pertinaz observador voltou
novamente e tornou a insistir na pergunta.
José Malhôa pensou um pouco (não desejava espantá-lo)
e respondeu-lhe:
– Quatro libras.
– Quatro libras! – tornou ele incrédulo – isso pode
lá ser! Com quatro libras compra-se muita terra.
Outra vez, não sei se o caso teve lugar com ele se
com um amigo que o acompanhava, montou-se o cavalete, e o desenho
duma dessas encantadoras casas rústicas, que fazem de longe o nosso
enlevo, apareceu garboso na tela, cheio de poesia e verdade. Então
um velho camponês que saíra do casebre e analisava com mal contida
raiva o trabalho do pintor, avançou e com voz trémula disse:
– Meu caro senhor, naquela casa moraram meus avós,
nasceram os meus pais... não sei se me entende... nasci eu, os meus
filhos, os meus netos... não sei se me entende.
E, como realmente o não entendessem. – Ó meu caro
senhor, risque-me isso daí, ou, com esta enxada, racho-o de meio a
meio.
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Era o caso que o velho julgava, preocupado com a abertura dum novo
caminho, que se propunham deitar-lhe abaixo a habitação.
Malhôa fez em Figueiró dos Vinhos uma pequenina casa
que depois ampliou e que é hoje uma boa construção de elegante
simplicidade. Ali passa a maior parte do seu tempo. Quando chega
todos o vão cumprimentar; a filarmónica da terra festeja-lhe a
chegada e mil demonstrações de afecto o cercam. Depois,
conhecendo-lhe o génio e sabendo que ele gosta de viver isolado,
ninguém mais o procura. Na véspera do dia em que retira agradece as
atenções recebidas, e vive assim a seu gosto sem que a necessidade
da convivência com estranhos se lhe imponha.
Vê-se que a vida do lar o prende no seu encanto e que
a sua superior intelectualidade sente não precisar, antes pelo
contrário, de frequentar a sociedade para viver satisfeito.
Concede-lhe o tempo que não pode furtar-lhe e, deixando a todos,
como deixa, uma lisonjeira e grata impressão, não se prende aos
espíritos que cativa. As suas amizades ou relações não influem de
forma alguma na vida que se traçou e que é bem digna de inveja.
Gostei de o ouvir falar das suas viagens, das suas
visitas aos museus e sobretudo do Salon, de que ele censura,
com a justiça e critério que todos lhe conhecem, a insensatez dos
assuntos escolhidos, os efeitos procurados e rebuscados e portanto
nunca conseguidos, lamentando a preponderância funesta que isso deve
ter sobre os novos, alguns dos quais se apresentam com muito valor;
e, para me exemplificar os absurdos que se estão dando, conta-me
este engraçado facto:
– Chamou-me a atenção no Salon, despertando-me
a curiosidade, uma grande tela de que não consegui perceber o
assunto. Demorei-me a observá-la e... Nada. Embirrando com o caso
voltei no dia seguinte e não fui mais feliz. Decidi consultar o
catálogo e vi que o quadro representava... um galinheiro à
meia-noite!
Isto, contado por ele com a maior naturalidade, é dum
cómico irresistível.
Feriu-me a retina, como assunto conhecido e muito do
meu agrado, um estudo colocado no canto mais obscuro do ateliê.
Aproximei-me. Era, sem as figuras que o valorizam e que de per si
tão belas são, o Marquês de Pombal, no quadro intitulado o Último
Interrogatório, sentado, de rosto dolorido e corpo alquebrado. E
aquela notabilíssima expressão, que o pincel de Malhôa
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lhe soube imprimir, comoveu-me a alma e humedeceu-me o olhar. É que,
sozinho, naquele pedaço de tela, a sua dor desacompanhada é talvez
ainda mais enternecedora.
Na vastíssima obra do grande pintor, que seria longo
enumerar, destacam-se verdadeiros primores como são: A volta da
romaria, O barbeiro da aldeia, Os oleiros, As
papas, A partida de Vasco da Gama para a Índia, O
último interrogatório de Pombal, Azeite novo, que teve
medalha de honra na exposição de Belas Artes, e a Apoteose a
Beethoven que reproduzimos aqui. Entre os seus retratos, que
conhecemos, os pasteis dos três filhos de Eduardo Santos Moreira, os
retratos de D. Luísa Almedina, de Madame Bravo e de seu marido, da
Condessa de Proença a Velha, o de D. Teresa Pereira da Costa, que
obteve a 2.ª medalha na exposição de Madrid, e muitos outros, dizem
quanto este mestre é feliz neste género.
Mas pintar os costumes populares portugueses é a sua
tentação; e de tal maneira os reproduz sem descurar a mais leve
minúcia que dá, mesmo a estrangeiros, uma ideia nítida e perfeita
dos nossos costumes e hábitos.
Para mim os seus bêbados excedem tudo. Eu, que nunca
achei nada que me repugnasse mais do que esse baixo vício, ao
contemplar as telas de José Malhôa quase o abençoei, pois que sem
ele não me seria dado apreciar aquilo.
É inegável que até o vício tem vantagens e
compensações!
Ao pegar na pena para traçar as minhas impressões tão
rapidamente quanto foram colhidas, chega-me a notícia de mais um
traço que vem definir melhor o retrato moral que na minha imaginação
eu traçara deste mestre da pintura.
Pediu a demissão de sócio da Academia.
Naturalmente... segundo suponho, para não ter de se incomodar a lá
ir!
Original no que produz, original em si, conserva em
tudo a verdade. Por isso obteve sem favor o epíteto de grande, que
todos lhe atribuem desvanecidamente e ele escuta sem vaidade, porque
sabe que o merece pro arte.
LINA MARVILE
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