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Sérgio Paulo Silva, Já caiu o pó sobre as giestas, 1ª ed., Estarreja, 2006, 16 págs.

 

Num verão posterior desafiei um cunhado meu para ir ver o encerro da Lageosa, mas avisei-o que ia apenas ver a entrada na praça (a festa, a nossa festa, tem uma centopeia de pormenores, e quem a quiser apreciar ver­dadeiramente tem que lhe procurar as diversas facetas, olhá-la de muitos ângulos e acabará por andar às voltas da sua luz como as nínfulas nas noites de escancaradas janelas estivais) e regressaria logo a minha casa – 250 Kms para lá, outros tantos para cá... – porque queria ver os cavaleiros da guia e para mais não dava a minha disponibilidade de tempo. Simpaticamente, esse meu cunhado acedeu a fazer-me companhia, munido da sua máquina de filmar. Embora tivéssemos chegado cedo, deparámos com grande dificuldade em arranjar poleiro, já que o recinto enxameava ao sol; e com a espera tínhamos que ir encolhendo, porque há, tem que haver, sempre lugar para mais um. Finalmente, quando o enxame se alvoroçou, fixei os olhos na porta da entrada. Um cavaleiro entrou vertiginosamente e desapareceu pela porta de escape situada perto de nós, enquanto os bois irrompiam... Quanto ao outro cavaleiro (porque na realidade eram dois) foi preciso ver em casa o filme para notar a sua presença e a rapidez com que se esfumou por uma nesga do lado oposto, enquanto os touros refreavam suados e atónitos no improvisado fojo.

Quando cheguei à praça, ainda havia no exterior alguns cavalos que não tinham sido recolhidos e esperavam, enquanto os donos davam dois dedos de conversa. Entrava gente, chegava gente, e lá dentro alguns cabrestos espantados pelas mocas e pelas capas encaminhavam esforçadamente os touros mais resistentes para o curral. Depois, pela inclemência do sol e pelo aglomerado de pessoas, tornou-se exasperante a demora da saída do touro da prova que haveria de se cumprir antes do almoço.

O forcão permanecia encostado sobre um canto como se todas as suas fibras aguardassem também. Desde a época da Páscoa que os seus braços feitos de carvalho e pinho pertenciam aos mordomos. Tinham secado o suficiente para perderem peso, mas manter a resistência que as cordas e os pregos cimentavam no seu desenho singular, onde se iam aconchegar irmãos estreitados como dedos. Encordoar um forcão é também uma arte que requer mestria, porque, na verdade, trata-se de moldar um engenho que terá por fun­ção dominar uma divindade poderosa, violenta: Mitra, Ápis, o Boi, o Touro!

– Ao forcão, rapazes!

E, repentinamente, o forcão ganhou movimento, sopesado pelas mãos da rapaziada. E saiu o touro da prova. Esboçou uma curta corrida, cambiou e atacou a galha esquerda do forcão com uma marrada tão violenta, que por segundos os pés dos moços ficaram suspensos. E insistiu nos ataques, enquanto o rabejador ia guiando a pesada estrutura, evitando os ataques laterais, até que se desinteressou e iniciou a perseguição aos capinhas e aos mais afoitos que se lançavam no terreiro.

Recuou a estrutura e de novo, com a ajuda dos sacrificados cabrestos, o touro da prova foi recolhido. Faziam-se horas de almoço e o calor crestava as escassas sombras.

A caminho do almoço, ainda com a imagem do derrote inicial na retina, relembrei as palavras de abertura do livro do Dr. Francisco Manso: Eu canto a mocidade, a destreza, o dinamismo, a valentia – O Dr. Framar sabia bem do que falava...

Em dia de capeia não há limites para nada, tudo é excessivo. A comida e a bebida, o convívio, a partilha da identidade, o alvoroço da amizade, tudo é transbordante. E eu fui sempre arrebatado por esta onda avassaladora, fui sempre recebido como se pertencesse às casas onde entrava, envolvido em libações ou conversas como se também eu fosse daqueles sítios. Gardel dizia, com muita graça, que tinha nascido em Buenos Aires aos dois anos de idade. Eu, que não fui tão precoce, sinto que também nasci, embora já na idade adulta, algures na raia sabugalense.

Partilhei a mesa de quem por familiar me tomou, gastando-se o tempo no pavio do entusiasmo, até que se fizeram horas de voltar à praça que regurgitava de pessoas de todas as idades, de todos os sítios, de além fronteira. E perguntei-me sobre os porquês da paixão comum e do atavismo de toda aquela gente. Ora, quando se estudam as antigas rotas da transumância das vacas avilenhas, quando se apreciam as gravuras do vale do Côa ou se escutam simples conversas de pastores, percebe-se que há coisas que estão no sangue, que foram tecidas como Penélope tecia, na longa imensidão dos anos, até se tornarem numa carga genética impossível de disfarçar ou de conter.

Adiantava-se a tarde e recomeçava a festa com outro dos momentos mais simbólicos: o desfile dos mordomos, encabeçados pelo tamborileiro e o pedido da praça.

Na juventude, li um texto de Júlio Dantas intitulado O Pequeno Tambor que agora relembro. Não consigo deixar de encontrar neste ritual similitudes militares, resquícios doutros tempos, diluídos e transfigurados. A imagem primeira que me assalta, por deformação, por erro talvez, quando assisto ao cortejo, ao desfile dos rapazes com a espada e a bandeira, quando os vejo evoluir pela praça em formação com as coloridas alabardas, marchando na cadência do tamborileiro, vêm-me à mente os pequenos tambores das guerras napoleónicas. Há duzentos anos, que agora se vão cumprir, que essa catástrofe se abateu sobre nós. E o Sabugal e a Aldeia do Bispo foram, como é sabido, terras mártires. Não haverá na encenação da festa um eco desses tempos?

As alabardas, agora elaboradas, garridas, eram há alguns anos pobres bandeiras de milho. Sobrava o simbolismo...

O pedido da praça a pessoa de relevo e influência na hierarquia local é também uma expressão militar ou religiosa, de respeito e submissão.

Autorizado o ofício, a peleia, prosseguia a festa. Agora com temperatura mais amena, mais propícia, o forcão voltava a suportar as investidas dos touros, uns com mais casta, outros com menos, mas todos pondo à prova a valentia daquela gente, espalhando emoções pelas bancadas e burladeros, semeando o perigo no arraial da anarquia em que a festa sempre se transforma.

Após um intervalo, foi lançada à praça uma bezerrinha para iniciação dos mais novos. Rapazes e raparigas tiveram os seus instantes de glória, de desquite e de folia. Este foi para mim não o momento mais inebriante, mas o mais comovente da capeia. A bezerra reagia com o que tinha no sangue e investia marrando e derrotando nos miúdos que inventavam, na inépcia e na fraqueza, vontade e coragem. Na grandeza da festa, esta brincadeira de crianças com a bezerra poderia parecer um momento de palha. Contudo, os cachorrinhos que hoje se atrevem às imediações do covil serão os predadores de amanhã. As moçoilas, essas serão as mães dos que um dia acudirão quando se grite pela raia «Ao forcão, rapazes!» e que estarão, algures entre a multidão, nas bancadas ou numa janela, a viver a angústia de que também se alimentam as capelas.

Um touro mais e a luminosidade da tarde começava a confundir-se com a noite que suavemente ia chegando.

Pelo crepúsculo, pela Avenida Onde Passam os Touros que os carteiros conhecem por Rua das Eiras, passaram os cavaleiros a caminho dos lameiros de lá no desencerro de touros e cabrestos, num tropel triste de fim de festa.

 

 
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