A Fábrica do Estrangeiro
«Em 1776 chegou ao
Furadouro um individuo de nome Jean Pierre Mijaule, natural de Languedoc,
acompanhado de alguns operarios catalães, fundando ali um armazem ou
fabrica em que começou a recolher e a conservar sardinha pelo processo
ainda hoje usado pelos negociantes do genero e que consiste, como é
sabido, em recolhel-a em dornas ou tinas, d' antemão munidas de agua e
sal ou salmoura, onde ella se conserva durante mezes e até annos sem se
estragar. Para que o seu segredo se não divulgasse, o francez recolhia a
sardinha e encerrava-se com os operarios na fabrica, não consentindo que pessoa alguma ali penetrasse. Da
sardinha que sahia, comprava unicamente a que sobrava da exportação
diaria, aquella que os negociantes ou mercantis não podiam levantar da
praia e que os pescadores estavam acostumados a vender, quando esse facto se dava, para estrumação das terras circumvisinhas. Isto equivale a dizer que a
adquiria por um infimo preço, quasi de graça. Em seguida lançava-a à
salmoura e ahi a conservava até o mar embravecer ou se fechar por
completo e só então a vendia ou exportava para os grandes centros
consumidores, auferindo, como é fácil de concluir, lucros enormes.
Os pescadores viram desde logo a utilidade que lhes adviria do
conhecimento do processo; mas o francez e os catalães afferavam-se ao segredo e não era possível
fazel-os falar sobre o caso. Ás interrogações que lhes dirigiam, respondiam com o silencio e fechavam-se como um sepulchro
impenetravel. (...)
Um dia, porém, um dos pescadores conseguiu subir cautelosamente ao
telhado da fabrica no momento em que laborava e, fisgando a vista atravez do orifício d'uma telha, imperceptivelmente levantada, tudo viu e
compreendeu n'um relance, descendo para ir contar alegremente aos seus
companheiros de pesca a descoberta que acabava de fazer!
Estava finalmente desvendado o segredo do francez. O seu processo dentro em breve tornou-se conhecido e passou
a ser usado, não só pelos pescadores do Furadouro, mas também pelos das
outras costas de pesca, onde a notícia, como é fácil imaginar, chegou
rapidamente.
D'ahi resultou a necessidade de ficarem n'essas costas durante alguns mezes de Inverno e até mesmo durante todo elle,
as familias que na safra piscatoria recolhiam sardinha ás dornas para
vender quando o mar se fechasse. É, pois, de então para cá, que n'essas costas, incluindo, portanto, a de d'Espinho, começou a haver população
permanente.»
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Puxando
os panos para bordo. Foto do Eng.º Rocha Soares. |
Estas sardinhas salgadas foram, durante longos anos, o alimento
possível de muitas pessoas, de muitas famílias. O Malhadinhas, do
Aquilino, vinha-as buscar de burro a Aveiro, vendendo-as depois aos serranos da Lapa. Eu comi-as na infância, como comi sardinhas fritas, conservadas em escabeche,
porque era a maneira de conservar o alimento e agora, todos os anos, com
alguns amigos que também guardaram a memória desses sabores, mato
saudades comendo-as com bom azeite, uns nabos, batatas e couves onde a
geada já meteu o dente.
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Redes a secar e a
remendar.. Fotografia de Américo Carvalho da Silva, in "Aveiro
e Cultura". |
Preparando a viagem seguinte. Foto Guedes. |
No areaI os trabalhos prosseguiam. Havia sempre coisas para fazer:
cordas para secar, redes para consertar... Tudo tinha que estar a postos
para voltar quando soasse o búzio ou a palavra corresse. Às vezes o
barco tinha pouco tempo para respirar; outras, era puxado para o
resguardo das dunas e lá ficava dias e dias, fitando a má catadura do mar
e a aspereza da nortada que fustigava a praia.
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O tempo da fartura.
Fotógrafo não indicado. |
Gigantes abrigados na avenida onde hoje está a Venpor. Fotógrafo não
indicado. |
Em terra ou no mar, o barco era majestoso. Raul Brandão fala assim do
seu desenho: «Como não há porto nem abrigo e a embarcação tem de passar
logo do areal para a onda que escachôa, atravessando a arrebentação para
sair ao largo ou para regressar à terra, era necessário oferecer à onda
a menor resistência e saltar-lhe no dorso:
–
por isso ergueu a proa. E
como a dança das ondas se sucede durante longos minutos, era forçoso
também que, mal assentasse na água, lhe andasse ao de cima:
– e a popa
fugiu-lhe para o céu. O barco tem exactamente o feitio côncavo do espaço
que vai de vaga a vaga, com um pouco de espuma figurada nas duas
extremidades.» (Os Pescadores).
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Henrique Ferreira da Costa (Henrique Lavoura). In: Aveiro, Ria,
mar, terra e Gente |
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Praia
do Monte Branco, onde um gigante teve o seu fim. Fotógrafo não
indicado. |
Diz o escritor da Foz que eram construídos na Lagoa, mas a sua crónica
insidia na Praia de Mira. Os nossos tiveram a mão dos Raimundos, da
Murtosa, de Manuel Tavares mas sobretudo do Mestre Henrique Ferreira da
Costa, Henrique Lavoura, como era conhecido, de Pardilhó. No seu estaleiro foram construídos todos os que conheceram o areal da Torreira na segunda metade do século passado e de que restam profusas
imagens. A sua casa, onde também se situava o estaleiro, ostenta,
orgulhosamente, azulejos alusivos à sua arte. Alguns dos seus barcos
conheceram, no nosso Museu da Marinha e no estrangeiro, o resguardo de
museus, outros... De um me lembro ter sido adaptado a bar, na praia do
Monte Branco, onde gastou a tristeza da velhice antes de naufragar no
tempo. Na praia da Torreira, Murtosa, não ficou nenhum...
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Desaparecidos os bois,
os pescadores da Torreira (sobretudo as mulheres) carregavam o
penedo de Sísifo. Fotos do Autor. |
Escassez de peixe, receitas magras, custos, salários de homens e de
gado, emigração... enfim, tudo se foi conjugando para a extinção da arte
xávega na nossa praia. A teimosia dos pescadores e das peixeiras ainda
inventou forças para resistir ao que o tempo tinha sentenciado. Fizeram
barcos mais pequenos, já não de quatro remos mas de dois, de muito menor
dimensão, diminuíram o comprimento de cordas e redes, e a força dos
braços conjugou-se para preencher o desaparecimento dos bois que não
mais enterrariam os seus cascos na areia. Mas o esforço era, em tudo,
demasiado, e a corda partiu-se definitivamente, afundando o sonho. Honra
aos que por vezes na vida nadam contra o cardume. Soçobram com
facilidade? Mas a vida não é dos que sonham o largo oceano e nem coragem
têm para molhar os pés no mar de Agosto mas antes dos que ousam. Puxando
as redes, como eles, retrocederam no tempo. Basta olhar bem os azulejos
romanos... Os tubarões que se multiplicaram em terra, esperam sempre para
atacar, vorazmente, todos os sonhos que sempre esfrangalham.
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A
chegada da rede ao areal. Imagens obtidas pelo fotógrafo da equipa
cinematográfica de Claude Rives, que, em 1985, produziu um filme
acerca da Ria de Aveiro. In "Aveiro
e Cultura". |
Enquanto durou, a arte xávega galvanizou, pouco ou muito, toda a
gente. Ninguém lhe foi indiferente. Anónimos veraneantes, que
espontaneamente ajudavam, gente de perto ou de longe, pessoas de
qualquer idade. Enfeitiçou artistas plásticos, cineastas, fotógrafos,
artesãos... Graças a todos eles se preservou a memória de tantos, tantos
anos, se contrariou a fugidia areia da ampulheta. Qualquer pessoa pode
aceder ao precioso arquivo fotográfico da Foto Guedes; à preciosidade
que é a colecção "Carvalhinho", divulgado pelo Aveiro e Cultura, numa
qualquer parede nos surge uma pintura, nas bibliotecas um livro com
perfume de maresia espreita-nos...
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A Câmara Municipal de Ovar adquiriu o filme
Mudar de Vida, cujas cenas foram filmadas ao vivo na praia do Furadouro
e vende cópias por preço acessível; outro filme com particular
interesse, é o do Prof. Ernesto Veiga de Oliveira, a cores, filmado na
Torreira, em 1970, no sítio onde hoje está o paredão (que então, claro,
não existia). Adquiri ao Museu de Gottingen, na Alemanha, uma cópia que
ofereci ao Museu Marítimo de Ílhavo, museu onde se podem encontrar
outras coisas desta aventura maravilhosa. |
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O saudoso artesão
Domingos da Russa exibe a sua obra. Foto gentilmente cedida pela
família. |
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Nos anos em que decorria a minha infância, veio para Estarreja, em
missão de serviço para o então Amoníaco Português, o Engenheiro Rocha
Soares, que foi sensível à faina e captou belas imagens que aqui também
se divulgam, para memória. E é provável que, com o correr do tempo, as areias
revelem, como o fizerem no Egipto, outras memórias das pegadas do Homem
no seu caminhar. O que vos entrego não é mais do que a minha lembrança, a lembrança do meu caminhar na areia
onde o mar, entretanto, há muito apagou os sinais dos meus passos.
Resta apenas acrescentar
que a pesca com barco a motor e o uso de tractores para recolha das
redes tem para mim o mesmo valor dum moliceiro movido por motor, sem
mastro, de proa amputada, com mais bóias e coletes que pulgas brancas
num palminho de areia... |