Disseram-me há uns dias que a vida de um escritor deve ser coisa
fácil, de embalar meninos, presumindo que para mim seja fácil
embalar meninos, o que nem é verdade!
Mas não
sei com que intenção, apontaram-me o dedo!
– É pá,
tu sentas-te ao computador e zuca zuca, martelas nas teclas e já
está!
Novamente
entro em desacordo com aquele amigo da onça quanto ao zuca zuca e já
está, porque nem zuca nem já está, assim só a bater nas teclas. Se
assim fosse, um carpinteiro era só serrar a madeira, o calceteiro só
bater nas pedras e as cozinheiras era só atirar com os legumes e pés
de porco para o tacho (livra!), e venham jantar que zuca e mais
truca, já está!
Há dias
em que o tal escritor sofre de gemer e esperar pelo último dia
depressa, depressa! Não será o meu caso, cruzes, mas hoje é uma
ocasião de desejar ir para outro sítio onde não haja computadores
nem prazos de entrega. Porquê? Vamos lá ao conto, pode ser que com a
continuação venha o entusiasmo e a verve.
Como
acicate, jurei a mim mesmo que só me levantava daqui, depois de vos
ter contado a história sem história provável do Sr. Nunes.
É uma
tarefa ingente, o Sr. Nunes é o que costumo chamar, um Nunes. E o
que é um Nunes? Pouco se saiba, porque pouco há para saber,
entendamos.
Um Nunes
é um pacato. Um Nunes não tem ambições. Há mesmo Nunes que nem se
interessam pelo Benfica ou por um outro clube qualquer, mas não se
interessar pelo Benfica, mostra à saciedade a falta de ambição desse
Nunes em particular. Temo até que haja camadas, extractos
específicos e especializados em cinzentice, arrumados em prateleiras
de arquivo conforme aos diferentes Nunes. É segurança certa, da cor
desses arquivos ser a cinzenta, outra não pode ser, se até o branco
alveja alegrias e gaifonices alvares.
O Nunes
que eu ligeiramente conheci – concedo, que mo fizeram conhecer para
eu vir aqui debitar a “odisseia” dele – mas vamos onde íamos, o
Nunes que eu conheci, era casado há cerca de trinta anos e ninguém
deixava de afiançar a probidade, o fidelismo quase canino – mas
daqueles caninos que só lambem as mãos do dono, nunca mordem, ainda
que lhes batam.
O Nunes
trabalhava. Ambições zero, proclamava o contentérrimo chefe de
secção no seu relatório anual ao Director da Repartição sobre os
funcionários. Em consequência, o Nunes ganhava quase o mesmo de
quando fora requisitado a outra Repartição num Ministério de certo
tomo social. Foi fácil, cederem-no, ninguém estava interessado em
ter à disposição de uma eventual revista ou programa daqueles dos
conhecidos, um Nunes apático, desejoso apenas de manter uma notória
falta de ambição. Isso podia ser um verdadeiro perigo, um terramoto
político, desastre na Revista Faces onde se queriam rostos
enérgicos, felizes a suarem felicidade, a escorrer simpatia,
aspectos plenos sem mácula de insatisfação.
E tais
modelos de beleza cutânea e musculatura assustadoramente
apresentada, nem precisavam de trabalhar, certo é que nem o faziam,
ora porque eram primos de um Lencastre qualquer, ou porque para
serem exibidos, não se lhe podia tirar o tempo ou obrigar às
escuridões pesadas dos gabinetes.
Obviamente que o Nunes não era nada disso. Mas era útil, pois se os
outros flanavam, alguém tinha que trabalhar por eles. Exactamente os
Nunes, cognome Alpaca. Convinha era que nem se desse por eles.
Contava
quem só lhe queria mal, que este Nunes, o agora meu conhecido, à
força de ter que escrever qualquer coisa sobre os invisíveis, até se
recusava a ter carro, chocolateira que fosse. Continuava o
engraçadinho:
– Fui ter
com ele e disse-lhe …”Ó Nunes, toda a gente tem carro, as prestações
servem para isso, então quer morrer rico?” Sabem o que ele me
respondeu?
– Que não
tinha dinheiro…
– Também
isso. Mas pois que “…o carrito talvez pudesse vir, há Natais e
heranças…”Então, ataquei…” Pois está a pensar bem! Força Nunes,
escolha um espada digno de si, tire a carta e ande para a frente”
–
Desculpe Sr. Honório, o problema está mesmo aí, tirar a carta…
– Não
custa, há aí escolas boas, o meu primo tem até uma barata e catita
de qualidade! Quer que o recomende?
– Muito
agradecido a Vossa Excelência, mas não podes ser…
– Oh
homem, porquê?
– Porque
só tenho dois pés para três pedais. É difícil!
Não foi
de estranhar portanto que remetessem o Nunes para um departamento de
agricultura, longe da vista e ainda mais longe do coração!
Verdade
seja que deve “ter havido um Natal ou uma herança”, porque o Nunes
Alpaca foi visto a guiar cuidadosamente um daqueles piolhos alemães
que têm mudanças automáticas. Dois pés para dois pedais…anotem,
senhores gozadores!
O Nunes,
sempre afável a trazer pastelinhos de nata à esposa (a palavra, por
pirosa, ganha sentido próprio aqui com o Nunes…), fumar pouco e só
se o chefe lhe chegasse o pacote LM, foi lançado para uma missão de
controlo longe da casa e dos pastéis de Belém consoladores maritais,
nos fundos do Alentejo.
Constava
– neste tipo de pessoas invisíveis, constar já é uma promoção social
– que o Nunes andava para baixo e para cima no carro novo de quatro
ou cinco anos de idade, e rosnavam as más línguas pouco interessadas
em eficácias justiceiras, que não se poupava a trabalheira de
controlos, ia deste para aquele, e daquele para outros ainda! Um
azar!
Chegaram
novas à minha investigação, de que o triste Nunes ia cimentando umas
amizades, gente certamente igual a ele… “Olhe que não, o homem caiu
no goto de lavradores e autarcas! Provavelmente como inspector das
lavouras deve, ou ser um desastre, ou um distraído. Corrupto? O
Nunes? Nãoooo!
Tudo
corria em carris, ninguém estranhou um propalado divórcio, pois as
distâncias, sabem… aquilo de andar para baixo e para cima,
Lisboa-Beja, Évora-Lisboa, acaba por cansar. Ele já ficava mais
tempo em baixo do que no alto.
Ai!, é de
certo o deslumbramento dos novos conhecimentos, gente da alta de lá,
que ele aqui nem ao pé chegava. Compreendam o pobre Nunes, nem
ambições e agora nem mulher! Coitado…
E foi um
espanto, até para mim, biógrafo ocasional, quando se soube que o
Nunes era o sujeito procurado pelas polícias por ser o dono – e
que dono – de um bar de alterne e drogaria com clientes de
cá e de lá da raia, muitos deles bem instalados na política ou nos
negócios, ou seja, a mesma merdosa misturada do costume.
Este
saiu-me cá um Nunes!
A. A., 6 de Outubro de 2012 |