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Ainda
não rompera o Sol, já em casa do Manuel da Breja ia uma azáfama
desacostumada. Um trabalho difícil: agarrar os bácoros e pô-los no carro
de vacas, para o efeito provido de seguras sebes.
Dia de
feira, e os leitões com mais de um mês. Previa-se subida de preço, maré,
portanto, de aproveitar. Se não chegassem à conta, voltariam para casa,
que, naquela idade, não davam prejuízo nem lhes faltava, graças a Deus,
de comer. Os bácoros, agarrados pelas patas, berravam como se os
estivessem a matar. A gritaria enraivecia o podengo preso por grosso
cadeado a um moirão. Ao barulho do cachorro e dos leitões, respondiam,
na quietação da madrugada, outros cães sobressaltados, quando não
idêntica berraria suína, mais grave ou mais fina, segundo a idade da
mercadoria que se preparava para a feira. De todos se riam os galos, em
gargalhadas metálicas, de poleiro para poleiro, no despique de todas as
madrugadas. Qyietas, só as vacas, apesar de interrompidas mais cedo no
sono da noite; das narinas largas subia-lhes o vapor quente da
respiração, que envolvia o filho do Manuel da Breja, o pequeno Fernando,
que, à frente, lhes tomava a soga.
Quando
chegaram à estrada, aperceberam-se de que não tinham sido os mais
madrugadores. Na quietação daquela hora escutava-se o rodar longínquo
dos carros nas pedras da estrada, além do berreiro dos bácoros e do
grunhir dos cevados. O gado de corno, esse, iria, mais tarde, pouco
antes do meio-dia.
Apareceu o Sol quando subiam o derradeiro troço da estrada, antes do
vasto rossio da feira. À medida que se aproximavam, ficavam-lhes os
ouvidos cheios do inferno de centenas de porcos, de mistura com as vozes
da multidão.
Um
planalto, varanda sobre a toalha estendida para a ria e o mar, o local
escolhido para as trocas entre a serra e a planície. Duas vezes por mês,
sobem os de baixo, enquanto o serranos descem. Uns e outros, os homens
do mar e da planície dum lado, do outro os da serra, quando ali chegam
são presas dos mesmos sentimentos, apenas diversos nos objectivos: a
planície ergue, comovida, os olhos maravilhados para a serra
majestosamente erguida entre tufos de vegetação e grandes penedos como
enormes calvas, no cimo da qual branqueja a capela da Nossa-Senhora da
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Saúde; do miradouro da feira os serranos avistam o espelho da ria,
recortada em milhentos canais, os campos vizinhos, sem altos nem baixos,
de uma variedade infinita de culturas, e, mais além, dum louro de trigo
na eira, a praia que a ria e o mar, dum lado e doutro, abraçam e beijam
em disputa secular de amantes ciumentos que, sem a amada comum a
conter-lhes os ânimos não raro revoltos, há muito se teriam envolvido em
luta de vida ou morte. Cresce em todos o desejo de matar saudades e de
se divertirem um pouco. Em pensamento, fazem as raparigas, ali mesmo,
promessas ao S. Paio ou à Senhora da Saúde, que as livrem de doenças
imaginárias, como tais curadas infalivelmente, certeza de romarias. Em
virtude dos milagres evidentes, os pais não impedirão as filhas de
cumprir promessas tão justas, escrupulosos em não suportar na
consciência tal carrego, escarmentados por inúmeros casos de alminhas
penadas que do outro mundo têm descido e se têm apossado do corpo de
muitos cristãos, por via da satisfação de votos não cumpridos, sem o que
não poderão sair daquele penar por montes, vales e o mar coalhado,
entrar, enfim, no reino dos Céus.
Ninguém falta. Ao S. Paio, à beira-mar, e a Senhora da Saúde, na serra,
as festas mais concorridas da região. A alma beirã, tão variada como os
seus habitantes, iguala-se, durante elas, no exteriorizar selvagem da
alegria, de presos inesperadamente soltos: selvagem da alegria, de
presos inesperadamente soltos: gaitas, tambores, violas, cantigas ao
desafio, foguetes, sinos, e vinho em tigelas de barro vermelho, bacanal
de escravos da terra e do mar temporariamente libertos, a que a religião
dá a bênção. O S. Paio e a Senhora da Saúde, numa corte ingénua de
anjinhos, vão também à romaria, por entre a multidão dos devotos,
foguetes e música, sorrindo dos andores floridos, para abençoar, ele o
mar traiçoeiro e quase sempre avaro, que não faça mais vítimas nem rompa
as redes, antes as encha de peixe, e ela, a terra madre, que, fecundada
do sol, se desentranhe no pão de cada dia.
Depois de muito regatear e marralhar, no que o
auxiliava proveitosamente a Conceição, sua mulher, acabou o Manuel da
Breja por entregar os bácoros. Enquanto o pequeno tomava conta da junta,
foi percorrer a feira, na ideia de comprar alguns utensílios de lavoura;
a mulher, por seu lado, tratou de ver panos para camisas, que tanto o
homem como o filho andavam precisados, e, já que faltava só ela, não
deixaria de apreçar um lenço talvez igual ao que vira na cabeça da Marta
do Zé da Igreja. Separaram-se, com a combinação de, pelo meio-dia, se
reunirem à beira do carro, para comerem qualquer coisinha, o mais certo
a tradicional posta de carne assada com arroz, regadinha de molho.
Entretanto, o rapaz, para se não aborrecer, ia jogando a piorra, sem
deixar de pôr o canto do olho para as vacas que se babavam em lenta
ruminação.
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Um
propagandista, de longas barbas patriarcais, armara tribuna no automóvel
e, dali, agitando uma campainha, chamava o povoléu para verem a grande
maravilha duma cobra que se lhe enroscara no pescoço. Ante as bocas
abertas da gentalha, desenrolou um atlas anatómico do corpo humano,
enquanto descrevia as doenças que atacam os aparelhos, com pormenores
realistas de sintomas. Encareceu depois o miraculoso poder dumas ervas
miraculosas, panaceia de que tudo se podia esperar, desde a cura dos
calos à da queda do cabelo, passando pela dos órgãos internos,
medicamento usado por habitantes de problemáticas regiões, os quais,
graças a elas, viviam são como peros até tombarem de velhice. Um
pechincha, no entanto, que o preço, tendo em conta a sua utilidade, não
passava duma ridicularia. Trouxera poucos pacotes, mas os que havia
dá-los-ia quase de graça, a título de reclamo e propaganda. Quais os
senhores interessados?
O
Manuel da Breja tinha entretanto, chegado. Comendo tremoços, o filho
mostrava a sua impaciência pela demora da mãe, que a fome apertava-o, e
não era de génio de esperar. Passava, na verdade, da hora marcada. Onde
a Conceição? – pensava o Manuel, enquanto o filho, comido o último
tremoço, lamuriava:
– Pai,
tenho fome...
Também
ele sentia o estômago vazio, acicatado pelo cheiro da taverna próxima.
Fazia
um esforço enorme sobre si para não explodir: não queriam ver que a
mulher tinha feito mais uma das suas? Não lhe teria ficado de emenda a
valente tareia? Que maldito vício aquele! Pior do que possessão
diabólica, que essa sabia-a muito bem talhar a D. Pilar, se o reitor o
não quisesse fazer. E a barriga a dar horas... Não esperaria mais, que
talvez inútil, além do pequeno não poder estar sem comer, e ele também.
A porca que se afogasse em vinho, que, a não mudar de vida, só serviria
de estorvo, além de mau exemplo para o filho.
Na
taverna, difícil arranjar dois lugares para abancarem. Fumegavam pitéus,
das travessas depressa desaparecidos, vítimas da voracidade da gente
que, habituada à frugalidade de comeres simples e iguais, tirava a
barriga de misérias. O Manuel pediu, bem de ver, o seu petisco mais
desejado: a posta de carne assada e arroz de forno. Surgiu esplêndida,
coberta de molho, de se comer só com os olhos. Uma infusa de rascante
para desentupir e refrescar as goelas fê-lo entrar num oásis do deserto
sempre igual da sua vida. Tudo lhe ficara à porta, e a mulher como se
não existisse. Tão bom aquilo, que repetiu, sempre acompanhado de
saboroso arroz-da-terra, daquele rajado da beira do Antuã. Que diabo! Um
dia não são dias, e o negócio nada mau. Um homem não podia levar toda a
vida a fossar na terra sem se
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tornar bruto. Além disso, demasiados desgostos tinha em casa para deixar
perder aquela ocasião. Fazia-lhe boa sociedade o filho, com grande
contentamento seu: consolava-se de lhe ver o apetite, tal qual o seu,
que até nisso saía a ele, graças ao Pai do Céu. Nele tinha todas as suas
esperanças; se tanto se sacrificava, por ele o fazia. Além de que mais
nada o prendia à mulher. Ter-se-ia já separado, se lhe não doesse a alma
só de pensar em que o pequeno nunca levaria a bem. Enfim, mãe. O rapaz
havia de crescer e ser gente, que meios não lhe faltavam para lhe dar
uma posição, até mesmo a de doutor, se o não visse com queda para a
lavoira. Graças a Deus que, por enquanto, só agarrado ao rabo da vaca se
sentia feliz. O futuro, porém...
–
Come, rapaz!
Em
resposta, este ergueu-se do banco e mostrou o ventre reteso que nem
coiro de pandeiro: rebentava! Com uma grandiosa gargalhada, o Manuel da
Breja festejou o propósito.
Ainda
todo se escangalhava a rir, quando lhe apareceu, ofegante, o lnácio, que
acudisse à Conceição, que lhe tinha dado uma coisinha. O garoto pôs-se a
chorar.
–
Cala-te, que não há – de ser nada! Tua mãe não morreu.
Não
teve muita pressa: não era a primeira, nem, infelizmente, a última vez.
Esvaziou a infusa, de compadrio com o lnácio e, depois de pagar a conta,
lá foi para aquela obrigação, nem que para um enterro.
Estendida na valeta, no meio dum grupo de curiosos, uma rodilha
abandonada, a mulher. Ao redor, aventavam-se as mais desencontradas
hipóteses. Fome? Doença súbita? Bebedeira?
Ele
ficou impassível: ao que ela chegara! Sem conhecer ninguém, não falava,
grunhia, a sua mulher, a sua companheira! Abanou a cabeça e mandou o
filho pelo carro: não havia nada a fazer senão deixar passar. Auxiliado
pelo lnácio, pegou no corpo morto e estendeu-o no carro, numa esteira de
bunho.
Pelo
meio da tarde, deixaram a feira. Já havia começado a debandada em todas
as direcções. Pela estrada, uma nuvem de pó penetrava pelas narinas e
colava-se aos corpos suados. Já em declive sobre a ria e o mar,
feria-lhes a vista o sol. Mugiam as vacas, saudosas das crias vendidas.
A tudo se misturava o telim-telim das campainhas das bicicletas, o
buzinar dos automóveis e o ronco das camionetas. Aos pares, conversavam,
os namorados, entre risadinhas e remoques. Estendidos nas valetas,
mendigos exibiam monstruosidades de nascença, gangrenas sobre que voavam
moscas ávidas de pus, os quais imploravam esmola pelas almas. Dedilhando
guitarra, cantavam outros fados sinistros em que se contava de mães
bárbaras e / 33 / assassinas ou de paixões trágicas e impossíveis. Na
procissão contínua que descia, um bêbedo fazia prodígios de equilíbrio,
protestando, em altos berros, contra imaginários insultos à sua impoluta
honradez.
O
Manuel da Breja ia pensando na sua sorte. Levara, no carro, uma ninhada
de leitões, e trazia, em seu lugar, a mulher. Uma bácora. Impossível a
vida assim.
Tinham-se desfeito todas as esperanças numa emenda. Ela precipitara-se
na ladeira e só no fundo pararia. Assim lhe estragara a vida. Havia o
remédio do divórcio, mas tratava-se da mãe do seu filho. Também não era
homem para essas questões: toda a sua vida no tribunal, entre o riso e a
mofa dos conhecidos. Os advogados fariam espírito com a sua desgraça.
Mais tarde, talvez o filho lhe não perdoasse ter arrastado a mãe aos
tribunais e havê-la posto fora de casa por indigna. Poderia até
acontecer que, livre, ela mais à vontade se enterrasse na desgraça,
fosse gastando tudo, e até, quando mais não possuísse, mercadejasse o
corpo para apagar o incêndio do vício.
Assacar-Ihe-ia então filho a responsabilidade de a mãe lhe haver
desbaratado a herança e ainda de lhe ter dado, como mãe, um feio nome.
Não, havia de evitar tudo isso ao filho.
Não
podia, porém, continuar naquela vida, e sobretudo suportar tamanha
vergonha. Haveria uma solução!
Passavam pela vila, pequena terra de ares pretensiosos, onde uma avenida
torta e uma praça deserta faziam pomposamente as honras aos visitantes.
Ali, na praça e na avenida, estava quase toda a sua vida. De cabelos bem
penteados, bocejavam os caixeiros à porta dos estabelecimentos, lançando
de vez em quando um olhar ansioso para o relógio da Câmara, mortos pela
hora de fechar. Mas todo o ar de terra com categoria consistia sobretudo
em haver quem passeasse pela praça de mãos atrás das costas, em grupo
palradores e janotas.
O
Manuel da Breja parou de repente: uma ideia nova, uma ideia redentora,
ao passar pela agência de passagens e passaportes do Corcunda, onde num
cartaz fumegava um enorme paquete. Mandou seguir o filho com o gado e
recomendou-lhe que o tratasse bem. a mãe, que dormisse.
Enfim,
a solução: emigrar, fosse para onde fosse.
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Joaquim Lagoeiro, Viúvas de Vivos |