S "Serões" continuam hoje o seu inquérito sobre qual seja o mais pitoresco de Portugal.

As respostas que hoje publicamos, algumas bem interessantes, são assinadas por muitos dos mais cotados nomes do nosso mundo artístico. Inútil será frisarmos que nenhuma ordem, mais do que aquela em que foram recebidas as respostas, se adoptou na formação do artigo.

Bulhão Pato, o adorável revivedor das Memórias, o solitário do Monte de Caparica, deu-nos a sua opinião. Como vêem, no ponto preferido do homem que tem atravessado as últimas gerações, privou com Herculano, tomou do braço Garrett, e envelheceu a escrever e a recordar, patriota como raros, grande artista e figura inolvidável, há ainda muito de... saudade. Não é uma paisagem que se recorda, é uma época que se evoca. Não é um sítio que desapareceu, mercê da invasão da casaria, que transborda, é um tempo que não volta mais. Bulhão Pato fez uma paisagem do seu tempo. Fê-la com todo o amor que pode ter um coração que envelheceu a amar a sua terra e só para ela ser grande lhe consagrou toda a grandeza da sua alma e a fulgência da sua pena de oiro.

Teófilo Braga deu-nos a paisagem marítima, tão querida de um povo aventureiro, que teve o império dos oceanos por direito de audácia e de conquista. Teófilo Braga é açoriano. Ora o açoriano tem, como ninguém, o sentimento do mar, a visão dos horizontes coruscantes e afogueados ou dos melancólicos poentes das tintas mais supremas. Do céu ele conhece todas as gradações; do mar todos os hábitos; viu-o repousante, calmo e espelhado; viu-o nevrálgico e borrascoso; e viu-o finalmente vergalhando a rocha, açoitando a penedia, taciturno e misterioso batalhador indómito e cruel. Por isso o açoriano e o mar são duas entidades que se completam. Depois, em Teófilo, a sua obra tem alguma cousa de um grande oceano, em que cada novo livro, em que cada volume novo é uma vaga que surge, para atrás desta outra surgir, e outra e outra, porque como o mar não tem descanso a sua actividade extraordinária.

João Penha, o irrequieto cantor da boémia coimbrã, poeta dos raros e artista dos bons, prefere o Bom Jesus de Braga, que paraleliza com o Buçaco. João Penha vive em Braga, e o Bom Jesus está-lhe defronte dos olhos. Há anos que as árvores seculares do Bom Jesus conhecem o artista requintado da Sílvia, e adoram-no. Como vêem João Penha retribui-lhes. Junqueiro prefere o Buçaco, que é a paisagem para os Ensaios Espirituais do grande poeta. João Penha, prefere o Bom Jesus, que é a paisagem dos versos líricos das suas Novas Rimas. O Buçaco ensina a rezar. O Bom Jesus a amar. E o Bom Jesus está, agora que o poeta nos deu o livro das suas líricas, para João Penha, da mesma forma que para Junqueiro está esse bosque secular, sagrado e religioso que é o Buçaco.

Cândido de Figueiredo é dos que ficam em casa. A sua paisagem é familiar. E realmente como queriam os senhores que ele tivesse conseguido os quarenta ou cinquenta mil vocábulos novos, que registou no dicionário; como queriam que ele soubesse tudo o que sabe; que ele tivesse a autoridade / 384 / científica que tem, se ele andasse a passar o seu tempo olhando os pontos bonitos do nosso Portugal? Entre dois vocábulos novos e autênticos e um passeio a uma linda quinta, Cândido de Figueiredo opta pelos vocábulos. E aí está a razão.

Júlio Dantas prefere os campos de Coimbra. Há um certo ponto de contacto entre a sua paisagem e a sua obra. Júlio Dantas é um espírito de artista que teve a desventura de nascer numa época de industrialismos. Coimbra tem história, tem lendas; os seus campos têm poesia, têm encantos e têm paisagem. A que mais pode aspirar e desejar um grande artista?

Jorge Colaço, um espírito de patriota, prefere um dos mais belos recantos de Portugal, Valença, o artista risonho do lápis, Braga, com todas as suas virtudes e todos os seus defeitos.

Augusto Gil; quem fala em Augusto Gil lembra logo:

«Amas a nosso Senhor

Que morreu por toda a gente,

E a mim não me tens amor

Que morro por ti somente.»

e mil outras quadras que a guitarra do Hilário gemeu pelas vielas de Coimbra, soluçando aos astros os mistérios da sua capa negra, e as raparigas decoraram, porque falavam de amores e eram do Augusto Gil, o companheiro do Afonso Lopes Vieira, do Guedes Teixeira, do Carlos de Lemos e de muitos outros. Mas Augusto Gil, íamos dizendo, quer o Mondego, perto da sua terra, o Mondego que vem depois, nas mil ondulações da água corrente, retratar as tricanas e escutar com os poetas as mil queixas da desventurada Inês, que soluça entre os salgueiros.

Alfredo de Mesquita, o nosso globe-trotter, das letras – ele foi a Espanha, a Holanda, a França, às Ilhas, à América, a toda a parte – prefere a Ilha. E ele que tem visto mundo, e que tão categoricamente, tão praticamente pretende que visitemos aquela paisagem, é que lá tem as suas razões.

Mas, já dissemos quase tudo: Não queremos demorar, mais a vossa curiosidade, que não é de todo infundada, como vereis.

Meus senhores e minhas senhoras: Está aberta a... paisagem.

De BULHÃO PATO

Poeta

Conheço as paisagens de Espanha, um pouco as de França e Itália, as do meu país – com a Madeira e Açores! Mas não quero sair dos retiros espairecidos de Lisboa. Vamos para as bandas de Arroios; vamos para as hortas... que estão a desaparecer!

Na linha ondeada do horizonte ao nascente, a Penha de França, o Monte, a Graça, o velho castelo. E precipitando-se para o vale extenso e fundo, casas, vivendas, quichosos e pomares, batidos pelo sol quando declina sobre o ponente!... Vejam e admirem.

A luz é quase tudo na paisagem; ali há alguma coisa mais do que o desenho e a luz: a nora gemendo, os bordões e as primas da guitarra nacional, na mórbida cadência, acompanhando a letra onde há versos que rebentam do coração como estes:

Pus um pé na sepultura,

Uma voz me respondeu:

Ah! Cruel, que estás pisando

Um amor que já foi teu!

Com o céu e as auras das tardes estivas, as vistas de terra e mar pelos subúrbios de Lisboa, são, para mim, do máximo encanto.

Monte de Caparica, 1907

Bulhão Pato

De TEÓFILO BRAGA

Escritor

A paisagem portuguesa é como quem diz um aspecto moral exprimindo o génio deste povo, ou um reflexo objectivo da sua alma.

Temos uma paisagem que os nossos olhos contemplam inconscientemente, mas que só os estrangeiros souberam compreender na tonalidade da luz opalina dos pintores portugueses e na tonalidade singela das nossas melodias populares. Montanhas e horizontes, vales, encostas cobertas de vegetação, águas correntes, tudo recebe os efeitos da luz que lhes dá desenhos e relevos, um sentido melancólico ou sorridente consoante a sua intensidade; é por isso que o nosso céu, a luz opalina que nos envolve dá-lhes a / 385 / expressão particularíssima que bem merece chamar-se – a paisagem portuguesa.

País estabelecido por uma raça sofredora e resistente sobre a orla ocidental de Espanha, e em contacto activo com o Oceano Atlântico, – o mar é a paisagem suprema que nos subjuga e fascina. Se toda a nossa história, independência nacional e descobrimentos, deriva do mar que nunca para Portugal foi barreira defensiva, mas prolongamento do território e caminho de acção, a nossa vida sentimental e poética acha no mar a mais concentrada e deliciosa emoção, a mais profunda inspiração poética, como se patenteia nos Lusíadas. Passam os anos, vêm as decepções, envolvem-nos as tristezas, até as paisagens que nos encantaram tornam-se inexpressivas; disse-o Gonzaga:

São estes os sítios,

São estes, mas eu

O mesmo não sou…

Há uma paisagem que nunca se apaga, porque tem infinitas expressões em que se compraz todo o estado psíquico; e essa paisagem é o mar. Nascido em uma ilha (arquipélago dos Açores) a algumas centenas de passos do Oceano Atlântico, só me fala à alma a paisagem que revele o efeito da nossa luz, deste céu incomparável, ou me deixe ver o mar «a grande soidão melancólica das águas» que acordou o génio de Garrett.

Teófilo Braga

/ 386 /

De JOÃO PENHA

Poeta

Para que a hei-de eu ir buscar ao longe, nas minhas recordações de viagem, se a tenho aqui, no Bom Jesus, defronte das minhas janelas?

Por esse vasto mundo, e sobretudo na Itália, e na Escócia, a verde Erin, pode talvez havê-las iguais, mas superiores, não.

A partir do sopé do monte, la montagne enchantée, como lhe chama um escritor francês, alonga-se em frente, e para um e outro lado, até à primeira cordilheira de pequenos montes, quase todos arborizados ou cobertos dum manto de giestais floridos, uma vasta planície, o vale de Este, onde não há um palmo de terra sem vegetação, de cores variadas até ao infinito, desde o verde claro até ao sombrio, desde o amarelo pálido até ao roxo cinzento. Campos, prados, demarcados nos seus extremos por enfiadas regulares de castanheiros, em que a vide se enlaça, dão-lhe o aspecto dum imenso tabuleiro de xadrez, cujas peças, disseminadas por toda a parte, são representadas por pequenos burgos, herdades, pitorescas casas de campo, chalets, e choupanas cobertas de telhas, onde o musgo reverdece.

Para o sudoeste, estende-se a antiga Braga, já agora rejuvenescida sob os influxos do progresso, burgo relativamente enorme, onde predomina a cor branca das suas casarias, e a vermelha, retinta, dos seus telhados. As torres dos seus numerosos templos, e as chaminés fumegantes das suas fábricas, elevam-se acima dos arvoredos que a cercam, e que, em grande parte, a ocultam. Para lá dessa primeira cordilheira de montes e colinas, divisa-se, entrecortado por elas, o vale do Cávado, com a sua poderosa vegetação de carvalhos, ulmeiros, sicómoros e castanheiros; com seus ridentes campos, em que predomina o verde de esmeralda, e as suas casinhas brancas; com seus moinhos e azenhas; vale que fez exclamar ao marechal Soult, quando, à frente das legiões francesas, descendo de Lanhoso, chegou aos Carvalhos: «Como Deus foi pródigo com estes bárbaros!» Para além desse vale, estende-se uma cordilheira de mais altos montes, que, para o lado do norte, se prolonga até ao Gerez, ramificação dos montes da Catalunha, e sobre eles, ao oeste, uma facha azul-esvaído, no céu: o mar!

Essa paisagem? É preciso contemplá-la numa manhã clara, ao raiar da aurora. Por vezes, um nevoeiro baixo, unido, branco de leite, cobre todo o vale desde o sopé do monte até à última cordilheira: parece então um grande lago, e a ilusão é tanto mais completa quanto o morro de Montariol, com as suas edificações, se nos afigura uma vilazinha marginal. Para logo o sol nascente tudo desfaz; toda a paisagem, dourada pelos seus primeiros raios, se nos patenteia cheia de frescura, de vida, e de voluptuosa nitidez. A esse espectáculo, único, parece que a nossa própria vida se reanima, cheia de confiança no futuro, embalada em sonhos indecisos de a venturas cor-de-rosa.

É preciso, sobretudo, contemplá-la ao por do sol, quando ele se atufa no mar sobranceiro aos montes distantes. Uma sombra de mistério vai descendo gradualmente sobre toda a paisagem: as linhas tornam-se confusas; campos e prados mudam de aspecto: dos casais sobe o fumo dos últimos repastos; os cães de quinta ladram, com voz rouca, a lua, que vem seguindo das partes do oriente: as árvores, rumorejando, trocam entre si as últimas impressões do dia, e quando o carrilhão do templo lança no espaço a sua melancólica toada, quedamo-nos num silêncio absoluto, meditativo, e sentimos que a alma da paisagem está, nesse momento, consubstanciada com a nossa.

Os pincéis de Hobbema, de Ruisdael, e Corot, seriam impotentes para, com as mil cores das suas paletas divinas, nos pintarem essa paisagem, porque é uma paisagem cheia de vida, e a vida não se pinta.

A do Buçaco, essa é outra.

Depois duma penosa e desagradável ascensão à Cruz Alta, a impressão que se sente ao deparar o grandioso panorama que daí se avista, é, nos primeiros momentos, a duma profunda admiração, a do assombro, tal é a vastidão da planície que de todos os lados se estende até ao horizonte; mas logo essa impressão se transmuda na duma vaga tristeza, que nos enche a alma de funestos pensamentos: é que é uma planície morta, embora, em parte, cultivada, sem colinas, sem acidentes de terreno, fria, lúgubre; em que predomina a terra amarela, argilosa, a terra dos cemitérios; onde / 387 / se não vê um boi que paste, uma choupana de onde se eleve uma espiral de fumo, um carro que chie, um cão que ladre, uma voz humana que entoe uma alegre canção; e essa tristeza que nos invade, longe de se dissipar, nunca mais nos deixa, e aumenta ainda, ao vermos, ao descer, o sítio em que nos achamos: uma montanha separada do mundo, coberta duma velha e sinistra floresta impraticável, ninho de corujas e morcegos; sem possibilidade de distracções, a não ser a dum passeio à deplorável Fonte Fria, e a dum triste repasto no seu único hotel, fechado a maior parte do ano! Ao Buçaco é ir e fugir. Dois noivos poderiam aí permanecer algumas semanas, porque viveriam na contemplação um do outro; mas quem, por fatalidade, aí fosse obrigado a viver demoradamente, ou se suicidaria, ou se faria monge.

O Bom Jesus é outra cousa. Ao Bom Jesus é ir, e ficar. Já antes que um arcebispo de Braga, o Júlio II ou o Leão X, em pequeno ponto, dessa vetusta cidade, lançasse nele os primeiros fundamentos do actual santuário, foi o monte que dous amantes, fugidos das terras de Espanha, escolheram para ninho dos seus poéticos amores. É o que relata um soneto, gravado numa lápide, irreverentemente colocada detrás da fonte do Hotel do Sul:

«Passageiro, este chão que vês diante

Na encosta deste monte desabrido

Dum castelhano foi que perseguido

Aqui se recolheu co'a terna amante.

 

Quebrantando por ela a fé constante

Que havia ao esposo eterno prometido.

Trocou por ermo agreste e desprovido

Uma cela mimosa e abundante.

/ 388 /

A era em que isto foi vai inda perto.

Mas da choça que aos dois prestou abrigo

Nem sequer um calhau se aponta ao certo.

 

Tudo o tempo varreu, levou consigo,

E só da tradição no livro aberto

Se encontra o caso que eu aqui te digo.»

Agora, esse monte desabrido, designado, por uma ficção piedosa: Hierosolima Santa, sem ter perdido a sua religiosa feição primitiva, é um monte civilizado, com um frondoso parque, cortado, em todas as direcções, por extensas avenidas e alamedas, com lagos, cascatas, grutas, e pequenos jardins à Le Nôtre, sotopostos uns aos outros, onde em taças em que se movem legiões de douradas da China, a água dos repuxos canta, entre alecrins, flores e murtas, a sua eterna canção.



A 15 minutos de Braga, a capital do Minho, a 5 quartos de hora do Porto, esse fauburgo comercial daquela cidade, nada lhe falta, por um lado, das exigências do moderno conforto; e, por outro lado, é para uns o Lugar Santo das beatíficas visões, e, para outros, a poética e incomparável estância do amor, da saúde, da consolação e da paz.

Ao Buçaco é ir, ver e fugir; ao Bom Jesus é ir, ver e ficar, porque o Bom Jesus prende.

Já é digno da maravilhosa paisagem que defronte se lhe desenrola.

Bom Jesus do Monte, 4-IX-1907.

João Penha

/ 389 /

Do DR. CÂNDIDO DE FIGUEIREDO

Escritor

Mas a preferência de uma paisagem não é coisa que se justifique, como um teorema geométrico. Depende de acidentes vários, da feição estética do observador e, nomeadamente, do seu estado de alma. Portanto,  posso eu, e podem outros, preferir uma paisagem, que, no conceito geral, não valha a pena consignar-se e, muito menos, recomendá-la a paisagistas e forasteiros.

E é o que provavelmente sucede no meu caso.

Conheço todas as províncias portuguesas, mas nunca viajei por prazer, como não passeio para me distrair.

Creio que não é pecado confessar a própria misantropia; e, se o inquérito dos “Serões” não obriga a uma confissão auricular, obriga, ao menos, a uma confissão escrita, e por isso me confesso.

Não admiro nem amo o campo. Quando os amigos me levam até lá, sinto a nostalgia do lar.

Ainda assim, conheço, em nossa terra, uma paisagem que me impressionou e que a minha memória mantém: é a que se observa do alto do Marão. A perspectiva é realmente grandiosa. As lombas escalvadas e sombrias fazem lembrar os toscos e últimos degraus, por onde os Titãs queriam escalar o céu. Lá em cima, parece à gente que estamos acima da humanidade e perto do mistério da imensidão.

Há ainda outra paisagem, em que repoiso a vista, se não com deleite, ao menos com a tranquilidade e o abandono, que são às vezes os pródomos do êxtase: é qualquer praia, de areias fulvas, suavemente beijada pelas ondas, numa silenciosa noite de luar: o baloiço cadenciado das vagas fosforescentes transporta-me ao berço infantil; cerram-se-me as pálpebras, e esqueço-me de mim, sonhando...

Menos trivial, e talvez imprevista, há porem outra paisagem, que eu prefiro a todas, por não dizer a tudo.

O que eu não sei é se lhe posso chamar paisagem. Pelo menos, os pintores não lhe chamariam assim.

E contudo é uma pequena região, onde há frutos, flores, cachoeiras estrepitosas, arroios sussurrantes, harmonias eternas, opulentas réstias de sol...

Tem apenas seis metros quadrados, mais / 390 / pequena decerto que os jardins de Academo; mas nela encontro cuidados, afectos e lazeres. Cada vez que o sol reponta, encontra-me ali moirejando, estudando, amando. Se o turbilhão da vida a revezes me arranca da pacífica faina, lesto a reassumo com devoção e amor.

Fazem-me ali honrosa companhia, falam-me, educam-me, os mais altos engenhos de todos os séculos. Em céu azul e profundo pairam águias de envergadura desmedida, que não têm nome na ornitologia, mas que se chamam David, Valmiki, Homero, Vergílio, Dante, Camões, Pascal, Shakespeare, Goethe, e quantos, e quantos!

Pelas quebradas da minha encantada paisagem, ouve-se a espaços a tuba sonora e belicosa do Ramaiana, da Ilíada, dos / 391 / Niebelungen, dos Lusíadas... Às vezes, é um murmúrio, como aragem que se côa por balsas perfumadas: são vozes de Saadi, de Tibulo, de Petrarca, de Campoamor, de João de Deus… À distância, um fragor de cachoeira, que espadana luminosa e cristalina: é o eco do Sermão da Montanha, do estridor da Águia de Patmos, das apóstrofes de Bossuet e Vieira…

Não sei se me autorizam a chamar paisagem a pequenina região que eu prefiro a todas. Os estranhos chamam-lhe bibliotecazinha, gabinete de trabalho, ou coisa assim; mas o nome, em tal caso, pouco importa: a realidade é que, cotejando, observando, medindo, não vejo em terras de Portugal paisagem que eu prefira a esta.

Os meus amigos não têm nada com a minha preferência, não me acompanham nela, não me dão o seu voto, bem sei; mas, solicitada a minha confissão, não andaria bem avisado, se lhes não falasse com o coração nas mãos.

E cá volto à minha… paisagem.

Cândido de Figueiredo


De JÚLIO DANTAS

Escritor

Não é muito fácil responder à sua pergunta, meu caro amigo.

Como hei-de eu dizer-lhe qual é o ponto mais pitoresco do país, se, como bom português que sou, não conheço ainda todo Portugal? Entretanto, para não deixar de aceder ao seu desejo, indico-lhe o que mais me tem impressionado, de tudo quanto conheço de paisagem de uma terra: – os campos de Coimbra, vistos do velho castelo de Montemor, pela ruína de uma das janelas da alcáçova das Infantas. São uma maravilha!

Júlio Dantas

/ 392 /

De JORGE COLAÇO

Pintor

Na minha opinião, o ponto mais pitoresco do «Jardim da Europa à beira-mar plantado», é o rio Douro, sobretudo nas proximidades da Régua. É tão grandioso, tão fantástico, tão variado, e até tão arrojado por vezes, que se diria um símbolo petrificado da História de Portugal.

Feitoria, 4-7-907.

Jorge Colaço

De AUGUSTO GIL

Poeta

Porque sou um sertanejo, a região portuguesa que eu prefiro é a parte central da Beira: com as suas montanhas desnudadas, ao alto, e ensombradas nas encostas por castanheiros solenes, pinheirais trágicos, olivedos melancólicos; com os seus povoados sonolentos e aconchegados, nas eminências, em torno de castelos em ruínas, ou na cova dos vales que um retalho de céu cobre; com as suas temperaturas extremas, de calores abrasantes no estio, e ventos fortes, frios intensos, sudários de neve, no inverno.

A ter que marcar nela, mais pormenorizadamente, algum sítio de maior predilecção, escolherei o divino e ignorado vale do Mondego, ao poente da Guarda. Não esta ainda, graças a Deus, desvirginado pelo excursionismo. Não vem desenhado em álbuns, não anda fotografado em Kodaks, nem os roteiros, dele trazem descrição. É um parêntesis de lirismo idílico, numa página de elegia: um pomar virgiliano – álacre e fértil – ladeado por altas serras de cimos violáceos e nítidos perfis. A fita clara do rio desdobra-se lenta, entre salgueiros pendentes que lembram Musset e choupos leves que dão saudade de António Nobre. Esparsas, aldeolas laboriosas e minúsculas, de casas feitas com granito escurecido e duro, e de gente de gleba que amanha a terra a / 393 / burguesia citadina, cuidando-lhe das flores na quinta, das couves na horta, das frutas na veiga. E numa curva luminosa e ampla, por sobre as altitudes das montanhas, o azul ferrete do céu, um azul brunido, de esmalte, onde os mochos reais e as águias passam. num voo dominador e plácido.

Augusto Gil

De ALFREDO MESQUITA

Escritor

Meu amigo:

O que há de mais pitoresco em terras de Portugal é o Vale das Furnas, na ilha de S. Miguel. Todas as respostas à pergunta dos “Serões”, que não forem a mesma que eu lhe dou, partem de quem nunca lá esteve.

Seu muito afeiçoado

14 de Novembro

Alfredo Mesquita

De FRANCISCO VALENÇA

Caricaturista

Valença, o Valença que todas as semanas com o brilho da sua graça e / 394 / os prodígios do seu lápis ilustra as páginas do Suplemento do “Século”, prefere Braga. Não Braga como nós a conhecemos e como nós sabemos que ela é. Valença prefere uma Braga que ele inventou, Braga sem padres, sem gente embiocada, sem defeitos enfim, uma Braga ideal. Ainda assim prefere-a porque acha Braga uma cidade tranquila, pacata, donde há perto esse colosso de verdura, esse Atlântico de vegetação exuberante, magnificente, soberaníssimo, que é o Bom Jesus.

E aqui têm o que prefere Valença, o artista cujo lápis tantas vezes já tem feito sair do seu sério a maioria dos nossos mais sérios leitores.

Passar ali as tardes encantadas dos bons dias estivais não tendo página que fazer, não tendo maçadores que aturar, que delícia! Amigo do «claro sol amigo dos heróis», achando a vida boa, um tudo nada alegre, se Braga lhe é lembrança, o Bom Jesus é-lhe predilecção. Que, valha a verdade, não sabemos quem possa recusar o seu voto ao Bom Jesus. Um caricaturista também tem direito a considerar um dia, e Braga e o Bom Jesus são óptimos sítios para isso.
 

 

10-08-2020