Cabeçalho da página de Sérgio Paulo Silva e hiperligação para a hierarquia superior.

Sérgio Paulo Silva, Espreita aqui, 1ª ed., Estarreja, C.M.E., 2014, 80 pp.

 

De boas intenções está o inferno cheio. Diz-se. E de más nem é bom falar! Mas estão lá também, no quentinho, muito boas almas por coisas que há muito deixaram de ser pecado, embora eu pense que nunca será indultado o vício comezinho de espreitar pelo buraco da fechadura.

Há uns anos deleitei-me a ouvir uma canção de Xico Buarque que, antes de mais, me mostrava como este gesto é universal e, de seguida, me rejuvenescia pecados antigos:

Ai que saudades que eu tenho
Duma travessura
Um futebol de rua
Sair pulando muro
Olhando fechadura
E vendo mulher nua

....................................

É como querer ver Braga por um canudo sem ter que meter a moedinha na racha, nem suportar a impaciência, no multibanco, de quem vem atrás e também quer tirar dinheiro da máquina. Outros olhares, sem condimentos, não têm graça e, mesmo que haja coisas interessantes, passa-se adiante, com total indiferença. Para ver bem, não basta olhar. E espreitando há mais tempêro, observa-se...

Durante muitos anos eu olhei os moliceiros, vi-os na faina quando eram abundantes, mas o meu olhar para as pinturas das proas e das rés era insonso e, como estes quadros flutuantes, para utilizar uma expressão feliz de Clara Sarmento, eram perecíveis, pela sua permanente exposição ao sol, à chuva, à maresia, pela degradação da madeira ou até devido a fricções e pancadas, as pinturas foram-se sucedendo e modificando assim mesmo, como as folhas das árvores ou as pegadas das pessoas no areal, sem que eu as visse verdadeiramente.

Outros, mais atentos, com outra sensibilidade, retiveram-nas e hoje é possível conhecer o que fazia quem, o gosto das épocas, as temáticas religiosa, política, etc. enfim, é possível apreciar e até estabelecer comparações com as pinturas e motivos dos jugos do gado que se usavam na região.

Quando me comecei a interessar pelos painéis, procurei um pintor que tinha granjeado fama pela sua criatividade e qualidade de trabalho: Jacinto Vieira da Silva. Demasiado tarde, porém, porque tinha já falecido, precocemente. Mesmo assim, pude ainda apreciar a sua invulgar paixão pela pintura de moliceiros, paixão que o levou a decorar o interior da sua casa com os motivos florais dos seus barcos.

Jacinto Vieira da Silva pintando uma ré.

Decorações no interior da casa de Jacinto Vieira da Silva.

Entretanto os moliceiros iam aceleradamente desaparecendo da Ria. Nos que iam restando, as pinturas comuns nas décadas de 50 e 60 depressa cederam o passo a temas maliciosos, onde a brejeirice cresceu como junça, e que entusiasmava quem as espreitava. Estes temas, que durante longos anos não tinham sido explorados, depressa arrastaram máquinas de fotografar (entretanto também tornadas vulgares), câmaras de filmar, cativava curiosos de toda a parte para os concursos de painéis com que se procurava manter o lume aceso. Penso que isso se deve à liberdade adquirida após o período de governação do Estado Novo, que cultivava uma mentalidade de sacristia, à libertação que desamarrou o atrevimento e libertou o bizarro e a malícia que sempre fez parte do ser das pessoas da região.

"Com falta de ar não se brinca." A malícia na década de 1960. Fotografia do eng.º Rocha Soares. Década de 1950. Fotografia do escritor Tomaz de Figueiredo.