Este artigo é todo fundado em documentos inéditos e nos processos de Damião de Góis e Fernão de Oliveira, publicado o primeiro pelo Sr. Guilherme Henriques e o segundo pelo Sr. Lopes de Mendonça. Os documentos inéditos fazem parte dos cartórios do Santo Ofício, secção que na Torre do Tombo pertence ao autor do artigo, que deles faz desenvolvido uso num estudo sobre A INQUISIÇÃO NO SÉCULO XVI, que se está publicando no ARCHIVO HISTORICO PORTUGUEZ.


PACATO homem bom de alguma vila sertaneja que, por volta de 1540, embrulhado no seu gabão, de barrete e pelote novos, descesse o Valverde – como quem dissera a moderna Avenida da Liberdade – se descavalgasse no largo do Rossio e atentasse na multidão, que continuamente por ali formigava, havia de notar nas fisionomias um ar pávido, desconfiado e sinistro, como sinistro era um palácio que lá se erguia no fundo, a que chamavam o Paço dos Estados. E se, perdido nas suas serras, lhe não tivessem chegado, havia muito, novas de Lisboa, dentro em breve saberia, que afinal sempre tinha vindo a Santa Inquisição.

Tinha custado, mas o escândalo dos cristãos velhos e limpos de sangue não podia ser maior.

Tão grande era que até, no Desembargo d’EI-Rei, Tribunal Supremo de então, um tal Licenciado Bugalho se fingia doente, para não ir nos sábados à Relação e ficar lendo na Bíblia, ao mesmo tempo que sua filha se vestia e endomingava com cadeia de ouro e cota de chamalote; não faltavam sollorgiões, que guardassem os sábados, donas de casa que, na noite de sexta para o sábado, fizessem acender candeias com duas matulas e esperassem pelo nascer da estrela, para terminar o jejum… Até – era onde podia chegar! – alguns desses cristãos novos, por noite alta, se juntavam para fazerem as suas rezas em comum numa quinta da Outra Banda, pertencente ao ferreiro António Fernandes, onde tinham a sua synoga!

Mas a Inquisição vigilava; não se fossem assustar as crenças do nosso católico homem bom! e o prevaricador ferreiro já estava bem encerrado no cárcere inquisitorial.

Era bem possível que o provinciano, de que vimos falando, penetrasse nalguma das então numerosas vendas do Rosyo e, se perguntasse pelo novo tribunal, ouviria lamentar a morte do Montenegro, queimado no primeiro auto da fé, acusado de ter posto, numa noite de tempestade, um pasquim com heresias na porta da catedral. Se um cristão velho estivesse presente, dir-lhe-ia logo que o Montenegro fora para o inferno e à hora da morte não pudera sequer fitar a cruz de Cristo, ao que uma cristã nova acrescentaria, semi-chorosa, que um infame preto lhe vazara um dos olhos e o Montenegro estava inocente e fora mártir.

Nada de sentimentalidades, porém, rude provinciano; se o teu coração se compadece, recalca bem para o íntimo esse sentimento, se / 124 / tens algum amor à terra natal, aos passarinhos que chilreiam na tua quinta e queres aproveitar a tua estada em Lisboa para ires assistir nas hortas de Santos o Novo, de Alcântara, ou de Santo Antão, aos jogos da bola, ou da távola.

Em tenda que suponhas de cristã nova não peças carne de porco, porque a dona te responderá: só um porco pode comer outro e, se quiseres ver à janela essas tentadoras judias todas enfeitadas, folgando, mas com a tristeza a bailar-lhes nos olhos cor de amora, procura-as aos sábados, que as hás-de ver com as beatilhas lavadas, manilhas de ouro grossas nos braços, e meadas de aljôfar cingindo os pescoços de alabastro.

Podes ainda assistir ao espectáculo imprevisto de um auto da fé, mas aí toda a cautela é pouca, não vá o teu coração, sincero como o vento, que sopra em liberdade nas tuas serranias, ser indiscreto e fazer com que o rapazio te rodeie e grite atrozmente:

Está triste por lhe levarem a queimar os irmãos na fogueira! Que bem lhe havia de ficar uma carocha!...

*

Um dos primeiros cuidados da Inquisição, ao estabelecer-se no nosso país, foi, sem dúvida, a inspecção às livrarias de que foram encarregados pelo Inquisidor Geral, D. Henrique, o prior de S. Domingos de Lisboa; Fr. Aleixo, superior desse mesmo mosteiro e Fr. Cristovão de Valboena. Sabiam bem que, para propagar a herética pravidade e apostasia, nada como as obras impressas; e por isso os dois censores tinham bem apertadas instruções para chamar à Inquisição todos os livros suspeitos. Quanto aos novamente impressos, a 29 de Novembro de 1540, mandava o inquisidor João de Melo notificar os impressores Luís Rodrigues e Germano Galhardo, sob pena de execução e de dez cruzados para as despesas do Santo Ofício, que nada se imprimisse sem o visto dos revedores.

Não contentes com isto, no Regimento do Conselho Geral de 1 de Março de 1570, ainda inédito, expressamente lhe cometiam a visitação das livrarias do reino, não só públicas, como até particulares!

Tal foi pois a asfixiante atmosfera que a Inquisição criou aos produtos da mentalidade portuguesa: por um lado o sequestro do que no estrangeiro se produzia e por outro a repressão de tudo o que pudesse ofender os fanáticos ouvidos dos conspícuos qualificadores, a repressão de qualquer vão mais arrojado do espírito lusitano.

E, para se saber como isto se cumpria, basta que digamos que tão fanatizada estava a sociedade lisboeta de meados do século XVI, tão instigada por pregações e descargos de consciência, que os filhos denunciavam / 125 / os pais, as mulheres os maridos, as amigas umas às outras e as vizinhas faziam orifícios no sobrado para espreitarem o que se passava na casa alheia!

Não admira portanto que Damião de Góis, ausente da pátria havia bastantes anos, tendo exercido missões de confiança junto do rei de Dinamarca, tendo convivido em Lubeck com João Pomerano, em Utibregue com Melanchton e com o grande reformador Martinho Lutero, cuja igreja visitou, tendo convivido em Friburgo com Erasmo e tendo frequentado as Universidades de Lovaina e Pádua, visse o seu livro sobre os costumes e religião do rei da Abissínia, impresso em Antuérpia e escrito em latim, impedido de circular em Portugal. Em carta de 28 de Julho de 1541 explica-lhe o inquisidor geral, D. Henrique, o motivo de tal censura. Era que os graves críticos inquisitoriais não tinham visto com bons olhos que Damião de Góis tivesse posto argumentos mais fortes em defesa da sua religião na pagã boca do embaixador do Preste João, que na do bispo Adaim... Damião de Góis não se contentou porém com tal resposta e por isso novamente o cardeal D. Henrique lhe replicou, a 13 de Dezembro de 1541, que não tinha sido proibida a venda da primeira parte da sua obra, mas sim da segunda, em que se trata das coisas de fé e superstições que têm os etíopes, acrescentando o inquisidor geral que huma cousa he relatar simpresmente os ritos de huma naçam e outra querellos corroborar com razões falsas.

Era mais uma alma perdida na convivência com hereges, pensaria consigo o fanático Cardeal Inquisidor. E, enquanto ela pairasse distante, o perigo não era de maior; mas quando descesse cá à boa terra lusitana, cheia de céu azul e de sol brilhante, que era preciso defender a todo o transe das heresias, não seria preciso vigiá-la com o mesmo cuidado com que os frutos sorvados se devem apartar dos sãos?

Assim era de supor.

Damião de Góis voltou com efeito a Portugal e é certo que, já a 5 de Setembro de 1545, o seu nome era pronunciado como possuidor de ideias avançadas, perante o Tribunal Inquisitorial de Évora, pelo jesuíta Simão Rodrigues, o antigo companheiro de Inácio de Loyola em Paris, a quem os autos do processo de Damião de Góis chamam Padre Mestre Simão, da congregação e ordem de Jesus.

Não se pense porém que o astuto jesuíta praticasse este acto por mal: longe disso. Não tinha ódio nem inimizade ao denunciado – assim expressamente o declarou – e, se subia os degraus da casa do despacho da Inquisição de Évora, era tão somente por descargo de consciência e serviço de Nosso Senhor!

/ 126 / Por esse descargo, pois foi contando que, havia já anos, se tinham conhecido em Pádua, e nas práticas amigas de ausentes da pátria comum; Damião de Góis se mostrava inclinado às heresias de Lutero, com quem falara, era grande amigo de um herege de Basileia, Simão Crineus, e fora discípulo de Erasmo, com quem vivera algum tempo. Não negava Simão Rodrigues o talento do denunciado, mas, exactamente por isso, o achava muito perigoso, por ser homem avisado e saber, além do latim, do francês e do italiano, alguma teologia e até lhe parecia que também o flamengo e o alemão.

Contente consigo mesmo, com a consciência descarregada, retirou-se o bom do jesuíta, até que, ou em razão da carga lhe não parecer suficiente, ou em razão do descargo não ser completo, novamente se apresentou no Tribunal Inquisitorial, a 7 do mesmo mês, para dizer que tinha Damião de Góis por luterano e, a 24 de Setembro de 1550, em Lisboa, para declarar que, em Pádua, na própria casa do denunciado, tinham tido uma disputa teológica sobre a certeza da graça, em que mutuamente se crivaram de textos de S. Paulo.

Como se vê, cinco anos levou Simão Rodrigues a perscrutar a sua memória, cinco anos em que viu que ainda não tinha obtido o resultado que desejava, e ainda mais 21 se passaram no mesmo estado, sem o processo ter andamento. Entretanto Damião de Góis era nomeado guarda-mor da Torre do Tombo e, em 1558, era o próprio cardeal D. Henrique quem o incumbia de escrever a crónica d'el-rei D. Manuel, seu pai.

Quantas vezes, neste intervalo, ou subindo as escadarias dos paços da Alcáçova, onde estava então a Torre do Tombo, ou penetrando nos umbrais do colégio jesuítico de S. Roque, não se encontrariam os dois: Damião de Góis, cronista-mor do reino, guarda-mor da Torre do Tombo, o denunciado, e Simão Rodrigues, reitor da casa professa de S. Roque, preceptor da doutrina do príncipe, o delator! E não nos diz a História se nessas ocasiões Damião de Góis descortinaria, nos cumprimentos do seu velho companheiro de Pádua, alguma coisa do pérfido ósculo de Judas a Jesus...

O certo é que, até 1571, ou mercê da influencia do inquisidor Fr. Jerónimo de Azambuja, parente afim do cronista, ou por qualquer outro motivo até hoje desconhecido, os juízes do Santo Ofício dormiram sobre as denúncias apresentadas. Foi o seu próprio genro, Luís de Castro, tesoureiro do Cardeal Infante e fidalgo da sua casa, provavelmente por questões de família, quem fez activar o andamento de tal processo, vindo, a 9 de Abril / 127 / desse ano, depor contra o sogro, a conselho do próprio confessor, acusado de ter dito que houvera muitos papas tiranos, que a maioria dos eclesiásticos era hipócrita e que os padres da companhia de Jesus não guardavam a pobreza como lhes ensinara o seu virtuoso instituidor, Inácio de Loiola.

A esse tempo já o preso Damião de Góis gemia nos cárceres secretos, pois tinham-lhe lançado a mão no dia 4 de Abril. Sucessivamente o ouviram depois em dezoito audiências, umas do estilo e da praxe, outras requeridas por ele.

A principio queria Damião de Góis saber o motivo da sua prisão, mas esse não lhe foi revelado e somente o admoestaram a que confessasse tudo o que praticara contra a nossa fé católica, para poder ser merecedor da misericórdia da Santa Madre Igreja, que ela usa com os verdadeiros confitentes e penitentes.

Damião de Góis passou então em revista toda a sua vida, desde que saíra de Portugal, comissionado por el-rei D. João III, contou as suas viagens pela Europa, as relações suspeitas que nelas tinha adquirido, os estudos que tinha feito e, por último, de tudo (pediu perdão e misericórdia. Só com isso, porém, não se contentaram os senhores inquisidores, e novamente o admoestaram, pedindo-lhe que examinasse bem a sua consciência, e que dissesse tudo o que crera e praticara da seita luterana.

Por tal motivo, no dia seguinte, Damião de Góis confessou ter dito que os hábitos dos luteranos, acerca do criar dos pobres, eram melhores que os nossos e, dias depois, falava na sua obra sobre os costumes dos etíopes; supondo que lhe passariam alguma busca à livraria, foi confessando também que nela tinha alguns livros proibidos e algumas cartas de Erasmo.

Como ele estava longe das conversas de Pádua com o seu delator, Simão Rodrigues! E que tratos não daria à imaginação naquele escuro cárcere em que o encerraram, sem saber bem o motivo por que o faziam!

A nova audiência veio pois o cronista e nela confessou ter ouvido um sermão a Martinho Lutero. Fora num Domingo de Ramos, em Witemberg; como o Reformador pregava em alemão, pouco entendera, mas num dos dias seguintes jantara com ele e com Melanchtone, depois de jantar, dirigiram-se os três a casa de Lutero, onde, servidos pela sua mulher, em convívio de amigos comeram maçãs e avelãs...

Também estivera em casa de Melanchton; mas esse era pobre e quando lá entraram encontraram-lhe a mulher, vestida com uma saia velha de bocaxim, fiando...

Neste meio tempo veio depor contra ele o poeta Pedro de Andrade Caminha.

Quando Damião de Góis estava escrevendo a Cronica d'el-rei D. Manuel, contou ele, pedira a Caminha para, junto da infanta D. Isabel, lhe obter apontamentos acerca do infante D. Duarte seu marido; a infanta respondeu a Caminha que já tinha dado a Góis apontamentos acerca da forma como ele morrera, o que Caminha lhe comunicou, retrucando então o cronista que não havia homem (que na morte não dissesse quatro parvoíces.

Andrade Caminha não ligou nessa ocasião importância a esta resposta, mas, sabendo Damião de Góis preso, e sabendo a forma cristianíssima como falecera o infante D. Duarte, viu nela sombra de heresia e, por descargo de consciência, o veio dizer.

É a bem triste história de se saudar o sol que nasce e de se apedrejar o sol que se oculta!

Com tal e tão depravado testemunho e com estas audiências se foi passando todo o mês de Abril, até que, no dia 2 de Maio, apresentou o Promotor o seu libelo acusatório, / 128 / lido diante do réu, no qual apontando a Damião de Góis os erros contra a religião católica que eIe cometera, o increpava por louvar a maldita seita de Lutero, a que tinha querido converter um Padre da Companhia – está-se a ver que era Simão Rodrigues – e, depois de falar nos livros heréticos encontrados na sua livraria, terminava pedindo a condenação do réu como herege, luterano, pertinaz e negativo.

Nessa ocasião falou Damião de Góis nas suas conversas com João Decamarty e o Padre Monserrate, mas, nem por sombras, se lembrou das conversas de Pádua, supostas ou verdadeiras, com o seu delator Simão Rodrigues!

Voltou o cronista para o seu cárcere e facilmente se imagina em que abatimento de espírito. Que segredos não possuiriam já os seus severos juízes?! Que testemunhos não haveria contra ele?! Duas noites adormeceu o Guarda-mor da Torre do Tombo – se é que as não velou por completo – a cogitar na sua vida... para vir, no dia 4 de Maio, confessar / 129 / que, em Flandres, tinha tido disputas com diferentes pessoas sobre a validade das indulgências, que o Papa concedia, sendo então de parecer que elas eram bem pouco proveitosas, assim como a confissão auricular; também confessou que, falando de padres, tinha dito serem eles tiranos e usarem mal dos seus ofícios.

A 10 de Maio solicitou Damião de Góis audiência para dizer que já não tinha coisa alguma para confessar e que, por isso, o despachassem e, a 17, tornou-a a solicitar com o mesmo fim, alegando que estava velho, muito fraco e mal disposto.

Decididamente Damião de Góis ia-se impacientando com o prolongamento da sua estada num cárcere, que os contemporâneos nos não descreveram, mas que deveria ser bem desabrido e triste. Nele haviam de lhe chegar aos ouvidos os gritos lancinantes das vítimas torturadas!

Entretanto novas testemunhas se iam / 130 / interrogando; ao mísero preso ia-se arranjando carga cada vez maior!

A 21 de Maio subia o inquisidor Simão de Sá Pereira às pousadas de D. Maria de Távora que, doente de cama, não podia ir até ao Paço dos Estáos e, a 25, fazia o mesmo ao duque de Aveiro, pelo mesmo motivo impossibilitado de comparecer. A primeira dizia ter ouvido que Damião de Góis era muito dado a comer e beber, assim como aos prazeres da carne e contava que duma vez em casa dele, a uma sexta-feira, como Damião de Góis comesse carne de porco e uma sobrinha Iho censurasse, ele replicara:

Calai-vos, senhora sobrinha, o que entra pela boca não mata a alma.

O depoimento do duque de Aveiro era de menor importância: conversando com ele, a propósito duma capela que o duque queria mandar fazer, lhe dissera Damião de Góis que seria muito mais seguro fundá-la numa igreja paroquial de que no mosteiro de S. Domingos, em Coimbra.

Não ligou o duque importância ao caso, mas agora, e logo que o soube preso, contou-o a seu filho, que por carta tinha avisado o Santo Ofício!

Dir-se-ia haver um acordo secreto contra o pobre cronista!

A 9 de Junho, foi Damião de Góis mandado vir perante os Inquisidores e nada mais confessou, pedindo somente que o despachassem brevemente, porque está morrendo neste cárcere.

Entretanto a sobrinha, D. Briolanja de Carvalho, ia confessando ter-lhe, ouvido a frase que D. Maria de Távora dissera, e a 30 de Julho, Damião de Góis, novamente chamado, negava terminantemente tê-la proferido, acrescentando:

Quem quer o diz, o diz falsamente e no rosto lhe dirá se se puder dizer.

Com este novo testemunho da própria sobrinha, recebida e obsequiada em casa do cronista, entendeu o Promotor que devia carregar na acusação; quando lha leram, Damião de Góis outra vez negou o facto, afirmando que a testemunha era falsa. Passar-lhe-ia por ventura pela cabeça a conversa com a sobrinha Briolanja, criada em sua casa como se fora filha, e em adiantado estado de gravidez, desejosa de comer carne de porco? É natural que não; sobre esse facto tinham já passado bastantes anos e tanto assim que, em duas audiências mais, numa pedia Damião de Góis para lhe avivarem a memória, porque de tal se não recordava e noutra, desejoso de ver o fim ao processo, dizia não estar recordado e porém, se o disse, pede disso perdão e misericórdia.

Esta última audiência foi a 3 de Agosto e no dia 1 tinha em Évora deposto sua filha Catarina de Góis, que disse não se lembrar do pai ter proferido a frase de que o acusavam, e até para ela imaginou uma explicação, no desejo bem simpático de o salvar; a oito de Agosto, apresentava o advogado Aires Fernandes a sua defesa por escrito, com a qual se não contentou o cronista, sendo ele próprio quem se dirigiu aos Inquisidores pedindo-lhes pelas cinco chagas de Nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo que o despachem.

Não podia certamente ser mais atroz o desespero que tanto fazia humilhar aquele que, gozando de reputação europeia, estava ali à mercê de pigmeus de que a História só fala para os acusar das carnes inocentes que fizeram queimar!

/ 131 / Para nós é particularmente interessante este memorial todo de punho do grande historiador, em que claramente ressalta o seu deprimido estado de espírito e o seu precário estado de saúde. Com mais de setenta anos, preso há nove meses, já sem forças para se suster nas pernas, descrevia-se o cronista, tão cheio de usagre e sarna por todo o corpo, que pouco faltava para o poderem considerar como leproso!

Fora na audiência de 4 de Dezembro que lhe fizeram a publicação dos testemunhos contra ele e por ela viu Damião de Góis como tinha sido delatado por Simão Rodrigues. A respeito deste testemunho lembra que se lhe não deve dar fé, acoimando-o de suspeito; referindo-se a outro testemunho em que era acusado de ter dito mal dos prelados, clérigos e religiosos, Damião de Góis confessa-o e explica que só se referia àqueles que não cumpriam a sua regra e, quanto à frase proferida num banquete, a propósito de carne de porco, repete que dela se não lembrava, fazendo finalmente três pedidos: o primeiro que lhe dêem licença para escrever ao Cardeal D. Henrique, o segundo para que o deixem falar a seu filho Ambrósio de Góis, para saber da sua família, negócios e fazenda e principalmente / 132 / por causa duma demanda que lhe moviam: por último pede que lhe emprestem um livro em latim, para ler, porque estou apodrecendo de ociosidade e com o ler se me passam muitos pensamentos.

Nada disto porém lhe foi concedido. Era o requinte da crueldade!

Ainda outro memorial ele apresentou, fazendo valer todas as suas confissões e crenças, defendendo-se e terminando por pedir que, atendendo à sua idade, qualidade da sua pessoa e desamparo da sua casa e filhos, o despachassem com brevidade e o restituíssem à sua honra, da qual está tão menoscabado, escrevia o cronista, que se vossas mercês lha não restituem, não ousará d'apparecer nem andar entre gente!

Para atenuante ao seu confessado procedimento herético solicitou Damião de Góis nova audiência, a 9 de Fevereiro de 1572; então pediu que ao seu processo fosse junta, como efectivamente foi, uma lista das benfeitorias praticadas por ele a diversas igrejas e das suas obras pias e termina dizendo que quem estas obras faz nas Egreijas e outras com hos proximos, que não diguo, catholico he e não lutherano, pera ho terem aqui preso passa já de dez mezes, pello que pesso a vossas mercês que ponhão has dictas obras em uma balança e na outra os erros de que me accusam mais por fallar que pellos usar, porque nunqua hos usei e, rebatida huma cousa da outra, me julguem e despachem com brevidade, pelo amor de Deus, porque m'estou aqui consumindo, assi da honra, quomo da saude, quomo da fazenda.

Entretanto novos testemunhos iam aparecendo contra o desventurado prisioneiro. Não bastava os que havia já!

A 12 de Abril D. Pedro Diniz vinha dizer que tinha ouvido a João de Carvalho, provedor-mor das obras d'el-rei e vizinho de Damião de Góis no Castelo, que ele falava com admiração de Lutero e Melanchton, não o via ir à missa e costumava muito conviver com gente estrangeira. Passado mais de um mês foi chamado João de Carvalho, que confirmou o depoimento anterior, e adiantou-se em pormenores, dos quais particularmente nos merece interesse, a acusação que ele tinha ouvido aos próprios criados do cronista de que ele não era muito misseiro...

Por este motivo nova audiência teve o encarcerado e, a propósito das visitas de estrangeiros, disse que a sua casa era estalagem deles, a quem costumava banquetear; depois de jantar se punham a cantar missas e motetes, compostos em canto de órgão, porque ele era muito músico e folgava de cantar e ser muito dado à música para passar nisto o tempo.

Nada porém Damião de Góis confessou quanto à sua admiração por Lutero e Melanchton e novas acusações lhe foram apresentadas, cuja defesa o seu advogado teve de fazer. Não obstante, Damião de Góis juntou novo memorial, em que recordava diferentes ofertas místicas feitas por ele, tais como um livro de Horas de Nossa Senhora, iluminado por Simão de Bruges, que o iluminador António de Holanda tinha avaliado em 750 cruzados, oferecido à Rainha, e diferentes imagens oferecidas ao rei, a Pedro d'Alcáçova Carneiro, etc. Ainda antes da sentença, mais duas petições apresentou Damião de Góis, numa das quais, a 14 de Julho de 1572, se dizia tão mal disposto, que não tinha uma só doença, mas sim três: vertiguo, rins e sarna, quomo especie de lepra, que qualquer pessoa que me vir, se fôr proximo, se movera ha piedade, porque em meu corpo não ha cousa sam!1

Pobre Damião de Góis! Nem uma parte do / 133 / corpo conservava sã! Quem havia de reconhecer nele o antigo representante d'el-rei de Portugal nas cortes estrangeiras?

Isto escrevia o cronista, 16 meses depois de encarcerado... E todavia, ainda quatro meses teve de esperar, decerto com impaciência tal que tocaria as raias do desespero, até que, em Outubro de 1572, proferiram finalmente a sua sentença, em que o mandam abjurar os heréticos erros em forma, somente diante dos Inquisidores e o condenam a cárcere penitencial perpétuo, na parte para onde o Cardeal Infante o mandasse.

Com efeito, entre o dia 6 e o dia 16 de Dezembro, saiu o réu Damião de Góis do cárcere inquisitorial para o mosteiro da Batalha e não nos diz a História qual fosse a sua sensação ao fitar, após dezanove anos de clausura, a luz brilhante desse sol de Lisboa que, por mal da Humanidade, não raiava só para os espíritos como o do douto pensador quinhentista, mas iluminava também Simão Rodrigues, Luís de Castro, Briolanja de Carvalho e João de Carvalho, todos quantos principalmente contribuíram para a condenação do cronista. Sim, a História não nos diz, se nessa ocasião Damião de Góis não teria principalmente vontade de não mais o fitar e de morrer…

Mas o que ela nos diz, reabilitando-o, é que a designação de réus compete exclusivamente aos que tão infamemente o martirizaram!

*

Retrocedemos agora um pouco para nos encontrarmos com outro homem de letras do século XVI, «Fernão de Oliveira», o primeiro gramático português e afamado nautógrafo desse tempo, num sítio já de nós conhecido, onde ele geme e pena. Seja a 25 de Novembro de 1547 e ir-lhe-emos ouvir o libelo do Promotor da Inquisição de Lisboa, em que o acusa de, na Rua Nova, publicamente, ter elogiado o proceder desses heréticos ingleses, insubmissos ao Papa, que queimavam os frades, afirmando vários erros luteranos, e – o que é mais – ameaçando com bofetadas e cutiladas aqueles que o contradissessem. Fernão de Oliveira fora frade da ordem de S. Domingos; vestido de capa e pelote curto, armado de espada, com chapéu e barba comprida, fizera de marinheiro e piloto, por França e Inglaterra, sem se confessar nem comungar.

Era mais esta acusação que o Promotor inquisitorial lhe dirigia.

Mas como chegariam à Inquisição notícias tão comprometedoras para o nosso gramático? Fora que, a 18 de Novembro deste mesmo ano, três livreiros, João de Borgonha, Francisco Fernandes e Pedro Álvares, abandonando as suas tendas da Rua Nova, vieram, já se vê «por descargo de consciência», contar uma polémica que o primeiro tinha tido com Fernão de Oliveira, sobre questões religiosas, em que ele se mostrava bastante afecto aos luteranos.

Maldita hora em que o antigo dominicano viera comprar a Esfera de Pedro Nunes, porque, se não fosse isto, talvez o não encontrássemos, oito dias depois, a ouvir ler as tremendas acusações que contra ele forjara a justiça inquisitorial.

André de Resende, o grande antiquário que fora seu mestre de gramática no convento de Évora, tinha-o imediatamente reconhecido; e, escandalizado com a sua atitude, apontara-o a João de Borgonha.

/ 134 / Foi a faúlha que incendiou o ódio do livreiro!

Por isso não se desperdiçou o ensejo da vingança e a conspiração arteiramente urdida por ele veio a surtir o desejado efeito.

Fernão de Oliveira, ao ouvir ler a acusação e ao saber de onde ela partira, contou logo a zanga que com ele tinha tido um dos livreiros, por causa da impressão dum livro seu, dando assim como suspeita tal testemunha. Dizia-se vassalo do rei de Inglaterra, de quem tinha trazido uma carta para o nosso rei e, entre outras coisas, de que a sua consciência o acusava, lembrou-se de ter dito que havia clérigos que mais serviço fariam a Deus, lavando e cavando, do que pregando e dizendo missa.

No entretanto dirigia-se por escrito o gramático ao seu protector conde da Castanheira, confiado em cujo favor ele viera a Portugal. Essa carta porém não conseguiu iludir a vigilância inquisitorial e, a 23 de Dezembro de 1547, respondia Fernão de Oliveira por escrito às acusações que lhe fizera o Promotor da Inquisição, taxando de perjuras e suspeitas as testemunhas contra ele, dizendo que tudo o que ele afirmava não eram, de forma alguma, heresias.

Novamente veio o gramático à presença do Inquisidor João de Melo, mas nada adiantou, apesar dele lhe recomendar que metesse a mão na Consciência, e só, a 4 de Agosto de 1548, Fernão de Oliveira reconheceu como heresia o dizer que o rei de Inglaterra não era hereje, sendo cismático, que ele e os ingleses se podiam salvar apesar de viverem fora da igreja católica e que não era pecado o queimar os / 135 / ossos do bem-aventurado S. Tomás, assim como destruir os mosteiros. Por isso os inquisidores o condenaram somente a abjuração dos seus erros e a prisão no cárcere por tempo indeterminado, mas devendo andar de hábito e tonsurado, rezando o ofício divino.

Passados três anos, Fernão de Oliveira, muito pobre e doente de cólica, pedia para ir para algum mosteiro, como efectivamente foi, para o de Belém; um ano depois, em 1551, era posto em liberdade, não se sabe se sinceramente convertido à fé católica, se saudoso do tempo em que, vestido de capa e pelote curto, armado de espada, com chapéu e barba comprida, fizera de marinheiro e piloto por França e Inglaterra.

E assim se ficam conhecendo as torturas que a justiça do Paço dos Estáos infligiu, no século XVI, a dois dos mais notáveis vultos da nossa história literária quinhentista.

ANTÓNIO BAIÃO

Clichés de A. Lima.
 

 

23-06-2020