Acesso à hierarquia superior.

Domingos Carvalho, Mutualismo. A força do associativismo democrático., Cadernos CA, N.º 3, 1ª ed., Lisboa, Casa do Alentejo, 1998, 40 pp.


 

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Os primeiros movimentos do
Mutualismo em Portugal

 

A importância do Mutualismo, para as classes operária, camponesa e outras mais, merece ser divulgada nos seus mais variados contornos. Por nossa banda reconhecemos, honestamente, que não seremos capazes de interpretar, em termos aliciantes, o que historicamente destacou o associativismo mutualista. Todavia, aqui estamos, a utilizar a mediocridade dos nossos conhecimentos, assumidamente insuficientes, para estimular os que não tiveram a sorte de aprender mais alguma coisa com os abnegados paladinos do associativismo, da solidariedade e da riqueza da palavra entreajuda. Curiosos, apenas, inopinadamente nos confessamos; e, por isso mesmo, nos sentimos penalizados se estas referências não conseguirem, ao menos, beneficiar da generosidade dos eventuais leitores. Pelo contrário, se a temática desenvolvida encontrar receptividade, será para nós muito gratificante, e consolador o interesse pela proposição escolhida.

Nesta data festiva do reaparecimento, em nova série, da nossa quase indispensável «Revista Alentejana», neste número promissor, atrevemo-nos, portanto, a ocupar algum espaço, conscientes das limitações que os compromissos firmados com outros colaboradores nos impõem. Reiteramos, por outro lado, com estas despretensiosas linhas, tão-só o propósito de accionar a «campainha» que desejamos constante e estridente até ao despertar da acção pedagógica para um apaixonante movimento, / 10 / cuja expressão mais alta caiu em lamentável letargia.

Certamente que outros cabelos brancos hão-de superar as falhas desta tentativa de divulgação, com redobrada energia.

«Ajuda-me, que eu te ajudarei» foi um grito aliciador; dir-se-ia quase mágico, se a palavra dita não desvalorizasse o esforço e a realidade na conquista de fundamentais objectivos. Mas seria injusto esquecer que a força do incitamento foi também perfilhada por outra corrente associativista de extraordinária acuidade em Portugal e internacionalmente: o Cooperativismo. Na Inglaterra, em 1844, um grupo de operários fundou em Rochdale a Cooperativa dos Pioneiros, com o impulso do associativista Charles Gide, e em 1885-86 foi fundada a célebre escola de Nine, cujo programa logrou unificar outras formulações que por toda a parte fervilhavam.

 

Origens profundas

É, porém, do Mutualismo e dos seus aspectos doutrinários que. neste momento, nos devemos ocupar. Embora com algumas linhas paralelas, o Mutualismo procede de origens profundas, cujas raízes abeberaram na necessidade da defesa de direitos face ao trabalho produzido e na consciência das mais-valias transmitidas aos exploradores. E não apenas isso: também o direito à associação, ao convívio e à felicidade no emprego.

Quando procurava agrupar-se para alcançar a vitória na luta pelos alimentos e sobrevivência, o sapiens pôde, neste primitivo aspecto, revelar o que em evolução constante o Homem ambicionou e até mesmo exigiu, no lento e gradual caminhar das civilizações. E, sempre muito resumidamente, por razões já enunciadas, / 11 / começaremos pela assistência concedida pelas Misericórdias, situando-as na sua «natureza» medieval e, evidentemente, no seu tempo, causas e efeitos. Não será preciso dizer que, actualmente, defendemos outra escala de valores sociológicos.

A ideia da assistência por caridade tem, de facto, origens ancestrais mas, quando D. Leonor estabeleceu, em 1498, o «Compromisso de Misericórdia» e criou, em Lisboa, a 1ª Instituição, assessorada pelo clérigo espanhol Fr. Miguel Contreras, já existiam as Confrarias a distribuir a assistência precária pelas populações; as Ordens, as Irmandades e, com um estatuto muito restrito, os Socorros Mútuos.

Em Beja, funcionou primeiramente, no séc. XIV, a «Confraria de Socorros Mútuos», que alguns mutualistas estimam ter sido a génese do Mutualismo incipiente. Dessa época em diante (com espaços de séculos), o Mutualismo «viveu» empiricamente mas, em 1820, por desígnio da Revolução Liberal, desabrocharam os primeiros estatutos, concatenados não só por eruditos afeiçoados às classes produtivas, mas também com a colaboração de operários esclarecidos e vinculados às ideias liberais. Domingos Cruz («A Mutualidade em Portugal») refere que «o Mutualismo, subordinado, ainda, a noções incipientes, começou a ganhar alento». O mesmo autor refere, apaixonadamente, a acção das antigas corporações de «Artes e Ofícios», extintas em 7 de Maio de 1834 «por incompatíveis com a Carta Constitucional».

Com particular distinção para os revolucionários de 1820, que preconizavam pôr em prática as suas aspirações idealistas, alicerçadas no progresso social e na solidariedade humana, no sistema reivindicativo consciente e na entreajuda organizada à margem de / 12 / preconceitos ancestrais, os governos da Monarquia Constitucional foram suficientemente benévolos para assegurar a permanência do espírito de «bem -fazer» e da caridade instituída.

Um escol de liberais de «ideias avançadas» – como frequentemente se classificavam, nessa época, os mais intervenientes na vida política e social – esforçava-se, até ao sacrifício, para alcançar objectivos emancipadores. Porém, a mobilização para a Guerra Civil conseguiu retardar desígnios que só, muito lentamente, atingiram a consolidação satisfatória do Mutualismo e do associativismo.

O propagandista Eusébio Santos afirmou, em consequência de um estudo efectuado no início do século XX, que «o incremento do Socorro Mútuo vem do meado do século passado». Foi desta maneira, acentua a análise, que surgiram «no nosso País, alguns paladinos convictos e desinteressados a propagar e a difundir a nova direcção de onde brotou, no decorrer do tempo, um núcleo de associações e montepios».

Em 30 de Agosto de 1835, a numerosa classe dos alfaiates conseguiu, com muita persistência e determinação, fazer aprovar o seu alvará, cujo documento, no Nº 2 do artigo 4º, vinculava os beneficiários ao compromisso de «criar, em proveito da Associação, os estabelecimentos que forem julgados necessários e úteis». Daí em diante, tanto os artífices como os artistas, classe média e até média-alta, promoveram iniciativas de finalidade associativista que, paralelamente, criaram «mutualidades livres» para suprir despesas por morte do associado e ajuda compatível em caso de desemprego.

Assim se entrelaçaram, década por década, os laços de fraternidade e de solidariedade nos infortúnios. Sem ajudas nem incentivos oficiais (que só viriam a ter maior / 13 / expressão depois de implantada a República), os movimentos mutualistas e cooperativistas estavam razoavelmente coesos, em 1882. Os activistas preparavam-se para os congressos, orgulhosos da sua obra e acreditando que, mesmo sem a assistência reclamada insistentemente, a «marcha pela emancipação» seria imparável.

E, em 1890-91, dois congressos tiveram enorme aceitação. Tão robustecidas foram as teses, tão elaboradas foram as intervenções, tão objectivas foram as palavras da Câmara dos Deputados que, antecipadamente, se tinha por escandalosa a ignorância dos movimentos pelos governantes. Foi aprovada sem grande celeuma a primeira lei mutualista! Contudo, o «diploma» não agradou plenamente às comunidades, que denodadamente se empenharam para que fossem ratificadas todas as cláusulas estatutárias e também o projecto delineado para um futuro digno, progressista e sem paternalismos. Mas as directrizes dos sucessivos governos constitucionais alteravam-se consoante a relutância de maiorias conservadoras ou a determinação vigorosa das minorias ideologicamente acreditadas.

Todavia, o espírito imperialista transmitido pelos países evoluídos, apesar das «aberturas de circunstância», não estimulava o crescimento das associações, basicamente dirigidas por trabalhadores ou enquadradas por intelectuais assimilados, «esgrimistas» de idealismos quase proféticos e quantas vezes de estilo parnasiano...

Os ecos da Revolução Francesa – vitórias e derrotas, objectivos conseguidos e «ilusões perdidas» – só muito mais tarde chegaram às classes trabalhadoras. Entretanto, revivendo experiências mal expurgadas de defeitos contraídos na ambição da / 14 / liderança, os responsáveis revolucionários apelavam desesperadamente à unidade das correntes progressistas.

Permaneciam, aqui e ali, as mazelas ignominiosas das invasões napoleónicas (1807-1811) que conduziram aos actos revolucionários do Porto (1820 e 1891); por extensão, aos aderentes de Lisboa. Pouco a pouco ressaltava uma diferente concepção de vida pública em discurso inflamado. mas a economia, amarrada a tendências pequeno-burguesas sustentadas, caminhava «a passo de boi». E, poucos anos depois da Constituinte, a Guerra Civil Liberais/Absolutistas, que derrotou o usurpador do Reino, abalou, durante anos, as estruturas geradoras de progresso.

Da generosa Revolução Francesa (um século decorrido) ficaram, apesar do resto, algumas ideias prevalecentes nos caminhos emancipadores dos dirigentes associativos e das lideranças operárias, mas prevaleceram, ainda, situações difíceis para as classes exploradas.

Da Revolução Industrial inglesa sobreveio um «benefício de sinal contrário». Camponeses e manufactureiros começaram por sofrer a concorrência da máquina e das ferramentas mecanizadas. Em teoria, a mecanização e os inventos deveriam reduzir as horas de trabalho e o esforço manual sobre-humano, segundo as concepções científicas, que foram demagogicamente deturpadas. Aumentou o desemprego, a miséria e a fome. Os benefícios reverteram para os bolsos dos industriais de grande poder mercantilista e dos empresários importadores de tecnologia inovadora.

Por estas e outras situações que a vida, o tempo e o desleixo retiraram à luta pelos direitos fundamentais, o «Pico dos Himalaias» – como disse um operário dirigente em plenário mutualista – ficaria mais alto e / 15 / inacessível à miraculosa escalada. Estas palavras, tão simples como incentivadoras contra a inércia, produziram um grande impulso para o reforço da iniciativa proclamada.

Pelo Decreto-Lei de 2 de Outubro de 1896, foi possível fazer revogar a lei promulgada em 1891. A movimentação engrossava, confiando mais na coesão e iniciativa do que no conjunto das discussões parlamentares e, como nem a reforma nem as emendas facilitavam a finalidade mutualista à escala nacional, as iniciativas, debates e conclusões continuaram a exercer-se cada vez com mais entusiasmo e determinação. Alguns grupos, desiludidos com a indiferença do Estado, juntaram-se aos activistas intervenientes nas assembleias de classe.

Reinava D. Carlos I. No Governo, o general Crisóstemo de Abreu, primeiro-ministro; nas Obras Públicas, o execrável João Franco que, já nessas funções secundárias, revelava um autoritarismo intrínseco, gerador de grande agitação. Surgem os primórdios da ditadura, que prejudicou as associações progressistas até às últimas consequências, começando Francisco Maria da Veiga com a censura à Imprensa, e João Franco e os seus «monstros» (apodo que sobressaía com persistente retumbância), logo a seguir, deportavam para Timor muitos anarquistas e suspeitos mutualistas.

Moeda de conto, cunhada no reinado de D. João II - Clicar para ampliar.

O Pelicano, símbolo da divisa «Pola Ley e Pola Grey», surge aqui numa moeda de conto, cunhada no reinado de D. João II

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