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Sérgio Paulo Silva, Já caiu o pó sobre as giestas, 1ª ed., Estarreja, 2006, 16 págs.


Fui há tempos à Aldeia do Bispo cear com uns amigos, numa noite fria de Inverno. Combinámos o encontro dias antes. Eu estaria a pernoitar nos Fóios, para ir na manhã seguinte a uma batida às raposas em Vale de Espinho; e teríamos, entretanto, o tempo por nossa conta. Cheguei cedo, antes da hora marcada, e fui fazendo tempo, caminhando pela aldeia. Deslizava sossegada a ribeira e, porque a noite estava envolta em névoa fria, não havia ninguém nas ruas e os cães estariam talvez enovelados nos seus cardenhos. Fui assim andando ao longo da Avenida Onde Passam os Touros, que os carteiros conhecem por Rua das Eiras, e os pensamentos foram escorrendo como as águas. Eu tinha lá estado em Agosto, a convite de Maria José Manso, a quem devia agradecer a oferta dum livro que tinha perseguido durante anos, Caçadas aos Javalis, do Dr. Framar, e que, lendo-o, me fez por momentos companheiro de seu pai, príncipe de monteiros, o Dr. Francisco Maria Manso.

À hora a que cheguei já o sol matinal de Agosto dardejava e por toda a aldeia se iam movimentando pessoas, ocupava-se a praça, acotovelavam-se fregueses nos cafés. O ar que se respirava pela raia era o ar da festa, que o sol tornava mais intenso na sua curva ascendente.

Há muito, por certo que há muito, que os cavaleiros tinham partido para lá da linha da raia em demanda dos touros. No compasso dos anos para os lameiros de lá já não vão só os cavaleiros. O entusiasmo arrasta carrinhas, tractores, motos todo-o-terreno, jipes, uns e outros maculando o que devia ser um pouco mais sagrado. Talvez que essa gente um dia ganhe consciência de como está a abandalhar os rituais da festa e arrepie caminho, deixando o espaço apenas a quem o deve ocupar: homens, cavalos e touros. Mas, enfim, é o entusiasmo que tudo arrasta e vai mudando as particularidades da festa.

Ainda que a Ginestosa ou Fuenteguinaldo se chamem agora Malhadinha, Gameleiro ou Lameirão, é preciso preservar alguns elos que unam a actualidade ao passado, é preciso proteger as raízes para que a árvore não estiole e continue em cada nova estação a dar os seus frutos. Um velho carro de bois virado ou carregado de toros e franças a fechar um recanto da praça é ainda a vida da capeia, um elo da corrente que entrelaça o passado com os novos tempos.

No dia grande, caminhei pela aldeia, anónimo entre os mais muitos, como se escutava numa cantiga do Zeca, que como eu iam escolher o melhor sítio para ver os touros passar para o encerro. Escolhi um canto pertinho da velha Escola Primária e fui observando. Ao longo da avenida, escondendo as eiras, em arames ou simplesmente sobre as pedras dos muros baixos, raminhos de giestas, sebes que qualquer cão ou gato assustado transporia, recantos onde as pessoas se iam posicionando sem amparo que se visse; e lembrei-me das imagens do histórico filme do Prof. Ernesto Veiga de Oliveira feito para o museu de Gottingen, nos Forcalhos. Então, nesse encerro, já em pleno povo, um touro tresmalhou e entrou nos quintais. Quando voltou ao caminho pelo desafio dos cavalos, estripou uma vaca que passava e ameaçou perigosamente quantos o desafiavam pendurados nos postes ou encarrapitados nos muros, até levar a sua fúria pelo mesmo caminho num desencerro precoce que os cavaleiros iam guiando.

As pessoas iam chegando e cada um se amanhava como podia. Os balcões e as janelas das casas rebentavam pelas costuras e, entretanto, nada se sabia, nada acontecia. As horas arrastavam-se no vozeario de todos até que subitamente se espalhou uma agitação contagiante:

– Já aí vêm! – Já lá vêm!

E os olhos viraram-se em uníssono para o caminho, lá no alto onde deveriam aparecer os touros.

Por entre as giestas e as copas dos pinheiros começavam a ver-se as nuvens de pó que os cascos levantavam e, logo a seguir, as silhuetas dos cavaleiros. Depois, depois foi tudo demasiado rápido. Num tropel de segundos, a avenida foi percorrida pelo frémito dos cascos. Por entre a gritaria, os três cavaleiros da frente voavam perseguidos pelos touros e pelos cabrestos numa correria de cambulho, que os cavaleiros da rectaguarda, com os seus pampilhos e garrochas erguidos, ameaçavam atropelar.

Quando passaram os muros da ribeira, já a avenida formigava a caminho da praça. Um fumo rabiante matraqueou no azul intenso a boa nova: os touros estavam encerrados.

Misturado na multidão, recordei novamente o filme do etnólogo. No encerro, um dos cavaleiros dianteiros não teve mestria nem valentia para o momento e abandonou o cavalo à sua sorte. As imagens mostram o cavalo desnorteado, correndo sem cavaleiro em volta da praça, buscando uma saída que não havia, misturado com os touros que, só por qualquer estranha felicidade, não o estriparam. A seriedade do momento não é, de facto, para pavões nem para aprendizes, mas apenas para os que dominam cabalmente as tais sossegadas pressas.

 

 
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