Estava escrito nas Estrelas que eu deveria ser um homem da Ria e do Mar.
Pompeu Lemos, primo do meu pai, foi serralheiro civil e mecânico que,
depois de ter estado no Lobito, em Angola, foi trabalhar para o Paula
Dias, em Aveiro, onde a minha mulher também trabalhou. Entretanto
começou a construção da Celulose, em 1950, e entrou em laboração em
1953. Peu Lemos, assim era conhecido o primo do meu pai, foi para Cacia
trabalhar na que agora é a Portucel. Como assistia nas caldeiras a vapor
e não se sentia bem com o calor, foi para a pesca do bacalhau trabalhar
como maquinista, no lugre Adélia Maria, cerca de 1955. Passou de um
extremo ao outro! Devia saber a citação do filósofo grego Platão, de que
na Humanidade só há três espécies de homens: «os vivos, os mortos e os
que andam no Mar.»
Num ambiente inóspito, que exige grandes resistências, física e
psicológica, o meu primo Peu passou de um extremo difícil para outro que
de fácil nada tinha. E o resultado foi que, em breve, adoeceu e teve que
ser assistido no navio hospital Gil Eanes.
O mar é complicado. Se muitas vezes nos dá o que precisamos para
podermos viver, muitas outras cobra pesados juros e fica com as vidas
daqueles que nele procuram a subsistência. De acordo com o capitão
Tibério Paradela, no livro Neste Mar é Sempre Inverno, este meu amigo
descreve rigorosamente o clima daquelas latitudes mais ao norte,
daquelas paragens onde o fiel amigo costuma ser pescado. Salvo raras
excepções de ondulação quase nula, que o pescador designava como «um mar
de senhoras», a vida nestas regiões não é fácil de suportar. Naqueles
mares, sempre com névoas, até os pescadores se perdiam. De nada lhes
valia o agulhão (pequena bússola) debaixo de olho e o ouvido atento ao
sino com que o barco mãe assinalava a posição a todos quantos andavam
ocupados na pesca em pequenos botes, aquelas cascas de nozes que os
ingleses designam dories. Muitos por lá ficaram perdidos, quando
as neblinas eram mais fortes que a vontade que tinham de regressar e o
barco-mãe se via obrigado a regressar sem conseguir encontrá-los.
Mas deixemos os problemas do mar e voltemos ao Peu, o primo do meu pai.
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Lugre Adélia Maria, com gelo grosso ou icebergues, nos mares da
Gronelândia.
Foto cedida por Tó Ju, filho de Pompeu Lemos. |
Não sei se ele e a esposa alguma vez foram ao Parque Mayer ou à Feira
Popular, lá por terras alfacinhas. Mas sei que assistiu aos rituais da
bênção dos bacalhoeiros, em frente ao estuário do Tejo, e que rumou aos
Grandes Bancos da Terra Nova, tendo na largada das naus, perdão, dos
bacalhoeiros, muitos lenços de múltiplas cores a acenaram em gestos de
despedida. Se não assistiu à partida das naus, assistiu, pelo menos,
enquanto tripulante do Adélia Maria, ao ritual da despedida para os
bancos da Terra Nova. E por lá andou durante cerca de seis meses,
ganhando uma enorme vontade de não voltar e de regressar ao antigo
emprego, na Celulose de Cacia, local mais calmo e quente, sem as
ondulações do imenso mar.
Esta evocação do primo de meu pai fez-me recuar aos meus tempos de
infância. Quando ele pelos mares andou, andava eu pelos meus dez anos de
idade. Corria o ano de 1955 e fazia eu as minhas corridas descuidadas
pelas terras da beira-mar, descobrindo, ora com o meu avô, ora com o meu
pai, muito do universo em volta da faina do mar.
Nesse preciso ano de 1955, lembro-me de ter entrado no Adélia Maria, um
lugre de quatro mastros, construído na Gafanha da Nazaré, em 1948, por
João Bolais Mónica, para a empresa de José Maria Vilarinho, dotado com
um motor alemão da marca Deutz com 450 hp e que naufragou, ao fim de
vinte anos de actividade, devido a um incêndio em Virgin Rocks.
Por esta altura, já eu estava habituado a navegar nos canais da nossa
Ria e familiarizado com as coisas do mar. O meu avô, mais conhecido por
ti João «Alemão», antigo marnoto nas marinhas de sal, possuía uma
bateira a remos. Com ele, juntamente com outros elementos da família,
partimos do Canal de S. Roque e, à força de remos, chegámos ao local
onde estava ancorado o Adélia Maria. Sem este passeio oferecido pelo meu
avô, a mim e a outros elementos da família, nunca teria podido efectuar
a visita ao Adélia Maria.
A viagem pela Ria até ao Adélia Maria, na companhia do meu avô e
familiares, ficou particularmente retida na minha memória, não só pelo
enorme prazer que me proporcionou, mas sobretudo porque se tratou da
chegada do Peu, após seis meses de vida no mar. Claro que as minhas
navegações nos canais da Ria não se limitaram à bateira do meu avô.
Nesta época, o meu pai trabalhava na base de S. Jacinto. Por isso, não
eram raras as minhas viagens na lancha até São Jacinto. Mas a viagem do
Canal de S. Roque até à Gafanha da Nazaré, após a chegada do Adélia
Maria, foi um acontecimento excepcional. Era a chegada de um amigo, eram
os meus dez anos de idade, eram as pessoas e o ambiente que me rodeavam.
Tudo contribuiu para que tivessem ficado retidos na minha memória
impressões que muitas vezes nos escapam.
Conservo ainda na memória um enorme navio de madeira, um grande saco de
roupa, uma mala de roupa lavada para seis meses de viagem e o cheiro a
óleo de fígado de bacalhau. Tudo pequenas impressões que ficaram
registadas ao longo dos anos. Só muito mais tarde, já trabalhador na
EPA, vim a verificar que aquilo que frequentemente comia na sopa,
naquela idade em que me estava ainda a fazer homem, era o mesmo óleo de
fígado de bacalhau, armazenado nos silos da Empresa de Pesca de Aveiro.
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Lugre Adélia Maria rodeado dos botes, em plena faina piscatória.
Foto cedida por Tó Ju, filho de Pompeu Lemos. |
E muitas outras memórias, de tempos que já passaram, poderiam surgir
relacionadas com a faina do mar, à qual andei por questões profissionais
ligado durante vários anos, se a navegação nas ondas da escrita não
fosse já longa. Talvez em outras navegações outras evocações possam
surgir, se as marés se proporcionarem e por cá continuarmos a remar na
maré da vida.
Aveiro, 18 de Outubro de 2018
João Pires Simões
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