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Sérgio Paulo Silva, Memórias da Feira de St.º Amaro, 2ª ed., Estarreja, C. M. Estarreja, 2008, 84 págs.

Um Excerto de "Servidão"

– Se a gente fosse amanhã à feira de Santo Amaro, Leonor?

Eu gostava.

O alvitre era do Chico, Leonor perdia-se, ainda, no seu cismar de medo. "Um

filho de qualquer daqueles homens..." Estremeceu e aceitou, sem pensar, a sugestão.

Essa ou qualquer outra, igualmente a serviam.

– Podemos ir. Levaríamos merenda. Amanhã falamos.

Já temia aborrecer-se. Acontecera muita vez botar-se até Santo Amaro, para se distrair, e amofinar-se, se não com os modos desdenhosos dos feirantes quando ela se interessava pelos preços dos trapos e utensílios de casa, pela perseguição e dichotes de velhos e moços. De a verem pobremente vestida, estivesse ela no adro da capela a presenciar os namorelhos ou passeasse por entre as barracas, certo e sabido era que a poderiam olhar, e olhavam-na muito, mas nunca se lhe dirigiam corteses e com boas intenções, os rapazes bem trajados e distintos. Agora, podia apresentar-se tão bem, se não melhor, que as filhas dos lavradores, "mas valeria a pena?".

Dos feirantes e frequentadores do mercado aberto de Estarreja, já ela, em tempo competente, tirara a desforra. "Sempre embirrara com eles por não lhe responderem a sério quando lhes perguntava o preço dum produto ou dos objectos de adorno ou uso de casa, mas, muito principalmente, detestara as senhoras pelos seus trejeitos de enjoadas e desdenhosas, torcendo o nariz como se tudo cheirasse mal, e modos e maneiras de afastarem toda a gente para só elas passarem, quer dobrando os braços e espetando os cotovelos, quer mandando as criadas à frente a abrirem caminho.

Sentenciosas, ralhavam com os cachopos se eles levantavam pó quando corriam uns atrás dos outros, e censuravam-nos perguntando por que não lhes lavava, a mãe, a cara, se, lambuzados, se detinham à beira delas, olhando-as, espantados de lhes verem os lábios muito vermelhos e as unhas muito compridas, de "diabo e encarnadas". Ela, num dos primeiros domingos da estadia em casa da madrinha, vestira-se a primor e também a primor penteada, calçando sapatos de tacões muitos altos, do modelo daqueles que tão importantes tornavam as mulheres ricas, e com Maria Pata em funções de escudeiro, massacrara a paciência dos feirantes e erguera insolentemente o rosto para afrontar os / 26 / olhares das senhoras que a viam afagar teimosamente os rapazelhos de mais miserável aspecto".

"Caminhada para mais de duas horas e sem qualquer interesse ou novidade, tanta vez ela calcorreara a estrada e todos os atalhos, valeria o esforço?" – pergunta, a si própria, no dia seguinte. Manhã sem véus de neblina, pinheiros em fila, espectrais, prolongando ou afilando cimos de montes, tornavam ainda mais sinuoso o recorte das elevações do terreno; sobre a aldeia toda, caíra a quietação dos desertos. Um portão bateu, alguém passou na rua. Depois, durante horas e horas, nada boliu. E ao dobrar do meio-dia, primeiro a medo, não fossem eles provocar a cólera da irmã, tão misteriosos ou desconcertantes sempre lhes pareciam os castigos dos adultos, que os mais novos dos irmãos a custo se aventuram a insistir:

– Então, Leonor, a gente sempre vai à feira?

O rancho era apenas de quatro, mas a idades, entre eles diferiam tanto, que Leonor teria de os seleccionar. – Por vigilante, o Chico ficaria com o mais novo, a quem a caminhada estafaria, se o levassem; a ela, acompanhá-la-iam o de seis e o de nove anos. – Chico lamuriou. O ofício de ama-seca fartara-o naqueles três últimos meses. – Leonor ameaçou-o: – Deixo de ser tua amiga, se não me fizeres a vontade. Conhecia aqueles arremessos do agastamento de subordinar as horas dos folguedos de infância ao encargo de cuidar, vigia e tratar dos irmãos, mas, à falta de outro incentivo, apeteceu, nesse momento, experimentar a ascendência de irmã mais velha. Abalou.

Durante uma parte do caminho, relembrou as suas cóleras de cachopa contra todos eles. "Um em cada ano, os lapsos de idade entre os sobreviventes, preenchera­-os a morte. Por cuidados únicos, mal nasciam, a colherita de vinho maduro, para enrijar; se adoeciam dos olhos, o lavar cuidadoso da cara nas pias onde o gado bebia, e aí vão eles, ao Deus-dará, pela vida fora. Má alimentação, – enterites, esclarecera o padrinho, – frios: – broncopneumonias, – mirravam-nos, e, por medicação, que dinheiro não avezavam para médico e farmácia, as receitas, conselhos e mezinhas de bruxas e curandeiros. De dezasseis, seis ainda resistiam. Por quanto tempo? E para que futuro?"

A estrada animara-se. Ultrapassaram Estarreja; ultrapassaram, sem se deter, o cruzeiro de Beduído. Quando chegaram ao largo de entrada da feira, pejavam um vasto terreiro, à esquerda, carros e carretas de transporte, animais para venda e homens de negócios, bulhentos. Tomou-lhes o passo uma camioneta de passageiros. Mais homens. Alguns deles, horas depois, amesendados em barracas de comes e / 27 / bebes, bateriam moedas que pagassem a despesa de cinco tostões de arroz e quinze de vinho: "– Venha o troco... "

Sempre mais homens. Descem da camioneta, apressados, como se alguém os esperasse, e ninguém os rodeia; dois rapazes. Usam, ambos, gravatas de preço e colarinho. Um deles fita Leonor insistentemente e insistentemente reclama a atenção do outro. "Estúpido! Não é mal-parecido; a gravata é bonita e o olhar não tem a insolência de muitos senhores da Vila quando julgam que todo-o-mundo é seu". Desvia os olhos, não vá parecer lisonjeada pela cortesia, e mete, até, por caminho oposto àquele que lhe parece que eles escolheram. Não a seguem. "Ainda bem! Desagradava-lhe levar espantalhos atrás de si. Podia muito bem tratar-se de um rapaz da cidade e ela não servia nem de entretém de vadios nem estava disposta a que fizessem pouco dela. Esperava, isso esperava, alguém daquele mesmo porte, mas não se julgasse que não lhe diria, logo às primeiras falas, das suas condições de filha de gente humilde".

Enviesou para a capela. "Não lhe interessava presenciar os namorelhos de quem quer que fosse, mas talvez... Se voltasse a encontrá-lo, sempre quereria ver a atitude dele, do número um, daquele que chamara, para ela, a atenção do companheiro. Parecia o mais idoso dos dois, e, até o de mais suave olhar... "

– Boa tarde. .........................

Assis Esperança. Romance "Servidão"

 
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