–
Roubaram o cavalinho vermelho! Roubaram o cavalinho vermelho! – Gritava
congestionado o motorista de longo curso, Carlos Gafanhoto, à porta do
restaurante onde tinha acabado de almoçar.
Os
curiosos começaram a sair precipitadamente rodeando o motorista.
– O
que foi?
– O
que é que aconteceu?
–
Roubaram o cavalinho vermelho. Ai que estou desgraçado!
–
Homem, acalme-se e explique as coisas – aconselhou o dono do restaurante
que não queria barulhos que espantassem a clientela.
Mas
aos poucos as pessoas iam-se juntando, mirones, carriças metediças.
Alguém telefonou para a polícia que apareceu num jipe "para tomar conta
da ocorrência".
O que
se tinha passado, conta-se rapidamente!
O
motorista, Carlos Gafanhoto, tinha saído do Norte com a camioneta cheia
de cavalinhos de pau que se destinavam a um carrossel. Tinha escolhido
aquele restaurante por causa do parque de estacionamento cheio de
árvores. Poderia assim estacionar a camioneta à sombra para proteger a
pintura dos cavalinhos do sol escaldante. Eram doze, ao todo, cada um da
sua cor. Faltava o vermelho. Alguém, enquanto almoçava, o tinha roubado.
Agora, era como ele dizia, "estava desgraçado", teria talvez que pagar
do seu bolso o cavalo. Mas, pior que o prejuízo, era a falta que ele
faria no carrossel. Com que cara é que ia aparecer só com onze na
véspera da abertura da feira?! Haveria crianças que ficariam de fora.
A
polícia não conseguia fazer nada. Procuraram nas imediações, mas em vão.
Não havia pegadas ou vestígios. Os vendedores de melões, que estavam
numas barracas ao longo da estrada, também não tinham visto nada. Alguém
lembrou que talvez tivesse caído da camioneta nalgum solavanco ou curva
mais apertada. Mas não, via-se bem que a corda tinha sido cortada
propositadamente.
– Mas,
assim, sem medo nenhum?!
– Um a
tomar conta, outro a fazer o serviço: foi quadrilha. Toda a gente dava
opiniões.
E
assim, desapareceu o cavalinho vermelho num mistério igualzinho ao do
Rei D. Sebastião.
Carlos
Gafanhoto, cabisbaixo, pôs o motor a trabalhar e arrancou numa fumarada
de tristeza.
A
campainha da escola tocou para a saída e, em poucos minutos, todas as
salas, o pátio e o ringue ficaram desertos.
O
Urbano, o Zé Pirolito, o Sérgio e o Berto iam pela estrada principal,
combinando como haviam de surripiar um melão ou uma melancia. Andavam já
há uma data de dias a pensar nisso, mas nunca tinham coragem, porque
havia sempre gente nas palhotas. As vendedeiras de melões olhavam para
eles como se soubessem tudo o que lhes ia no pensamento. Disfarçavam e
lá iam estrada fora: "amanhã! Vai ser amanhã".
Quando
passaram junto do restaurante, viram a camioneta cheia de cavalinhos
reluzentes, novinhos em folha. Correram cheios de curiosidade e de
desejo. As cigarras, que guizalhavam nas árvores, calaram-se. Tudo ficou
em sossego. Os cavalinhos estavam como se descansassem duma grande
correria que os tivesse deixado suados e exaustos. Brilhavam como uma
romã madura, dessas que fazem crescer água na boca. E o mesmo desejo que
tiveram Adão e Eva no paraíso pela árvore das maçãs encheu-lhes o rosto.
Sentiram olhos nas janelas do restaurante, atrás das árvores, debaixo
das folhas. Parecia que, por cima das cabeças das melancias, havia uma
que era de gente. Na estrada parecia crescer um roncar qualquer.
Hesitaram. As cigarras continuavam caladas. Agora ou nunca! O mais
afoito (na atrapalhação qual seria?) cortou a corda. E, enquanto o diabo
esfregava um olho, desapareceram pelo mato com o cavalinho vermelho.
Fugiam
a corta-mato e tudo atrapalhava: os galhos mais baixos das árvores, as
mochilas, as pedras soltas. Uma lebre, que estava na cama saboreando o
sol morno, saltou-lhes debaixo dos pés, deixando-os com o coração na
boca. Parecia que o som dos próprios passos os perseguia e só respiraram
aliviados quando esconderam o cavalinho num celeiro de arroz há muito
abandonado.
Já era
tarde. Em casa diriam todos que se tinham demorado a ajudar a empurrar
um carro que não pegava. Trancaram a porta do celeiro com pedregulhos e
desapareceram sem coragem para olhar para os carros que passavam.
Durante muitos anos, no tempo do avô do Sérgio, aquele celeiro tinha
tido vida. No verão, era aberto de par em par. O soalho era varrido e
assim ficava exposto ao sol à espera do arroz. Pelas árvores e pelos
telhados mais próximos, os pardais esperavam também.
O
arroz chegava em grandes carroças. Era malhado, passado pela ventaneira,
empilhado no celeiro onde os pardais colhiam então a sua parte. Pela
noite dentro, os ratos colhiam a deles, com pezinhos de lã, orelhitas de
sentinela a qualquer ruído.
Agora,
a ventaneira estava arrumada a um canto. Sobre a moega gretava a velha
sela e os estribos da burra russa, que todos tinham esquecido depois que
fora vendida aos ciganos. Pelas frinchas, o vento empurrava palhas e
poeira e, pelas noites dentro, apenas se ouvia as mós do caruncho nos
barrotes do telhado.
O
Sérgio teve sempre uma secreta paixão pelos cavalos. Quando ouvia o
tropel na estrada vinha sempre a correr para a varanda. Numa terra que
ele não conhecia, tinha visto uma procissão que trazia à frente cavalos
da polícia. Quando passaram perto, conseguiu pôr a mão na garupa de um
deles e nunca mais o esqueceu, como se nos dedos lhe tivesse ficado a
própria pele do animal. No dia em que descobriu a velha sela, ficou tão
feliz como se tivesse descoberto um fabuloso tesouro de piratas.
Empilhou uns caixotes, firmou as esporas com umas pontinhas de arame,
compôs a sela sobre os caixotes e cavalgou horas a fio como um
verdadeiro cowboy pelas pradarias de Wyoming. O imaginário, pela
força da sua verdade, tornava-se real, e o velho celeiro transformou-se
num picadeiro e numa pista donde partir ou chegar era apenas uma questão
de vontade.
As
aranhas, com a sua baba de silêncio, foram transformando o celeiro num
sítio apenas oco. Agora o cavalinho respirava no escuro e a vida voltava
ao celeiro abandonado.
No dia
seguinte, quando tocou para a saída, ardiam todos de impaciência. Cada
um tinha pensado um nome para o cavalinho vermelho.
–
Fandango. – Dizia o Urbano.
–
Mosqueteiro- – Tinha escolhido o Zé Pirolito.
–
Foguete. – Queria o Sérgio.
–
Dominó. – Escolhera o Berto.
Gastaram metade do caminho a discutir sem chegar a acordo. Foram a
sortes e ficou "Dominó". A meio da manhã, no recreio, o Urbano tinha
mostrado o medo que o afligia:
– E se
descobrem que fomos nós?
Mas os
amigos não queriam pensar nisso: as cigarras tinham voltado a cantar nas
árvores da vereda por onde tinham passado. Agora, o Dominó esperava-os
no estábulo.
Arranjaram uma manta velha para não ferir o dorso e ajaezaram-no com a
sela. À-vez-à-vez cada um cavalgou, índio, toureiro, cowboy, até
o Dominó manchar de espuma os freios inventados.
Vivia
feliz o corcel. Durante a noite, as suas orelhas espetadas estavam
atentas a qualquer ruído e esperavam pelos primeiros sons dos pássaros,
na ânsia de novas brincadeiras loucas e heróicas. Tornou-se a estrela
dum estúdio de fotografia à la minuta e outros projectos iam
surgindo, onde o Dominó era sempre o astro. Nesse tempo tão solto, o
verão trouxe uma noite terrível. O vento começou a soprar. Entrava
terriça pelas frinchas da porta e pelos buracos das telhas. O calor era
abafado até sufocar e sentia-se um ar de alcatrão por todo o céu.
Esse
tempo encheu de cinza a felicidade do Dominó, que se lembrou da velha
oficina onde tinha nascido das mãos do Sr. Alípio.
O Sr.
Alípio era um velho ferroviário que ia todas as manhãs, muito cedo, para
uma pequenina estação que ninguém sabia onde ficava, porque ele nunca
falava muito. À tardinha, quando regressava a casa, ia apanhar leitugas
para os coelhos e regar os alfobres das alfaces e das couves galegas.
Depois, mal comia, enfiava-se logo na oficina, que era muito acanhada e
cheia de quanta quinquilharia havia: coisas para concertar, ferramentas,
bocados de ferros, até sapatos velhos, porque o Sr. Alípio aproveitava o
couro para fazer buchas, coisas assim. Com uns óculos fortes, um chapéu
velho na cabeça, martelava, serrava, martelava. Às vezes ouvia-se o
zunido do berbequim e o cheiro da cola ia sempre, sorrateiro, parar a
casa dos vizinhos. A oficina era assim uma espécie de crisálida donde
saíam, depois de terem atravessado a lenta metamorfose, os cavalinhos e
outros bonecos que a D. Brilete, mulher do Sr. Alípio, coloria, nos
sábados de bom tempo, com tintas ciganas e feitios de faiança.
De
tudo isso se recordava muito bem o Dominó, enquanto a ventania
rodopiava. E sentia uma grande nostalgia do pátio onde secou ao sol as
crinas entrançadas, o pátio que tinha muitas sardinheiras e
brincos-de-princesa.
Uma
faísca inundou de pavor o celeiro e o estrondo do trovão varreu o céu.
Começou a chover a potes.
Faltou
a luz. A televisão ficou muda. Dentro da casa do Sérgio ninguém se mexeu
do lugar onde estava, à espera que a luz voltasse. Ouviu-se um estrondo
a esbater-se mais longe e a Milinha começou a chorar.
– Não
tenhas medo – disse o pai – estes barulhos são ali no clube, a arrastar
cadeiras. Devem ter desligado a luz para fazerem qualquer coisa, mas já
a ligam outra vez.
Acendeu o isqueiro e pegou na irmã do Sérgio que soluçava.
No
escuro, o Sérgio ouvia a chuva que caía já mais fraca e pensava no
Dominó, sozinho, no velho celeiro, indefeso como um passarito que
tivesse caído do ninho.
Quando
a luz voltou, a televisão encheu logo a sala. Mas, o cavalinho vermelho,
como estaria? Os outros já tinham deixado de lhe ligar e quase o tinham
estragado, quando lhe quiseram aplicar umas rodas de ferro.
Fingiu
que ia à cozinha beber água e foi aos apalpões pelo carreiro. As ervas
molhavam-lhe as calças e a terra cheirava à chuva. Talvez o Dominó o
tivesse pressentido, porque lhe pareceu ouvir um relincho vigoroso.
Encostou o ouvido à porta: o cavalinho resfolegava baixinho. Quando a
abriu, sentiu a amizade daqueles olhos grandes e das orelhas sentinelas.
–
Tiveste medo?
Abraçou-o pela garupa. Enquanto o temporal se dissipava, conversaram das
coisas que só eles sabiam, da alegria e da tristeza que tinham inventado
juntos.
Dominó
lembrava-se dos outros cavalinhos e do motorista Carlos Gafanhoto. Agora
tinha saudades deles. Como teriam feito o resto da viagem? Que seria
feito deles? Se ao menos lhes pudesse mandar um postal!
Da
mesma maneira que a árvore que ama o pássaro não o pode prender no seu
ramo quando ele pousa, se é no espaço, sem fronteiras, do céu, que mora
a sua alegria, assim o pequeno cavaleiro percebeu que o cavalinho
vermelho só lhe tinha pertencido nos breves instantes em que tinha
partilhado a sua fantasia. Teria que o restituir ao seu mundo, para que
cumprisse, como todos os outros, o destino que lhe tinha dado o
ferroviário Alípio.
Abraçou-o com força e segredou-lhe:
– Se
ouvires algum barulhão, não tenhas medo, são os empregados a arrumar
cadeiras no clube. Depressa será dia. Tinha parado de chover e a noite
tornou-se mais branda.
Cheirava a uvas maduras. Os quatro compinchas estavam de férias. Às
vezes encontravam-se no rio onde iam à pesca de robacos e de carpas.
O
Dominó passava esses longos dias do fim do verão, sozinho, no curral
improvisado, onde se voltaram a ouvir os carunchos rilhando a madeira
velha. Já só o Sérgio o visitava, mas com as pressas todas, como se
tivesse que ir para o comboio, carregado de desculpas e explicações. Dos
outros, apenas o Urbano apareceu um dia. Nem para ele olhou. Disse
qualquer coisa e lá se foram os dois.
Numa
dessas tardes imensas e áridas como um deserto, começou a ouvir-se uma
música roufenha, uma barulheira desenfreada que espantava os pássaros e
se metia sem cerimónia pelos ouvidos dentro, arranhando a paciência dos
mais santos. Eram os altifalantes dos primeiros carros de choque que
chegavam para a festa das vindimas.
O
vento trazia todos os sons da azáfama que encheu o largo grande e o
Dominó ficou agitado como um garanhão. Parecia que ia partir o bridão a
qualquer momento.
No
sábado de tarde, o Sérgio foi com os outros espreitar as feras nas
jaulas do circo, ver os carrosseis e as barracas todas.
O
carrossel que estava montado, mesmo ao lado da Casa do Terror, girava,
subindo e descendo, com girafas de grandes pescoços esticados,
cadeirinhas giratórias e cavalos pintados de festa como os galinhas de
Barcelos. Faltava um. E o carrossel parecia uma boca bonita que tivesse
perdido um dente.
Sem
medo nem tonturas, andavam dois homens a cobrar bilhetes, saltando da
pista para a cabine de som como macacos.
– E se
descobrissem que tinham sido eles?!
Desapareceram como se fossem distraídos. Quando se viu sozinho, o
pequeno Sérgio correu para o celeiro contar a novidade.
–
Quando for muito tarde e já toda a gente estiver a dormir, levo-te para
a tua casa.
E
ficaram a contar coisas. O Dominó estava agitado, ardia cada vez mais de
impaciência.
Quando
chegou a hora em que já nem os cães ladravam, a porta do celeiro
abriu-se num chiar arrepiante e os dois amigos atravessaram a vereda
escura e meteram-se à estrada que dava até ao largo das diversões, onde
os carrosséis dormiam e os leões ressonavam.
Domingo à tarde toda a família foi à feira. Havia mulheres a vender
cavacas e bolos de gema. Os tendeiros esganiçavam-se, sobretudo a mulher
da pomada indiana que tinha um macaco preso e grandes argolas de ouro
nas orelhas. O cauteleiro velho abriu o guarda-chuva para jogar a
vermelhinha. Cheirava a churrasco e a farturas.
A
Milinha, que ia ao colo da mãe, queria andar em todos os carrinhos e na
máquina do comboio também.
O
altifalante do carrossel, que estava montado mesmo ao lado da Casa do
Terror, gritava: – NOVA CORRIDA, NOVA VIAGEM – RÁPIDO À BILHETEIRA –
RÁPIDO QUE VAI ROLAR
O pai
pagou ao Sérgio a volta que ele quis dar no carrossel das girafas e dos
cavalinhos que rodopiava como uma boca bonita onde não faltava dente
nenhum.
Tocou
a sirene. O carrossel começou a ganhar velocidade outra vez. O Sérgio
tinha escolhido o cavalinho vermelho, enquanto as outras crianças se
tinham encavalitado noutros e nas girafas também.
Como
um jockey, abraçou-se ao seu pescoço e enquanto o homem da cabine
de som chamava todas as crianças para o "grande carrossel da fantasia"
os dois amigos oravam de tanta felicidade.
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