– Se a
gente fosse amanhã à feira de Santo Amaro, Leonor?
Eu
gostava.
O
alvitre era do Chico, Leonor perdia-se, ainda, no seu cismar de medo.
"Um
filho
de qualquer daqueles homens..." Estremeceu e aceitou, sem pensar, a
sugestão.
Essa
ou qualquer outra, igualmente a serviam.
–
Podemos ir. Levaríamos merenda. Amanhã falamos.
Já
temia aborrecer-se. Acontecera muita vez botar-se até Santo Amaro, para
se distrair, e amofinar-se, se não com os modos desdenhosos dos
feirantes quando ela se interessava pelos preços dos trapos e utensílios
de casa, pela perseguição e dichotes de velhos e moços. De a verem
pobremente vestida, estivesse ela no adro da capela a presenciar os
namorelhos ou passeasse por entre as barracas, certo e sabido era que a
poderiam olhar, e olhavam-na muito, mas nunca se lhe dirigiam corteses e
com boas intenções, os rapazes bem trajados e distintos. Agora, podia
apresentar-se tão bem, se não melhor, que as filhas dos lavradores, "mas
valeria a pena?".
Dos
feirantes e frequentadores do mercado aberto de Estarreja, já ela, em
tempo competente, tirara a desforra. "Sempre embirrara com eles por não
lhe responderem a sério quando lhes perguntava o preço dum produto ou
dos objectos de adorno ou uso de casa, mas, muito principalmente,
detestara as senhoras pelos seus trejeitos de enjoadas e desdenhosas,
torcendo o nariz como se tudo cheirasse mal, e modos e maneiras de
afastarem toda a gente para só elas passarem, quer dobrando os braços e
espetando os cotovelos, quer mandando as criadas à frente a abrirem
caminho.
Sentenciosas, ralhavam com os cachopos se eles levantavam pó quando
corriam uns atrás dos outros, e censuravam-nos perguntando por que não
lhes lavava, a mãe, a cara, se, lambuzados, se detinham à beira delas,
olhando-as, espantados de lhes verem os lábios muito vermelhos e as
unhas muito compridas, de "diabo e encarnadas". Ela, num dos primeiros
domingos da estadia em casa da madrinha, vestira-se a primor e também a
primor penteada, calçando sapatos de tacões muitos altos, do modelo
daqueles que tão importantes tornavam as mulheres ricas, e com Maria
Pata em funções de escudeiro, massacrara a paciência dos feirantes e
erguera insolentemente o rosto para afrontar os / 26 / olhares das
senhoras que a viam afagar teimosamente os rapazelhos de mais miserável
aspecto".
"Caminhada para mais de duas horas e sem qualquer interesse ou novidade,
tanta vez ela calcorreara a estrada e todos os atalhos, valeria o
esforço?" – pergunta, a si própria, no dia seguinte. Manhã sem véus de
neblina, pinheiros em fila, espectrais, prolongando ou afilando cimos de
montes, tornavam ainda mais sinuoso o recorte das elevações do terreno;
sobre a aldeia toda, caíra a quietação dos desertos. Um portão bateu,
alguém passou na rua. Depois, durante horas e horas, nada boliu. E ao
dobrar do meio-dia, primeiro a medo, não fossem eles provocar a cólera
da irmã, tão misteriosos ou desconcertantes sempre lhes pareciam os
castigos dos adultos, que os mais novos dos irmãos a custo se aventuram
a insistir:
–
Então, Leonor, a gente sempre vai à feira?
O
rancho era apenas de quatro, mas a idades, entre eles diferiam tanto,
que Leonor teria de os seleccionar. – Por vigilante, o Chico ficaria com
o mais novo, a quem a caminhada estafaria, se o levassem; a ela,
acompanhá-la-iam o de seis e o de nove anos. – Chico lamuriou. O ofício
de ama-seca fartara-o naqueles três últimos meses. – Leonor ameaçou-o: –
Deixo de ser tua amiga, se não me fizeres a vontade. Conhecia aqueles
arremessos do agastamento de subordinar as horas dos folguedos de
infância ao encargo de cuidar, vigia e tratar dos irmãos, mas, à falta
de outro incentivo, apeteceu, nesse momento, experimentar a ascendência
de irmã mais velha. Abalou.
Durante uma parte do caminho, relembrou as suas cóleras de cachopa
contra todos eles. "Um em cada ano, os lapsos de idade entre os
sobreviventes, preenchera-os a morte. Por cuidados únicos, mal nasciam,
a colherita de vinho maduro, para enrijar; se adoeciam dos olhos, o
lavar cuidadoso da cara nas pias onde o gado bebia, e aí vão eles, ao
Deus-dará, pela vida fora. Má alimentação, – enterites, esclarecera o
padrinho, – frios: – broncopneumonias, – mirravam-nos, e, por medicação,
que dinheiro não avezavam para médico e farmácia, as receitas, conselhos
e mezinhas de bruxas e curandeiros. De dezasseis, seis ainda resistiam.
Por quanto tempo? E para que futuro?"
A
estrada animara-se. Ultrapassaram Estarreja; ultrapassaram, sem se
deter, o cruzeiro de Beduído. Quando chegaram ao largo de entrada da
feira, pejavam um vasto terreiro, à esquerda, carros e carretas de
transporte, animais para venda e homens de negócios, bulhentos.
Tomou-lhes o passo uma camioneta de passageiros. Mais homens. Alguns
deles, horas depois, amesendados em barracas de comes e / 27 / bebes,
bateriam moedas que pagassem a despesa de cinco tostões de arroz e
quinze de vinho: "– Venha o troco... "
Sempre
mais homens. Descem da camioneta, apressados, como se alguém os
esperasse, e ninguém os rodeia; dois rapazes. Usam, ambos, gravatas de
preço e colarinho. Um deles fita Leonor insistentemente e
insistentemente reclama a atenção do outro. "Estúpido! Não é
mal-parecido; a gravata é bonita e o olhar não tem a insolência de
muitos senhores da Vila quando julgam que todo-o-mundo é seu". Desvia os
olhos, não vá parecer lisonjeada pela cortesia, e mete, até, por caminho
oposto àquele que lhe parece que eles escolheram. Não a seguem. "Ainda
bem! Desagradava-lhe levar espantalhos atrás de si. Podia muito bem
tratar-se de um rapaz da cidade e ela não servia nem de entretém de
vadios nem estava disposta a que fizessem pouco dela. Esperava, isso
esperava, alguém daquele mesmo porte, mas não se julgasse que não lhe
diria, logo às primeiras falas, das suas condições de filha de gente
humilde".
Enviesou para a capela. "Não lhe interessava presenciar os namorelhos de
quem quer que fosse, mas talvez... Se voltasse a encontrá-lo, sempre
quereria ver a atitude dele, do número um, daquele que chamara, para
ela, a atenção do companheiro. Parecia o mais idoso dos dois, e, até o
de mais suave olhar... "
– Boa
tarde. .........................
Assis
Esperança. Romance "Servidão" |