De boas intenções está o
inferno cheio. Diz-se. E de más nem é bom falar! Mas estão lá também, no
quentinho, muito boas almas por coisas que há muito deixaram de ser
pecado, embora eu pense que nunca será indultado o vício comezinho de
espreitar pelo buraco da fechadura.
Há uns anos deleitei-me a
ouvir uma canção de Xico Buarque que, antes
de mais, me mostrava como este gesto é universal e, de seguida, me
rejuvenescia pecados antigos:
Ai que saudades que eu tenho
Duma travessura
Um futebol de rua
Sair pulando muro
Olhando fechadura
E vendo mulher nua
....................................
É como querer ver Braga por um canudo sem ter que meter a moedinha na
racha, nem suportar a impaciência, no multibanco, de quem vem atrás e
também quer tirar dinheiro da máquina. Outros olhares, sem condimentos,
não têm graça e, mesmo que haja coisas interessantes, passa-se adiante,
com total indiferença. Para ver bem, não basta olhar. E espreitando há
mais tempêro, observa-se...
Durante muitos anos eu olhei os moliceiros, vi-os na faina quando eram abundantes, mas o meu olhar para as pinturas
das proas e das rés era insonso e, como estes quadros flutuantes, para
utilizar uma expressão feliz de Clara Sarmento, eram perecíveis, pela
sua permanente exposição ao sol, à chuva, à maresia, pela degradação da
madeira ou até devido a fricções e pancadas, as pinturas foram-se
sucedendo e modificando assim mesmo, como as folhas das árvores ou as
pegadas das pessoas no areal, sem que eu as visse verdadeiramente.
Outros, mais atentos, com
outra sensibilidade, retiveram-nas e hoje é possível conhecer o que
fazia quem, o gosto das épocas, as temáticas
– religiosa, política, etc.
– enfim, é possível
apreciar e até estabelecer comparações com as pinturas e motivos dos
jugos do gado que se usavam na região.
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Quando me comecei a
interessar pelos painéis, procurei um pintor que tinha granjeado
fama pela sua criatividade e qualidade de trabalho: Jacinto Vieira
da Silva. Demasiado tarde, porém, porque tinha já falecido,
precocemente. Mesmo assim, pude ainda apreciar a sua invulgar paixão
pela pintura de moliceiros, paixão que o levou a decorar o interior
da sua casa com os motivos florais dos seus barcos. |
Jacinto
Vieira da Silva pintando uma ré. |
Entretanto os moliceiros iam aceleradamente desaparecendo da Ria. Nos
que iam restando, as pinturas comuns nas décadas de 50 e 60 depressa
cederam o passo a temas maliciosos, onde a brejeirice cresceu como junça,
e que entusiasmava quem as espreitava. Estes temas, que durante longos
anos não tinham sido explorados, depressa arrastaram máquinas de
fotografar (entretanto também tornadas vulgares), câmaras de filmar,
cativava curiosos de toda a parte para os concursos de painéis com que
se procurava manter o lume aceso. Penso que isso se deve à liberdade
adquirida após o período de governação do Estado Novo, que cultivava uma
mentalidade de sacristia, à libertação que desamarrou o atrevimento e
libertou o bizarro e a malícia que sempre fez parte do ser das pessoas
da região.
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"Com
falta de ar não se brinca." A malícia na década de 1960. Fotografia
do eng.º Rocha Soares. |
Década de 1950.
Fotografia do escritor Tomaz de Figueiredo. |
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