Fui
há tempos à Aldeia do Bispo cear com uns amigos, numa noite fria de
Inverno. Combinámos o encontro dias antes. Eu estaria a pernoitar nos
Fóios, para ir na manhã seguinte a uma batida às raposas em Vale de
Espinho; e teríamos, entretanto, o tempo por nossa conta. Cheguei cedo,
antes da hora marcada, e fui fazendo tempo, caminhando pela aldeia.
Deslizava sossegada a ribeira e, porque a noite estava envolta em névoa
fria, não havia ninguém nas ruas e os cães estariam talvez enovelados
nos seus cardenhos. Fui assim andando ao longo da Avenida Onde Passam os
Touros, que os carteiros conhecem por Rua das Eiras, e os pensamentos
foram escorrendo como as águas. Eu tinha lá estado em Agosto, a convite
de Maria José Manso, a quem devia agradecer a oferta dum livro que tinha
perseguido durante anos, Caçadas aos Javalis, do Dr. Framar, e
que, lendo-o, me fez por momentos companheiro de seu pai, príncipe de
monteiros, o Dr. Francisco Maria Manso.
À hora
a que cheguei já o sol matinal de Agosto dardejava e por toda a aldeia
se iam movimentando pessoas, ocupava-se a praça, acotovelavam-se
fregueses nos cafés. O ar que se respirava pela raia era o ar da festa,
que o sol tornava mais intenso na sua curva ascendente.
Há
muito, por certo que há muito, que os cavaleiros tinham partido para lá
da linha da raia em demanda dos touros. No compasso dos anos para os
lameiros de lá já não vão só os cavaleiros. O entusiasmo arrasta
carrinhas, tractores, motos todo-o-terreno, jipes, uns e outros
maculando o que devia ser um pouco mais sagrado. Talvez que essa gente
um dia ganhe consciência de como está a abandalhar os rituais da festa e
arrepie caminho, deixando o espaço apenas a quem o deve ocupar: homens,
cavalos e touros. Mas, enfim, é o entusiasmo que tudo arrasta e vai
mudando as particularidades da festa.
Ainda
que a Ginestosa ou Fuenteguinaldo se chamem agora Malhadinha, Gameleiro
ou Lameirão, é preciso preservar alguns elos que unam a actualidade ao
passado, é preciso proteger as raízes para que a árvore não estiole e
continue em cada nova estação a dar os seus frutos. Um velho carro de
bois virado ou carregado de toros e franças a fechar um recanto da praça
é ainda a vida da capeia, um elo da corrente que entrelaça o passado com
os novos tempos.
No dia
grande, caminhei pela aldeia, anónimo entre os mais muitos, como se
escutava numa cantiga do Zeca, que como eu iam escolher o melhor sítio
para ver os touros passar para o encerro. Escolhi um canto pertinho da
velha Escola Primária e fui observando. Ao longo da avenida, escondendo
as eiras, em arames ou simplesmente sobre as pedras dos muros baixos,
raminhos de giestas, sebes que qualquer cão ou gato assustado
transporia, recantos onde as pessoas se iam posicionando sem amparo que
se visse; e lembrei-me das imagens do histórico filme do Prof. Ernesto
Veiga de Oliveira feito para o museu de Gottingen, nos Forcalhos. Então,
nesse encerro, já em pleno povo, um touro tresmalhou e entrou nos
quintais. Quando voltou ao caminho pelo desafio dos cavalos, estripou
uma vaca que passava e ameaçou perigosamente quantos o desafiavam
pendurados nos postes ou encarrapitados nos muros, até levar a sua fúria
pelo mesmo caminho num desencerro precoce que os cavaleiros iam guiando.
As
pessoas iam chegando e cada um se amanhava como podia. Os balcões e as
janelas das casas rebentavam pelas costuras e, entretanto, nada se
sabia, nada acontecia. As horas arrastavam-se no vozeario de todos até
que subitamente se espalhou uma agitação contagiante:
– Já
aí vêm! – Já lá vêm!
E os
olhos viraram-se em uníssono para o caminho, lá no alto onde deveriam
aparecer os touros.
Por
entre as giestas e as copas dos pinheiros começavam a ver-se as nuvens
de pó que os cascos levantavam e, logo a seguir, as silhuetas dos
cavaleiros. Depois, depois foi tudo demasiado rápido. Num tropel de
segundos, a avenida foi percorrida pelo frémito dos cascos. Por entre a
gritaria, os três cavaleiros da frente voavam perseguidos pelos touros e
pelos cabrestos numa correria de cambulho, que os cavaleiros da
rectaguarda, com os seus pampilhos e garrochas erguidos, ameaçavam
atropelar.
Quando
passaram os muros da ribeira, já a avenida formigava a caminho da praça.
Um fumo rabiante matraqueou no azul intenso a boa nova: os touros
estavam encerrados.
Misturado na multidão, recordei novamente o filme do etnólogo. No
encerro, um dos cavaleiros dianteiros não teve mestria nem valentia para
o momento e abandonou o cavalo à sua sorte. As imagens mostram o cavalo
desnorteado, correndo sem cavaleiro em volta da praça, buscando uma
saída que não havia, misturado com os touros que, só por qualquer
estranha felicidade, não o estriparam. A seriedade do momento não é, de
facto, para pavões nem para aprendizes, mas apenas para os que dominam
cabalmente as tais sossegadas pressas.
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