A
história que vos vou contar aconteceu em Vilalegria, uma terra parecida
com todas as outras, com um grande centro rodeado de prédios grandes,
sisudos, de casas comerciais, lojinhas que vendiam tudo, bancos, cafés e
uma praça de táxis.
Mesmo
no meio do centro histórico tinha um lago cheio de pimpões vermelhos e
um repuxo. Árvores, muitas árvores a toda a volta onde os pardais se
escondiam no Inverno e as abelhas zumbiam no verão.
Os
habitantes da vila gostavam muito do Entrudo. Alguns andavam o ano
inteiro a arranjar roupas e a inventar brincadeiras. Quando chegava o
dia, o dia mágico que todos sabiam qual era, quase nem almoçavam para ir
para a praça.
Ouviam-se anúncios nos altifalantes quando as pessoas começaram a
chegar. Em pouco tempo a praça ficou à pinha. Não se rompia. Não se
sabia de onde vinha toda aquela gente, tanta cara desconhecida.
– Mãe,
mãe, já vêm aí! Já se ouve a música! – Gritava, pulando, o João, enfiado
nas botas de cano alto.
Em
torno da praça estavam esticadas umas cordas grossas para que ninguém
ocupasse a estrada mas as pessoas, mesmo assim, passavam. Os polícias
traziam um capacete reluzente, um capacete marciano com um grande bico e
tinham uma cara sem sorrisos como se fossem robots postos em cima dessas
estatuas de carne, de bronze russo que eram os cavalos, para encher de
terror as pessoas.
O som
da música crescia. Pum pum catrapum pum pum, num ribombar cada vez mais
forte. Era a fanfarra dos bombeiros que abria o cortejo.
A mãe
do João teve que lhe dar a mão porque ele ardia de impaciência. Estava
vestido de Napoleão e tinha uma espada quase a sério.
Como
os outros miúdos, o João esgueirou-se por baixo das cordas para que
todos o vissem no esplendor da sua farda e ficou ali mesmo, indiferente
à aflição da mãe, sem medo das patas de um cavalo que sacudia os cascos
como se, de repente, fosse partir à desfilada.
Lá no
fundo apareceram uns gigantones cabeçudos, tranglomanglo, a dançar de um
lado para o outro. Parecia que iam cair mesmo na frente da fanfarra que
vinha atrás deles com bombos a vibrar. Estouravam foguetes, muitos
foguetes que iam assanhados pelo ar para transbordarem de alegria no
meio do céu.
Começaram a aparecer mascarados iguais à bruxa e aos soldados; outros
como noivas e como trogloditas, uns muito feios com cabeleiras cor de
laranja, um índio com uma carantonha de papelão montado numa bicicleta
sem pneus e cowboys em cavalos de pau mascarilha e revolveres de
estalinhos que nem se ouviam no meio daquela barulheira.
Com um
pescoço enorme que baixava o bico para cima da multidão, surgiu um cisne
montado sobre um carro que não se via de tão escondido que estava com
pratas de chocolate. Das asas do pássaro apareciam bailarinas que
atiravam chuvas de confetis e serpentinas. Atrás do cisne volteavam
outras bailarinas com saias armadas como se fossem rabos de pavão e asas
de gafanhoto.
A
dançar, a bailar quase se enfiavam na charanga que arranhava os ouvidos
de toda a gente com os estrídulos clarinetes, a charanga que abria o
passo para deixar pular uma data de caras pintadas, mascarados e
palhaços que atrapalhavam tudo com os seus sapatos descomunais e
barrigas pançudas donde tiravam mancheias de papelinhos às cores e até
rebuçados que lançavam para o meio da multidão e aos miúdos, mesmo aos
que vinham esguicha-los com pistolas de água.
Por
detrás das pessoas que se punham em bicos de pés e das árvores, onde
estava uma data de gente empoleirada, para ver o cortejo, havia bancas a
vender máscaras e bonecos, pastilhas elásticas e bugigangas de
celulóide, roulotes que vendiam farturas fumegantes (tão quentinhas) e
casitas de vidro que não tinham mãos a medir a vender nuvem doce e
pipocas.
Ao
lado duma dessas casinhas de nuvem, estava a mulher dos balões. Fazia-os
nascer numa botija de hélio que soprava um silvo assustador que os
tornava gordos, inchados, tanto que alguns davam um grande PUM e ficavam
desfeitos em mil bocados.
Coitados! Esses não tinham tido tempo para serem felizes, quer dizer
para dar alegria. Eram todos tão frágeis!
Estavam amarrados por uma guita comprida a um peso de ferro, abanando,
inchados de vaidade, as suas cores e as suas formas: bolas, cavalinhos,
patos e lagartas com corninhos. Havia um que parecia um coração verde,
com uma cara estampada que reluzia como se fosse de diamante. Todos eles
esperavam o instante de pertencer a uma criança, sem se importarem que
fosse menino ou menina, tão ansiosos como um cachorrinho ou um pequeno
gato abandonado.
O que
tinha cara de caleidoscópio, quando viu que o João o tinha escolhido,
ficou com mais brilho e dançou de alegria quando se sentiu amarrado ao
seu pulso. E tanto dançou, tanto saracoteou que a guita se desprendeu
e... aí vai ele pelo céu fora como a Passarola do Padre Bartolomeu de
Gusmão, subindo entre as árvores, rasando os telhados das casas que
tinham as janelas entaladas de gente.
O
João, que se deliciava com a nuvem, ficou pregado ao chão, basbaque, sem
acreditar no que lhe tinha acontecido e sem poder fazer nada para poder
apanhar o balão que subia, suBIA, SUBIA. Rompeu a chorar num berreiro
tão grande que o pai teve que dizer em voz muito perfilada:
–
Napoleão não chorava! Era um grande Imperador cheio de coragem!
De
nada valeu e teve que comprar outro balão igualzinho para lhe devolvera
alegria. Nas ruas da vila, o Carnaval seguia como um dragão chinês.
Maluco
na sua repentina liberdade, o balão foi-se enganchar na pinglaruta de
uma árvore. Ali ficou, vou-não-vou, com a cara de palhaço rico admirando
o cortejo que, entretanto, continuava a passear e tinha outra panorâmica
visto lá do alto, como se a árvore fosse um miradouro.
Com
uma pressa de tartaruga, outros carros avançavam cheios de cor e de
música, sempre atrapalhados por aquele mar de gente que não arredava pé,
de escolas de samba cheias de reco-recos, biribaus, frigideiras, caixas,
majoretes e gorilas atracados a trotinetas pasteleiras que os atiravam
ao chão em cambalhotas trapalhonas que enchiam de risos toda a gente.
No
alto de um castelo, que também parecia um bombom gigante, vinha uma
Rainha palito e um Rei gordo, Golias, que abanava a mão como os
Presidentes da República a dizer adeus – adeus a todos.
Do seu
galho, tudo via o balão que estremeceu de medo quando se ouviu um grande
estampido que tanto podia ser duma bomba como doutro balão seu parente.
Estremeceu e libertou-se mergulhando no azul do céu como um asa-delta,
numa ascensão maluca que não se sabia bem no que ia dar.
As
pessoas foram ficando do tamanho de formigas e um bando de pombos que
passava por ali, fugiu espavorido daquela nave brilhante que vogava no
vento. Foi-se diluindo o cor de laranja dos telhados e todos os sons
desapareceram.
Descobriu o fascínio dos grandes prados, das florestas, encontrou um rio
que atravessava os campos como se fosse uma variz prateada.
Talvez
fosse melhor voar mais baixo, como um zepelim. Ou como um helicóptero,
controlando tudo com botões.
O
vento deu-lhe outro safanão e continuou. No céu não há vidros partidos
nem arame farpado, não há curvas perigosas nem os alfinetes dos cardos,
tão perigosos para ele como semáforos traiçoeiros. Ignorante da sua
fragilidade, voava feliz. Ia já muito longe quando anoiteceu. Mas a
noite para ele não era o poço onde se escondia a Maria-da-Grade que
comia meninos nem o sótão dos castigos nem tão pouco era o túnel
arrepiante por onde às vezes os comboios entravam a velocidades sem
juízo. Era apenas a aventura e nada mais.
Cruzou-se com morcegos e com bandos de aves migradoras. Talvez fossem
galinholas ou narcejas que já estivessem de regresso aos seus países
frios ou, quem sabe, as primeiras andorinhas da primavera.
Ouviu
um enorme mocho bufo, bu, buu, buff, buuff, buuuu aterrador.
Ultrapassou algumas nuvens e escapou milagrosamente duns cabos de
alta-tensão, até que aos seus olhos se abriu uma enorme cidade, toda
iluminada. Subitamente a noite ganhou outra vida como se alguém, com um
toque de magia, ali tivesse posto o maior anel de diamantes do mundo,
todo cravejado de pedras que cintilavam cheias de néon, iodo e luar.
Aproximava-se na velocidade do vento e a sua cara de um milhão de olhos
como a dos moscardos, começou a diferenciar todo aquele concerto de
luzes.
Viu um
aeroporto cheio de aviões roncando, um enorme estádio de futebol, e um
eléctrico velhote, com um braço cheio de curto-circuitos, a rezingar
pelos carris. Os carros moviam-se nas estradas como se fossem lagartas a
arder. Teve medo de entrar naquele jardim zoológico de torres e de
luzes, de travões que guinchavam, de ambulâncias que gritavam, da
centopeia de barulhos que o ensurdeciam.
Mas
nada podia fazer. O vento empurrava-o e mergulhou na cidade grande
levando atrás o fio como os cometas levam a sua cauda.
Serpenteou entre os centros comerciais e os bairros, passou uma grande
ponte e encontrou outros bairros até que uma enorme torre lhe barrou o
caminho. Quando pensava que já nada o podia salvar, que se ia
esborrachar no paquiderme de cimento, uma estrutura articulada dum
estendal de roupa travou-lhe a corrida. E lá ficou, com a cauda
enrodilhada na estrutura a dançar no vento.
Lá em
baixo a vida agitava-se. Viu chegar um leiteiro e passar uma velhinha
com um grande cesto de hortaliças. Pelos passeios havia muita gente de
cara ensonada. Aos poucos as luzes iam-se apagando. Nascia outro dia.
O
estendal de roupa era da mãe do Francisco, um menino que morava no
décimo andar da torre e estava fixado na parede da varanda que tinha um
postigo para o seu quartinho lá do alto.
Como
se fosse uma bandeira, o balão drapejava. Não podia imaginar o que o
esperava ainda, depois de tão arriscada e emocionante viagem. Sentiu
saudades do João. Mal o tinha conhecido, é certo. Mas, em vez de
alegria, tinha-lhe dado um grande desgosto. Paciência! Com certeza que
ele já o tinha esquecido. Não se sentia culpado, tinha-se soltado sem
querer. Que pena não ter tido forças para o trazer! Ele teria adorado
aquela aventura. Bom, pensando bem talvez ele tivesse vertigens. E, de
resto, era perigoso. Talvez o pai lhe tivesse comprado outro, lagarta ou
coelhinho...
Aquela
hora o Francisquinho ainda dormia. Em casa da avó também havia um
estendal de roupa. Como não era tão alto os pardais vinham pousar nos
arames e faziam barulho com as molas que o acordavam.
O
drapejar do balão também o acordou. Deixou-se estar: estava tão bem na
cama! Volta e meia ouvia qualquer coisa. Sabia que não estava em casa da
avó, que não eram os pardais. Mas aquele som o que seria? Tanto magicou
que acabou por ir ao postigo vigiar.
Ao ver
o balão, exultou de alegria. Como é que ele teria chegado ali? Meteu o
braço e apanhou-o.
Meio a
dormir, meio acordado, cogitava no que lhe parecia um grande mistério.
De quem seria?
O
balão cheio de felicidade por ter encontrado outra criança, percebeu os
pensamentos do Francisco e, com a voz das coisas que não têm voz,
contou-lhe como tinha vindo e toda a sua odisseia.
O
Francisco não sabia como era o Carnaval. Então o balão abriu muito a sua
boca de caleidoscópio e narrou-lhe tudo quanto tinha visto: as escolas
de samba, as enrodilhadas serpentinas, os carros alegóricos e a chuva de
confetis, os gigantones e as dengosas majorettes. Sobretudo falou-lhes
dos mascarados trapalhões.
Tanta
fantasia pôs no que contou que os olhos do Francisco se abriram como
duas janelas de sonho e alegria. Como seria fantástico encher de
Carnaval as paredes do quarto e toda a rua e toda a cidade. As próprias
cores mover-se-iam ao som da batucada e nunca teria medo das máscaras.
Talvez até usasse uma para arreliar o avô, em paga das partidas que ele
lhe pregava.
Imaginou o avô sem fala, trémulo, completamente parvo de susto e voltou
a adormecer sorrindo da cena que já via tão real.
Exausto, o balão perdia ar, murchava.
Quando
a mãe do Francisco entrou no quarto já o balão estava caído, amarfanhado
na mesinha, sem cores, sem vida, como se fosse um lenço sujo. O Xico
dormia.
–
Acorda meu filho! Tens que te levantar.
– Que
dia é hoje, mãe?
–
Quarta-feira. Quarta-feira de cinzas: acabaram-se as férias.
Ensonado, o Francisco levantou-se. Viu o balão murcho e sentiu uma
grande tristeza.
A mãe
pensou que ele estava aborrecido por ter de voltar para a escola.
–
Noutras terras, muito longe daqui, há muita gente triste por ter acabado
o Carnaval. Uns vão trabalhar, outros vão estudar. Agora despacha-te.
Deixou
a mãe sair do quarto e arrumou o balão-farrapo numa gaveta. Talvez um
dia o enchesse com um grande sopro, lhe restituísse a vida e o levasse
pela mão numa marcha luminosa ou num cortejo.
Enquanto se vestia,
abeirou-se do postigo. Lá em baixo, na rua grande da sua grande cidade,
não havia restos de serpentinas, nem migalhas de papel colorido, nem
nenhum eco da alegria. Apenas lixo.
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