I
Durante
um passeio por terras alentejanas, tive a
oportunidade de observar e fotografar uma antiga locomotiva existente no
Museu de Estremoz, documentada na imagem que a seguir reproduzimos.
Esta é a foto da
locomotiva n.º 1 de um tipo de máquinas a vapor, que obtivemos no arquivo histórico da CP, no Museu de
Estremoz. A história do caminho-de-ferro estará por certo bem
documentada em Portugal na CP. Para aqueles que por ventura desconheçam, lembramos que
foi George Stephenson o inventor da primeira locomotiva a vapor. Nasceu a 9 de
Junho de 1781, em Wylam, nos arredores de Newcastle, em Inglaterra.
Depois dele, muitos se dedicaram a construir locomotivas, surgindo um
elevado número de modelos tais como as Mallet,
Garrett, Mikado, Henschel, a inglesa Beyer Peacock e outras, em tal
quantidade que é impossível aqui efectuarmos a sua enumeração.
Em Portugal a tracção a vapor começou em Outubro de
1856. Algumas máquinas vieram da Alemanha ao abrigo de uma indemnização
pela participação portuguesa na 1ª Grande Guerra Mundial.
Como
é que estas máquinas obtinham a energia para as mover?
Eram máquinas que trabalhavam por meio de vapor. Alimentadas apenas a
carvão e água, tinham habitualmente dois fogueiros, que se preocupavam
em ter a fornalha à pressão aproximada de 12 Kg/c2.
Fazemos geralmente tantas viagens de comboio que acabamos por nem nos
apercebermos da sua histórica dimensão. Pelo que a mim me toca, reparo esta minha falha citando
uma estrofe de um poema de autor desconhecido, citado no livro do Sr.
Reinaldo Mendes:
«Vou afirmar e não
erro: / não houve descoberta igual / pois foi o Caminho-de-Ferro / que
deu vida a Portugal».
Mas, já
que estamos em maré de reviver o tempo dos nossos avós e também o da
minha infância, em que o meu prazer, na falta de melhor, era ver passar
os comboios, recuemos uns anos, ao tempo em que eles circulavam quase
dentro da cidade de Aveiro. Evidentemente que não pelo centro, que nem
sequer chegou a conhecer o americano, um transporte sobre carris puxado
por animais, que chegou a ser projectado, para facilitar o acesso à
estação dos caminhos de ferro, na extremidade da mais longa avenida que
Aveiro passou a ter por iniciativa de um grande edil aveirense. Mas as
boas intenções de facilitarem a vida aos aveirenses nunca passaram do
projecto. Se os comboios nunca vieram ao centro, vieram durante longo
tempo, pelo menos, até muito perto dele, até ao Canal de S. Roque, como
iremos recordar.
De Aveiro na linha
do Norte, para vir para o canal de São Roque no bairro da Beira-Mar, os
carris do caminho-de-ferro tinham de passar ao lado da “Fonte da Mina”,
nas Agras do Norte, em Esgueira. Já agora, lembremos que na década de 1950,
da Gruta ali existente jorrava água
potável, que alagava campos até às cercanias da capela do Senhor das
Barrocas. Está agora bonita e arranjadinha, mas com água imprópria para
consumo. Os trilhos dos carris, que o tempo se encarregou de apagar,
passavam ainda por um acampamento de etnia Cigana.
Na minha memória
está ainda a visão da entrada na Mina e dos morcegos
que dela saíam esvoaçando rente às cabeças da criançada que por lá se
arriscava.
A segunda fotografia,
aqui mesmo ao lado, ilustra a
fonte em 1952, andava eu pelos 12 anos. Segundo informação de um geólogo da Universidade
de Aveiro,
esta mina nunca foi devidamente estudada, mas admite-se que sejam águas captadas do aquífero superficial, formado pelas areias dos terraços fluviais, que
assentam nas argilas. Outras há na região como a “Mina da Castelhana”,
nos Moitinhos, que abastecia Ílhavo, ou “Vale das Maias”, em Vale de
Ílhavo, que abastecia Aveiro.
No entanto, já
adolescente, ouvia falar na Mina com um sentido totalmente diverso. Para mim
a palavra «mina» funcionava também como o imaginário
de um bordel. E como é do conhecimento dos antigos, vários existiram em Aveiro, que não estavam no alinhamento
destes Comboios. E continuariam a existir se a 19 de Setembro de 1962, estávamos
já em guerra nas Províncias Ultramarinas, por Decreto-Lei N.º 44579,
Salazar não tivesse
proibido a existência destas casas de encontros fortuitos, onde os homens iam satisfazer
os seus desejos mais inconfessáveis. Mas este é um tema que, embora
ainda hoje não seja pacífico, não é para aqui chamado.
Talvez que Salazar tenha tomado esta decisão para proteger algumas mulheres
que «vendiam o corpo, mas não vendiam a Alma», no dizer da escritora e
romancista Maria João Lopo de Carvalho num dos seus livros. Tenho algumas dúvidas que assim
seja, porque na década de 1960, o Dr. Christian
Banard, na Cidade do Cabo, na África do Sul, onde mais tarde fui em
trabalho, ao fazer a primeira transplantação de coração de humano para
humano, escreveu: «Em toda a minha vida de cirurgião, nunca encontrei
uma alma na ponta do meu bisturi!»
Deixemos
estas reflexões marginais, que nada têm a ver com comboios, e voltemos a
circular nos carris.
II
O Ramal
da Lota
Na confluência do
canal de São Roque com o Esteiro de Sá, houve a necessidade de criar uma
derivação de carris, que ficava a cargo do Ti Jerónimo, funcionário da
CP, que era quem manobrava as agulhas para os dois Ramais.
Demos a esta crónica de
memórias o título de «O menino que via passar os comboios». Vejamos
então como eles eram observados por mim e por todos os meus
companheiros de brincadeiras, na zona do Canal de S. Roque. E como do
tempo das minhas memórias praticamente nada resta, exceptuando o canal,
vamos ajudar os mais novos a ficar com uma ideia mais exacta de como era
toda aquela zona, recorrendo a imagens fotográficas por nós recuperadas
aqui e ali, relativas ao ramal da Lota.
A figura
acima reproduzida mostra-nos
a ponte que
atravessava o Canal, construída com estacaria de madeira, para que as
linhas ficassem devidamente niveladas. Era precisamente este um dos
locais que escolhíamos, eu e os outros miúdos, para vermos passar os
comboios. E tínhamos uma visão invulgar, de baixo para cima, porque nos
metíamos debaixo da ponte, para vermos o rodado das composições. O que se faz quando se é criança…
E costumava ir com o meu tio
José Ramos, natural de Loulé, buscar nesta ponte a jorra de carvão que
os fogueiros deitavam fora, a que chamávamos «Pedras de São João», para
fazer presépios e cascatas, nos Santos Populares, em Junho, na Tapada em
terra batida, que une ainda hoje a Rua do Norte à Rua do Vento. Fazíamos
um madeiro e saltávamos à fogueira. E pedíamos «um tostãozinho para o
Santo Antoninho».
Mais à frente,
junto ao estaleiro do Ti Tobias, que era de Sá e foi mais tarde
construir um estaleiro no bairro do Alboi, foi construída uma pequena ponte,
documentada na fotografia. Por lá passava, a caminho das marinhas
de sal, e via a minha “Cachopa”, Maria da Glória, com 10 anos, de enorme
trança e descalça, como convinha, do lado de lá do canal, até ao ano em
que Salazar
criou a multa de 25 tostões para quem andasse descalço nas cidades.
E cá estão para
quem duvide, na imagem acima, as carruagens que carregavam a pedra, em frente ao
palheiro dos Muchachos, para a reparação do molho Sul da Barra de
Aveiro, em meados da década de 1950. Ainda me lembro perfeitamente do guindaste, (Kran em alemão) no paredão. Como Aveiro não tem pedra, vinha
da zona de Eirol, Eixo e Talhadas, embarcadas para a CP no “Vouguinha”.
Também vinha pedra
do Torrão do Lameiro, junto ao Furadouro, originária da Vila da Feira,
para depois ir em batelões, a reboque, destinada ao molho Norte; mas
isto não
faz parte das minhas memórias.
A fotografia acima,
a número seis desta histórica colecção, mostra-nos a máquina a vapor, já
perto da ponte de São João e paralela ao Canal das Pirâmides, a caminho
da antiga Lota.
Para a Lota não
tinha o costume de ir. Quem para lá ia era a minha Avó Luzia. Ia com a minha futura
sogra, Maria
Manuela, trabalhar nos armazéns de peixe. Era graças a isso que, de vez
em quando, nos podíamos deliciar com uma caldeirada de
peixe, que a Maria da Glória, com engenho e arte, transformava em carne,
qual Rainha Santa Isabel. Muito gostava ela de um bife com batatas fritas
e um ovo estrelado a cavalo!
Nestas andanças, até
a minha sogra criava, na proa de uma bateira abandonada, um porquinho, que
uma vez fugiu e foi a nadar nas águas do Canal, que na época não eram de um
azul-turquesa. Talvez a adivinhar que, neste século, pudesse embelezar o
Festival dos Canais, em Julho, no ano que corre de 2020.
III
O Ramal
de São Roque
Nesta zona, recordo
ainda várias instalações fabris, tais como a Fábrica de Higienização de Sal, que mais tarde veio dar origem à Vita
Sal; mais a sul, a Cerâmica Aveirense,
criada em 1911. Lá se fabricava telha, tendo sido sócio o Sr. Comendador
Carlos Roeder. Nada tem a ver com as Faianças de São Roque, na Estrada
Nova do Canal, criada pelo ceramista Manuel da Silva e Justino Pereira
Campos. Posteriormente foi adquirida pelo Dr. Mário de Carvalho e, em
1945, foi cedida em regime de exploração a vários ceramistas, onde se
distinguiu o aveirense João Marques de Oliveira, mais conhecido por
João Lavado, um grande artista de louça decorativa.
A
Vassouraria Aveirense e uma Saboaria que fabricava sabão azul e branco e
sabão de potassa de cor amarela, para esfregar as casas que tinham o
chão de madeira, sendo que muitas eram juncadas. Era a esta vassouraria
que íamos buscar os cabos das vassouras pequenas, para fazer espadas e
brincar aos “corsários”.
Os comboios com as
bielas, rodas e cilindros bem lubrificados, eram um encanto para nós ouvi-los
apitar, deixando um penacho de vapor branco à mistura com um negro, que
contracenava por vezes com um pôr de Sol deslumbrante, que iluminava a nossa
Praia!
Neste
local,
bem encostadinho à
Capela da Nossa Senhora das Febres, junto aos tanques de lavar a roupa,
onde o Sr. António reparava guarda chuvas e onde havia uma enorme boca para
alimentar de água a máquina a vapor, podiam ser vistos os vagões a
carregar sal.
Nesta fotografia,
tendo como fundo a mítica Ponte de Carcavelos, inaugurada em cimento no
ano de 1953, costumava eu ver a Maria da Glória, com a sua enorme trança, bonita nos seus 10 anos,
quando eu ia a caminho das marinhas de sal, de
mão nos bolsos, a passar a pequena ponte rotativa, que não era mais que
uma enorme prancha de madeira para permitir a passagem de Mercantéis e Saleiros.
Não sei se a sua figura já me dizia algo! Ou talvez eu já começasse a olhar para a
minha sombra, espelhada nas águas dos esteiros da Laguna. Foi preciso
que mais alguns anos passassem. E foi, chegado aos 18, que nesta nesta Ponte
comecei a namorar com ela.
Neste local,
documentado pela fotografia, ficavam os Armazéns da CUF, propriedade de Jorge de Mello. Lá se descarregava
cimento e adubos para a Mercantil Aveirense. Na zona arredondada, que dá
a entrada para o canal que leva ao Mercado de Peixe, um
batente de cor vermelha servia de limite, impedindo que algum comboio
pudesse cair do Cais dos Botirões.
Recordo-me perfeitamente de homens com sacos de serapilheira à cabeça, a executar
aquele trabalho bem pesado, porque na época ainda não tinham sido
inventados os empilhadores mecânicos! Mais à
frente, o Cais das Falcoeiras.
Um dos passatempos
da rapaziada como eu, que andava nesta zona do Ramal, era subtrairmos pregos aos nossos pais e avós para
os metermos debaixo
do comboio. Com a passagem das composições, as rodas de ferro
funcionavam como laminadores, reduzindo-os a pequenas lâminas metálicas,
com que fazíamos navalhinhas para cortar
folhas de papel. Rapazes e Raparigas! E hoje fico espantado, quando falo
com colegas da minha idade! Todos fazíamos navalhinhas! Afinal, no
Canal de São Roque “éramos como bandos de pardais à solta!”
Nesse tempo, a
azáfama era muito grande e, mesmo deste «lado de cá» do canal, as
bateiras eram postas à querena, no final da safra do salgado, para com
piche, um Carcanel e Velo de pele de carneiro, calafetar as bateiras.
Daí que a aglutinação de Carcanel com Velo tenha dado origem ao nome da
Ponte de Carcavelos, na opinião do escritor João de Lemos.
Todos os marnotos
amarravam as bateiras com varas, bem ao largo, para evitar o vandalismo.
Os mais adultos e audazes atiravam-se aos mastros e deixavam-se
escorregar para a bateira. Quis uma vez imitá-los. Falhei o pé na
borda da bateira e ali fiquei agarrado à vara, com os pés na água, à
espera que alguém me viesse acudir!
Recordo-me, ali
naquele no
redondo do cais dos Botirões, de ver retirarem o corpo de um bebé que vinha a
boiar. Alguém fez uma asneira! E, pelos vistos, passados todos estes anos,
ainda as pessoas continuam a errar.
Aveiro, Maio de 2020
João Pires Simões
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