ós sabeis todos, irmãos meus na língua e na raça, da existência de nove lindos rochedos, cercados pela vastidão azul do Atlântico, açoitados pelas tormentas, beijados pelo sol, e que são as mais lindas terras de Portugal – os Açores.

No maior e mais lindo desses rochedos, em S. Miguel, há um pedaço de terra deslumbrante, num profundo vale e, na boca duma cratera imensa, vestida de arvoredo soberbo com duas lagoas vastas lá em baixo, uma verde e outra azul, a espelharem o pedaço de céu que as cobre.

Formadas pela mesma água, que apenas estreita a meio pela configuração do terreno, sendo uma lagoa só, parecem realmente duas, a quem para baixo olha, do alto das cumeadas esplêndidas. E maior se torna a ilusão, ao ver-se que são verdes metade das suas águas, e que são azuis as aguas da outra metade.

Em toda a bela terra portuguesa – acreditai-me! – não há um cantinho de natureza que se lhe possa igualar: Têm muitos quilómetros de circunferência as cumeadas altíssimas, por cujas íngremes encostas é tão abundante o arvoredo enorme – eucaliptos, incensos, pinheirais gigantes – que até parece que já não há espaço onde uma urze cresça!

Oh! As Sete Cidades!

Mas também é possível que vós todos, irmãos meus na língua e na raça, ignoreis a razão por que a esse precioso canto da terra micaelense se chama Sete Cidades, sendo uma simples, pequenina aldeia, nas margens dessas lagoas encantadoras, e porque elas, sendo uma só, metade das suas águas são verdes, e são azuis as da outra metade.

Pois eu vos conto a deliciosa e maravilhosa lenda.

– Escutai-me!

Aqueles nove rochedos, e muito mais terra que o fogo dos vulcões arrojou e o mar subverteu, formavam antigamente um vastíssimo / 241 / e formoso país, tão vasto que o seu rei não sabia ao certo o numero dos seus vassalos, dos seus castelos, das suas cidades e dos seus povoados!

Esse país, rico e fantástico, chamava-se a Atlântida.

Ora, o rei da Atlântida vivia tristíssimo, por não ter sucessor à sua coroa e às suas terras. E, por esse motivo, o seu coração, que era cheio de bondades, foi-se tornando tão mau, tão cruel, que já iniquamente tratava o rei os leais vassalos que tanto o tinham amado!

Ao tempo em que assim andava, consumido por aflições e por maldades, veio uma noite em que ele, andando a vaguear pelos jardins do paço em companhia da rainha, viu descer do alto, iluminando intensamente a treva da hora, a figura luminosa do anjo do bem, que desta sorte lhe falou:

– Rei da Atlântida! Venho trazer a alegria ao teu coração! Dentro em breve serás pai duma filha, tão linda e tão virtuosa que será o orgulho e a honra do teu povo. É preciso, porém, para que tenha fim a tua maldade, que, durante vinte anos, nem tu, nem homem algum destes reinos, se aproxime da princesa, que viverá a dentro dos muros de sete maravilhosas cidades, que eu farei erguer no mais lindo canto das tuas terras e onde só donzelas a servirão. Mas toma conta, rei da Atlântida! Se antes de passados os vinte anos ousares transpor as muralhas que hão-de guardar lá dentro os encantos de tua filha, morto serás tu, arrasados serão os teus domínios!

Prometeu o rei fazer como a visão dissera; e a luz que a iluminava foi-se elevando no céu, até de todo se perder, deixando a rainha e o rei petrificados de assombro, na escuridão profunda da noite, sob as árvores aromáticas dos jardins do paço.

Tempos depois, nasceu a princesa; e por muitos dias, pomposamente, andaram em festa todas as terras da Atlântida.

Iam passando os anos. A princesa crescia em maravilhas de formosura, rindo e cantando pelos jardins das sete maravilhosas cidades, rodeada pelo seu cortejo de virgens. Para esses passeios, levava ela sempre o seu lindo chapelinho azul celeste e os seus delicados sapatinhos verdes. E de tantas flores que a cercavam, de tantas estrelas que a cobriam, era ela a mais mimosa flor e a mais brilhante estrela!

No entanto, consumido de saudades longe de sua filha, o rei da Atlântida, à maneira que os anos passavam, mais ardia em desejos de a ver. Emagrecia, tornava-se cada vez mais colérico, cada vez mais oprimia os seus vassalos. E nesse estado de desespero, apesar de ter ainda bem presentes as palavras fatídicas da visão, decidiu ir bater às portas das muralhas que guardavam a linda herdeira da sua coroa e das suas terras.

Mandou aprestar um grandioso séquito dos seus mais nobres guerreiros, e com eles se pôs a caminho das sete cidades maravilhosas.

/ 242 / Durante a longa marcha, o céu ia-se tornando cada vez mais negro, e das entranhas da terra saiam vozes sinistras. Mas o rei caminhava sempre, num desvairamento, mandando avançar o espavorido séquito.

Os muros altos das sete cidades surgiram enfim, pesados e escuros na escuridão trágica do dia.

Cruzavam-se no ar línguas de fogo; a terra tremia ruidosamente, e a voz rouca do mar, vinda de longe, semelhava o brado de agonia dum gigante!

Torvo, sombrio, el-rei ergueu a sua espada enorme, e bateu com ela violentamente a uma das portas das muralhas. Um trovão pavoroso estrugiu no ar, ecoou lugubremente por toda a terra! E no mesmo instante abateram com fragor sinistro, sobre o rei e seus cavaleiros, os muros sombrios das sete maravilhosas cidades, enquanto um fogo terrível se elevava da terra fendida, que desaparecia em chamas, mas no seio do mar em fúria! Depois, fez-se um silêncio profundo na natureza.

Calou-se a voz do mar, e o sol, muito claro, pôs-se do céu azul a beijar com a sua luz fecunda os nove pedaços que restavam daquela terra vasta, que se chamara Atlântida!

No maior e mais lindo desses rochedos, que muitos séculos depois Gonçalo Velho descobriu, ainda existe o lagar onde se erguiam nessas remotas eras as maravilhosas sete cidades, cujo nome ainda conservam, transformadas numa simples pequenina aldeia, nas margens dessas lagoas encantadoras, que se espraiam no profundo vale, aberto pela terra que o fogo dos vulcões arrojou.

E a mesma água que as forma é metade verde e metade azul, porque no fundo duma lá ficaram os lindos sapatinhos verdes, e no da outra o chapelinho azul celeste da malograda princesa, tão fatalmente morta pelo mau tino do rei da Atlântida.

 Lisboa, 1905 – RAPOSO DE OLIVEIRA
 

 

13-07-2020