Deitou-se na noite de 11 de Novembro de 2004,
adormeceu e já não acordou. Foi assim, depois de tantas lutas, que
acabou o meu patrício Guy Ferreira. Não sei se seria este o fim do
seu agrado, mas pelo conhecimento que dele tinha, acredito que entre
acabar mais velho mas estorvando, preferiria certamente este. De
qualquer modo, tudo o que possamos dizer é pura especulação.
Muito embora a maioria dos meus amigos tenha sempre sido mais velha
do que eu, começo a ficar farto de os perder, sobretudo porque são
muito poucos os dignos desse nome. Por outro lado, tenho cada vez
mais dificuldades em escrever sobre eles depois do seu
desaparecimento. Todavia, aumenta, dia após dia, a necessidade de o
fazer, pois a memória dos homens é cada vez mais curta.
Provavelmente é essa, também, uma das características desta
sociedade desonesta, desumanizada “e lava mais branco”, pois assim é
mais fácil rescrever a história e transformar os “calhaus” em
inteligências superiores, os trânsfugas em seres em evolução, os
cobardes em heróis e também o contrário, os sacanas em santos, etc.
etc... Era, certamente, aqui nesta deixa que o Guy diria com o
sentido de oportunidade do seu ácido humor: estou farto de
malandros!...
Tenho saudades das coisas que fizemos juntos, bem como das nossas
discussões. Acho que não houve um só almoço sem discussão, nem que
fosse simplesmente sobre o numero e/ou a qualidade dos miolos de pão
em cima da toalha. Mas as nossas discussões muito raramente foram
sobre a essência dos conteúdos que perseguíamos, aí, basicamente,
estávamos de acordo, eram sim sobre a forma de os atingir.
Pintor e homem de muitos outros saberes, chamava-se Mário Armando
Guilherme Ferreira, Alentejano, um bom Alentejano, nascido em Vendas
Novas, em 28 de Maio de 1937, filho de Alentejanos. Era casado com a
pintora (Ana Guilherme Ferreira) Ana Palacim.
Cedo
ingressou na Força Aérea, da qual era reformado quando faleceu e
onde atingiu o posto de Sargento-Mor, tendo como especialidade a
meteorologia.
No
cumprimento da sua profissão de militar passou por várias unidades,
na metrópole e no ultramar. Durante todo o percurso, para além do
cumprimento escrupuloso e dedicado da sua especialidade, procurou
sempre animar cultivando. Para o que, promoveu espectáculos,
colóquios, exposições, jogos florais, projecções de filmes (até dos
tais que davam chatices na época). Criou algumas bibliotecas
(arriscando-se a nelas incluir títulos censurados). Foi o
responsável, durante alguns anos, na base aérea de Bissau, pela
publicação do jornal “O Último Grito”.
Entrou com todas as forças e capacidades no movimento do 25 de Abril
de 1974, acreditando, também ele, que o sonho era possível,
participando nas suas estruturas, actuações e movimentações, a horas
e a desoras, sempre com o mesmo entusiasmo e honestidade. Só que o
sonho, também para ele, com o golpe contra revolucionário de 25 de
Novembro, se transformou em pesadelo, sendo preso e afastado da
Força Aérea, na qual só veio a ser reintegrado pouco tempo antes de
morrer.
Como
acima se diz, era um homem de muitos talentos, mas a sua actuação
distinguiu-se sobretudo na área das artes plásticas, em que deixou
marcas bastante profundas: Foi director da Galeria do “Diário de
Notícias”, da “Gravura”, da Codilivro e da LCR. Colaborou com a Casa
de Imprensa. Criou a Bienal de artes do Concelho do Sabugal e,
integrada nesta, a 1.ª Internacional do Sabugal e Ciudad Rodrigo e,
também em simultâneo, nesta mesma cidade (Sabugal), ajudou a criar o
Museu de Arte Contemporânea. Criou, também e sobretudo, a Exposição
Internacional de Artes Plásticas de Vendas Novas, que já ultrapassou
a décima edição (esta iniciativa teve durante alguns anos o apoio
logístico da Casa do Alentejo, fazendo Guy Ferreira “sede”, vários
meses por ano, nas suas instalações). Em meados da década de 1990, a
meu convite, entrou para sócio da Casa do Alentejo. Esta instituição
vinha, de há alguns anos atrás, apostando (e levando à prática) na
animação do Pátio Árabe com exposições de artes plásticas, de
artistas Alentejanos ou cuja temática fosse o Alentejo. E é nesta
altura, que a direcção da casa de todos os Alentejanos, solicita o
seu apoio para ajudar a disciplinar e fazer evoluir o “projecto de
artes plásticas”. Depois de por ele aceite, aperfeiçoou-se a questão
do Pátio Árabe, aumentando-lhe simultaneamente a dignidade. De
seguida partiu-se para a organização de algumas exposições
colectivas de pintura de Artistas Alentejanos, em vários pontos do
Alentejo e arredores de Lisboa (Borba, Vendas Novas, Nisa, Moita e
Évora). Em 25 de Abril de 1997 estreia-se a primeira Bienal de Artes
Plásticas do Alentejo, um projecto ambicioso/arrojado (pretendia vir
a ter a funcionar, em simultâneo, uma exposição em cada um dos
Concelhos do Alentejo – pintura escultura, fotografia, cerâmica) e
de custo elevado, apesar do muito trabalho voluntário, mesmo assim,
conseguindo-se realizar a iniciativa por duas vezes, não tendo na
altura continuidade, por simples e clara falta de verbas próprias e
dos insuficientes, imprescindíveis e justos apoio das instituições
estatais, regionais e centrais, bem como pela lamentável ausência de
mecenas. Uma coisa é certa, todas as iniciativas comissariadas pelo,
como escreveu o Manuel Geraldo, Guerrilheiro das Artes, foram
um sucesso. E assim, também aqui, sempre com o lema em primeiro
lugar estão os artistas, sem eles nada seria possível, mais uma
vez, o Alentejano Guy Ferreira, prestou um bom serviço à cultura,
sem pedir nada em troca.
Na
área da escrita, para além do que fez no jornal O Último Grito,
colaborou inúmeras vezes em jornais e revistas regionais, deixou
pronto a publicar o Dicionário de Artistas Alentejanos do
Século XX e dois livros inacabados: A Família de
Baltazar Cardoso e O Gato. Homem dedicado à investigação
histórica, colaborou com a Alfa na publicação de uma História de
Portugal.
Sem
qualquer sombra de dúvida e além do mais, o meu amigo Guy
Ferreira, o Guerrilheiro das Artes, foi um homem de muitas
causas, de uma enorme generosidade e sensibilidade, muito culto e
verdadeiramente leal.
Luís Jordão – Maio de
2007
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