O
sangue da serra é que pouco teria contribuído para alentar as veias da
gente do Baixo Vouga. Porque é sangue de peões, e os mareantes é que se
apossaram naturalmente das praias do Baixo Vouga, e entre mareantes e
peões o consórcio é difícil, uma excepção; a tendência a estremarem -se
e a fecharem -se, cada qual na sua casta, é tenacíssima. Na sua casta e
na sua civilização – porque aqui, como em todo o mundo, os mareantes
criaram civilizações urbanas e os peões criaram civilizações rurais.
Quando
houvermos de distinguir as raças pelos caracteres que a profissão impõe
aos homens, a primeira das grandes divisões a estabelecer será talvez
esta entre mareantes e peões, entre o braço e a asa, e a enxada e o
remo. A vela e o bordão constituirão então as duas armas com que o homem
se aventura à conquista da terra, – e também os dois símbolos religiosos
das suas aspirações capitais. O bordão enraíza e retarda; a vela acelera
e arrebata: e cada qual terá criado sua espécie étnica, pouco menos de
irredutível. A vela criou o mareante, habituado a longas horas de
inércia, mercante, fazendo do comércio o ganha-pão, expansivo, palrador
e comunicativo como convém a seu mister de permutador de bens; e até lhe
deu o andar singular, com seu ritmo inconfundível, que fez dizer a um
grande ilustre romancista, que também foi marinheiro, que o navegador
nunca sente terra firme debaixo dos pés. Facilmente dissipador e
pródigo, porque vai buscar os bens onde outros os criam, e o barco lhe
alarga o mundo e torna inesgotáveis as provisões, o mareante é
cosmopolita e versátil, intuitivamente partilhando do carácter de todas
as raças e de todas as propensões, alternando-as e conjugando-as em uma
pronta simpatia, desprendido de todas as relações constantes. E o bordão
criou o caminheiro, deu-lhe apenas um apoio exíguo e frágil para lhe
amparar os passos lentos, todos movidos por seu esforço; e apressou a
fadiga que o tenta a quedar-se e o induz na vida sedentária, pedindo o
sustento aos quatro palmos de terra que os seus braços podem cavar,
avaro porque não podendo ir longe não tem mais onde matar a fome senão
no retalho do chão sobre que se curva, tímido, calado por disciplina dos
dilatados silêncios a que a sua condição o obriga, desconfiando do
vizinho, que raro lhe aparece porque por sua vez é prisioneiro da terra
como ele, suspeitando de todas as amizades de passagem, particularista,
obedecendo comovido à voz do campanário, aferrado a um sistema
/ 8 /
rígido de relações invariáveis. Para o mareante a vida é um fenómeno de
expansão e um facto da aventura descuidada; para o peão a vida é
concentração e acumulação, e um facto de zelo aturado, previdência e
prudência.
Ora os
povos do Baixo Vouga são mareantes, ou filhos próximos de mareantes.
Esta é
a sua feição capital. Nos seus hábitos e modos actuais são manifestos os
sinais da origem mareante.
Jaime
Magalhães Lima, Os Povos do Baixo-Vouga
...porque temo
Ser
esta feira de maus compradores,
Porque
agora os mais sabedores
Fazem
as compras na feira do Demo,
E os
mesmos diabos são seus correctores.
Gil Vicente – Auto da Feira
|