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Sérgio Paulo Silva, Salreu, uma aldeia em papel de arroz, 1ª ed., Estarreja, Outubro 2010, 56 pp.

Anexo

As mulheres do meu país

de Maria Lamas

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Trabalhadeira, viva, com certo desembaraço nos modos e nas atitudes da vida, este tipo de mulher do campo distingue-se de todos os outros, reflectindo as condições da sua existência, das particularidades agrícolas e do próprio ambiente natural.

Tomando como referência o concelho de Estarreja, porque ali se encontram, bem nítidos, os aspectos marcantes da actividade e costumes da mulher do povo, diremos que são variadíssimas as ocupações femininas - todas aquelas que surgem, com carácter constante ou eventual, seja no amanho de uma casa agrícola, grande ou pequena, seja no tráfego dos cais, onde terminam os esteiras e onde há sempre grande movimento de mercanteis e moliceiros. Ali descarregam o moliço, o sal e tudo o mais que seja preciso, à cabeça, como é geral em todo o País.

Também há mulheres a trabalhar na reparação de estradas e , para os lados de Avanca, carreteiras de leite. As fábricas de lacticínios e curtumes empregam já hoje numerosas mulheres, que vão constituindo, cada vez mais definidamente, um tipo de transição entre a camponesa e a operaria.

A jornaleira de Canelas, concelho de Estarreja, é apontada como das mais activas e empreendedoras, superando o trabalho do homem, no amanho da horta e em tudo o mais a que se dedica. Ao contrário do que sucede nas outras freguesias, a percentagem de analfabetas é, em Canelas, muito baixa, o que influi notoriamente, e com grandes vantagens, na vida prática e na mentalidade feminina.

A condução de carroças, puxadas por bois, é feita, em grande / 52 / parte, pelas camponesas, em toda esta zona da Beira Litoral, onde a ausência do homem – embarcado ou emigrante – faz acumular as tarefas da mulher.

A grande faina é, porém, a monda e a ceifa do arroz, tanto no concelho de Estarreja como nos de Aveiro, Albergaria-a-Velha e avaro As "marinhas de arroz" estendem-se a perder de vista, cortadas pelos esteiras e pelas valachas ou marachas – pequenos muros que atravessam os arrozais em vários sentidos, dando passagem firme a quem os quiser percorrer. A monda do arroz é dos trabalhos mais custosos e prejudiciais para a saúde, de quantos a camponesa faz, tanto nesta zona de A veiro, como nas outras mais para o Sul, da Figueira da Foz a Coruche, Águas de Moura e Ribeira da Marateca.

Nessa época os terrenos estão totalmente inundados, e a seara, ainda pouco desenvolvida, requer especiais cautelas, para não sofrer estragos. É assim em todos os arrozais, mas, pela natureza do solo, as "marinhas" da região de A veiro excedem ainda as outras nas péssimas condições de trabalho. É ali que existem as "marinhas rotas" – terreno alagadiço, ou antes, pantanoso, onde as mulheres trabalham metidas no lodo até meio da coxa. Costumam, por isso, formar uma espécie de calções, arregaçando as saias até o mais acima possível. Quando largam a sua insana tarefa têm as pernas entorpecidas e cobertas de viscosidades, que lhes provocam, frequentemente, irritações cutâneas e até infecções graves.

De uma forma geral, porém, a cultura do arroz é sempre / 53 / extraordinariamente penosa para a mulher, pois é ela, exclusivamente, quem faz os piores trabalhos: mondar e ceifar. Principalmente durante a monda, mesmo nas regiões mais favoráveis, as mondadeiras são forçadas a andar o dia inteiro com a água até ao joelho e, nalguns sítios, quase até ao ventre. Nessa água lodacenta existem não só quantidades incalculáveis de mosquitos, como sanguessugas, pequeníssimas mas terríveis, que se agarram à pele e constituem também um perigo para a saúde. Para se defenderem, as mondadeiras usam canos (meias sem pés). No entanto, esta precaução não é, de forma alguma, eficaz.

As ceifas fazem-se em circunstâncias um pouco mais atenuadas, nos sítios onde a água desce, mas, ainda assim, constituem trabalho dos mais ímprobos.

No concelho de Estarreja dizem maltas, referindo-se aos ranchos de mulheres que vêm, de várias aldeias da região, fazer a monda e a ceifa do arroz. Quem se encarrega de contratar a malta é a contratadeira ou patroa. Ela é a intermediária e faz todas as combinações com o patrão e com as jornaleiras. Trata de tudo: estabelece as jornas, marca o local e a distribuição do trabalho. Também é ela quem paga, directamente, às mondadeiras e ceifeiras.

Os salários são fixados com base no preço do milho, por consequência sujeitos a oscilações, mas sempre baixíssimos, cerca de metade dos do homem, nos trabalhos agrícolas.

Doze a quinze escudos, a seco, de sol a sol, é considerado um bom ganho, para a mondadeira ou ceifeira do arroz.
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Se vão para marinhas distantes, dormem num palheiro - barracão sem quaisquer condições para habitação humana, mesmo transitória - onde se recolhem também as alfaias agrícolas e o gado. Se ficam relativamente perto, vão dormir a casa, o que, na melhor das hipóteses, representa uma caminhada de alguns quilómetros. À noite, quando regressam, em grupo, costumam cantar. Sempre é a maneira de esquecer a fadiga e achar o caminho menos longo...

...Os meses de Inverno são sempre os mais difíceis de vencer, por falta de trabalho. Grandes são as privações que as jornaleiras passam nesse tempo. Muitas abalam, então, para a "vida de servir", para a qual não têm a menor preparação e que representa para elas uma prisão, um exílio...

Por isso, algumas preferem fazer contratos especiais com os proprietários, ganhando menos durante os grandes trabalhos agrícolas da Primavera e do Verão, com a condição de lhes darem também alguns dias no Inverno.

(Estas palavras de Maria Lamas, retiradas da obra citada, foram escritas na década de 1940.)
 

 
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