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Numa estância de banhos do Japão
 

MANKAMÉRO? Sim, não há engano: – Mankaméro. – O termo parecer-nos-á acaso arrevesado, a nós, ouvidos bárbaros; mas não o é, por certo, para lábios e ouvidos japoneses. Apresso-me a dizer que encerra mesmo um conceito delicado, como passo em seguida a explicar. Mankaméro é a denominação de uma famosa chaya, de um restaurante japonês, cerca de Kobe; man quer dizer «dez mil anos»; a tradução de kamé é «tartaruga»; e ro é um sufixo que serve para indicar certos estabelecimentos, como restaurantes, hospedarias, etc.; de sorte que o nome de Mankaméro (exemplo curioso da construção aglutinante da linguagem) pode perfeitamente traduzir-se em português por «A hospedaria da tartaruga de dez mil anos.» A tartaruga, bruto pouco estimado no Ocidente, é, pelo contrário, tido em apreço no Japão, assunto vulgar de esculturas e desenhos; sabe-se que goza de uma existência muito longa; é por este facto um símbolo de perseverança, de constância, de longevidade, de felicidade; é comum o nome de mulher O-Kamé-San (a Senhora Tartaruga); e assim a palavra que apontei, como mil e mil outras adoptadas para divisa de empresas de negócio, representa uma invocação de bom agoiro, que agrada ao proprietário e aos seus fregueses e por / 191 / ventura lhes é presságio de benesses. Já que falei em tartarugas, mencionarei que não é raro dar-se o caso de ver-se o pescador lançar de novo ao mar a tartaruga que pescou, após haver gravado na casca uma inscrição, com a data e com o seu nome; isto em respeito pelo bicho e também certamente em memória de Urashima, o amorável pescador de quem reza uma das lendas mais sentidas deste povo. Ajuntarei ainda que no Olimpo japonês figura a tartaruga sagrada Minogame, contando não sei quantos milhões de anos de existência, arrastando – coisa estranha! – uma enorme cauda aberta em leque; e aqueles que não se contentam apenas com gentilezas mitológicas derivam o tal apêndice da circunstância de algumas velhas tartarugas apresentarem a casca coberta de limos e de algas, pendentes em longas franjas verdes...

Mankaméro está situado na formosa praia de Maiko, a curta distância de Kobe. Aliando-se em regra, no Japão, a realidade com a imagem, as coisas que vemos e que palpamos com a filigrana invisível da quimera, convém ir devagar nas descrições, se queremos mungir do assunto o inteiro encanto. Maiko (mai-ko, «dançar-rapariga») é o nome que se dá às jovens gueixas, empregadas especialmente na exibição das danças. Oril, a praia referida, que se alastra em ampla planície que fofas e loiras areias atapetam, e por onde surge uma multidão de vetustíssimos pinheiros, tomou esta denominação precisamente porque os ramos e os troncos destas árvores, torcidos e retorcidos pelos vendavais do oceano e pelos mil caprichos casuais durante séculos e séculos, lembram à imaginação japonesa os vultos das graciosas dançarinas quando estendem os braços em mímica, se inclinam em requebros, já para a direita, já para a esquerda, já para a frente, aos ritmos soluçantes das guitarras... Maiko é um poiso querido desta gente, durante os grandes calores do estio; abundando as chayas, onde a multidão acampa para saborear o modesto repasto nacional; cativando a sombra dos pinheiros; o mar atraindo sobretudo, como que convidando a largar o quimono e as sandálias sobre a areia, a poisar a planta do pé nu no solo húmido e a investir com a vaga...

/ 193 / De modo que o Mankaméro, assente à babugem das ondas, acha-se deliciosamente colocado para regalo dos clientes: por uma das suas faces, escancara as vastas varandas à brisa salgada, aos horizontes azuis da paisagem marinha, animada pelas peripécias pitorescas da população piscatória, pelas velinhas brancas que sulcam, pelos paquetes enfumarados que passam, pelos contornos distantes das terras fronteiras, – Kü, Awaji; – pela outra face, é o parque verdejante, é a eterna dança dos pinheiros vetustos, o voo e o pio dos corvos, ao longe as colinas acavaladas, vestidas de vegetações paradisíacas.

Ora, foi no Mankaméro onde, há poucos dias, me encontrei, para assistir a um jantar oferecido pelos cônsules estrangeiros dos distritos de Hiogo e de Osaca às autoridades japonesas; note-se que amabilidades desta ordem trocam-se aqui de quando em quando, entre cônsules e nipónicos. O leitor, suponho eu, viria com prazer tomar parte no festim, com bilhete de ida e volta de Portugal até aqui; embora os joelhos lhe doessem quando em postura japonesa, o exotismo dos manjares lhe contivesse o apetite e a mão inexperiente se mostrasse incompatível com o manejo dos dois pauzinhos de preceito, substituindo o garfo e a faca ocidentais. Quanto porém à descrição deste festim, estou quase convencido de que a dispensa de bom grado; ou, pelo menos, prescinde de minúcias importunas. Vou pois, nas linhas que se seguem, adoptar quanto possível a forma literária telegráfica, no propósito meritório de tornar barata a expedição desta notícia; tal barateza, entenda-se, é claro, no sentido de poupar longos enfados a quem benevolentemente me for lendo. Sem mais preâmbulos, segue pois o telegrama:

– Vasta sala, coberta de esteiras, tudo puro estilo japonês. Às 6 horas da tarde, todos reunidos. Irrompem serviçais, irrompem gueixas, trazendo as baixelas de charão, de porcelana, e as iguarias. Então, vários sujeitos avançam gravemente até ao meio da casa em palmilhas de meias, e alguns discursos se proferem. Começa a refeição. / 194 / Abundância de saké (o vinho indígena) e de acepipes. Especializemos alguns pratos: um caldo de tartaruga (de praxe – em honra da divisa desta casa –); delicioso peixe cru, pescado ali defronte, há poucas horas; uma composição pitoresca e alegórica, isto é, uma frigideira de barro contendo ampla camada de sal de Maiko, sobre que assenta um peixe, guarnecido de verduras de pinheiro, vendo-se a lua cerca (alusão aos lindos luares de Maiko) representada por um ovo... A certa altura, danças de gueixas, gemem as guitarras. Mais por diante, um fotógrafo aparece, assesta sobre nós a sua máquina, com o garbo de um artilheiro que assestasse o seu canhão sobre o inimigo, nos campos da Manchúria; serenidade corajosa entre os convivas; após, o vivo relâmpago do magnésio incandescente e uma careta involuntária em cada rosto; mas caretas que felizmente vêm depois do acto consumado, porque a fotografia instantânea está colhida, como verificámos pelos exemplares que passados dias recebemos, e como vós, leitor, verificais agora, por este exemplar que vos envio, e pelo qual vós podereis satisfazer a vossa curiosidade.

Kobe, Junho de 1906

WENCESLAU DE MORAES


 

 

19-07-2020