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TEXTOS DIVERSOS

A Bicicleta, o Polícia e a Tuberculose

O meu Pai prometeu-me que me dava uma bicicleta, se eu passasse no exame de admissão à E.I.C.A., feito ainda no antigo Liceu junto ao Teatro Aveirense.

Tinha 11 anos e passei. Ao outro dia, tirou-me a “pasteleira”, porque precisava dela para trabalhar. «Quem dá e volta a tirar, ao Inferno vai parar». Eu acho que não. O meu Pai está sepultado no Cemitério Sul em Aveiro!

Com 11/12 anos aprendi a andar de bicicleta, na rua do Seixal, onde a minha Mãe nasceu e viveu lá o General João de Almeida, herói nos Dembos, em Angola. Sempre me disseram para dar aos pedais, não olhar para as rodas e olhar sempre em frente. Hoje, com a idade que tenho, faço ao contrário: olho para o passeio, que está sempre cheio de buracos. Como tenho saudades de meter as mãos nos bolsos, andar com a bicicleta aos ziguezagues, pela estrada da Gafanha e desprezar o guiador!… Com a bicicleta, apanhava fortes chuvadas e só havia um palheiro para me abrigar.

No verão, pela estrada, havia enormes nuvens de mosquitos, sei lá se o Anopheles, que provocava o Paludismo, vindos dos pântanos da nossa Ria, embora para me proteger, rezasse à Nossa Senhora das Febres. Tive sempre uma grande vocação por esta Santa, porque o meu Avô amanhava uma marinha de sal.

Saía da E.I.C.A. às 23 horas e ia de bicicleta com o meu amigo Gomes da Costa. Ele pedalava até ao Paço mas, com sorte, porque tinha quem lhe aquecesse a cama. Ele não se esquece e reconhece. No entanto não me posso queixar, porque o meu Pai usava o invólucro em latão dos extintores de incêndio nos aviões, para fazer umas botijas de água quente, melhor que as de grês.

Acordava às 4 da manhã para estudar, antes de às 7 pegar na bicicleta e ir para a E.P.A. que, para azar meu, era a última do porto bacalhoeiro. Não me podia esquecer de dar à corda, no despertador. Razões têm os homens do mar, quando dizem que nos navios só há cabos. Cordas só há 3: a corda do sino, a corda do relógio e acorda que se faz tarde! Só que nunca ninguém me explicou para que servia a Cordoaria Nacional!

Meteu-me confusão, quando fui ao Farol de Aveiro. Subi 288 degraus, para vencer 62 metros, olhar uma paisagem de fazer parar a respiração e chegar cá baixo e voltar a parar a respiração, porque me roubaram a bicicleta! Mais um bocadinho e morria de susto. Não me lembro como cheguei a Aveiro. Veio a aparecer na Figueira da Foz! Nunca fui feliz coma minha bicicleta, apesar de quase dormir com ela, tal como dormia em Angola com a minha G3!

Em 1961, quando começou a Guerra do Ultramar, trabalhava no Francisco Piçarra, na Rua Comandante Rocha e Cunha. Tinha eu 16 anos e havia umas bicicletas de serviço, cor de laranja. Nos anos sessenta, Portugal era um País de analfabetos e a tuberculose era uma preocupação. Sempre que estava engripado comia “sopas de cavalo cansado”, não fosse o «Diabo tecê-las».

Fui à Sociedade de Representações Andisa, no nº 183 da Avenida Dr. Lourenço Peixinho, comprar um tubo de 2 metros de fibrocimento para enrolar fio de resistência para o controle de máquinas eléctricas nos navios, agora proibido por ter amianto. Encostei a bicicleta ao passeio, porque o pedal também tinha essa função; quando voltei, tinha lá um Polícia. Estava multado por ser estacionamento proibido! Como não tinha carta de condução, tive de ir “debaixo de prisão” com a bicicleta pela mão, com o polícia, para a esquadra, que ficava no Convento das Carmelitas. Pelo caminho, as pessoas vinham à porta e eu adivinhava o pensamento delas: «Coitado, andava a roubar bicicletas e foi apanhado!»

Como imaginação foi coisa que Deus me deu, comecei a magicar a maneira de “trilhar o polícia”.

Entretanto, no Posto, fui entregue ao Chefe, que de imediato, começou a elaborar o respectivo interrogatório para elaborar o Auto. O Juiz devia estar de férias… E suponho que de nada me adiantou o meu Avô ser polícia.

Nome da minha Mãe e profissão que eu disse que era Doméstica (verdade). Nome do meu Pai e a profissão; está tuberculoso no Sanatório do Caramulo (muitos na Base Aérea de São Jacinto estavam, mas o meu Pai não).

– Porra! – exclamou o Chefe – Ó 123, anda cá.

E o Polícia foi ao Chefe.

Então tu trazes-me para cá um rapaz, que a Mãe é Doméstica e o Pai está tuberculoso?!

Ao Polícia só faltou chorar, mas largava baba e ranho a implorar para me libertarem.

Isso é impossível, porque já registei a entrada – disse, o Chefe.

Então, já na presença do Sr. Lopes, guarda-livros do sr. Piçarra, oriundo de Beja, fez-se um acordo:

– Como Portugal em 1961 já estava envolvido num esforço de guerra em Angola, teria de pagar um selo de vinte e cinco tostões e tirar a carta de condução.

Era muito dinheiro, pois eu com cinco tostões já comprava tremoços e pevides para ir ver o Beira-Mar a jogar futebol. Para ir ao cinema, não, pois nessa altura não havia pipocas; e ainda bem! Evitei assim citar aquela frase de uma velhinha que vou parafrasear: «Ai, credo, parecem porcos a roer espigas de milho.»

Moral da história:

A carta nunca mais a usei. O selo não evitou que eu fosse precisamente para a guerra do ultramar em Angola. Nunca pensei que, para combater pelo meu País, ainda tivesse de pagar vinte e cinco tostões! Oh, meu Deus, o que me havia de acontecer!

João Pires Simões

15 de Setembro de 2019

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