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Pintura de Gaspar Albino - Ílhavo, 2001, págs. 25-29.

   

 

EU, PINTOR, ME CONFESSO

Portas que entreabri; caminhos que não percorri.

 

Desde que me "conheço" sempre gostei de desenhar.

Na escola primária, a minha professora e grande amiga, Dona Sílvia, esposa do não menos amigo Capitão Guerra, bacalhoeiro dos sete costados e apaixonado pelas coisas da marinharia, punha-me a corrigir os desenhos dos meus colegas.

O meu pai andava ao mar. Primeiro, na Marinha de Guerra; depois, no Bacalhau; finalmente, na Marinha de Comércio, enquanto teve saúde.

Dado que os dinheiros eram muito poucos, enquanto minha mãe vivia num quarto alugado na Rua da Lapa, em Lisboa, com os meus dois irmãos mais novos, o Zeca e a Joaninha, eu ficava com a minha avó Joana, em Aveiro.

O meu avô materno, António Gaspar, morto prematuramente, deixara uma grande secretária-estirador que ficara guardada no sótão da casa da Rua de Ílhavo, mesmo em frente ao posto da Polícia de Viação e Trânsito, muito próximo da Fonte dos Amores e dos tanques de lavar roupa na freguesia da Glória, hoje tudo isto desaparecido.

A grande secretária guardava o que restara da vida profissional do meu avô António, que não cheguei a conhecer: desenhos de figura, primorosos; plantas de capelas e de campas, pois que tinha sido canteiro e escultor; fotografias de acampamentos em terras do Brasil, já que por lá se tinha dedicado à engenharia e construção de estradas.

Essa secretária era um mundo que eu explorei com a ávida curiosidade
dum miúdo de seis, sete, oito anos...

Lá por casa dizia-se que eu tinha herdado o jeito do meu avô.

Jeito esse, aliás, também manifesto nos meus tios Alpoim e Coríntio, que tinham frequentado a Escola de Fernando Caldeira.

Recordo que os meus tempos livres, – e eram escassos, pois que eu fazia suspensões de arame para pratos de parede da Vista Alegre, espécie de indústria caseira que muito ajudava, com os meus poucos anos de idade, à economia doméstica - eram aplicados a desenhar.

Feita a escola primária, o conselho de minha família deliberou, sob o impulso decisivo de minha mãe, que eu fosse matriculado na Escola Industrial e Comercial de Aveiro.

No Ciclo Preparatório tive a sorte de ter professores excepcionais: a Dra. Cecília Sacramento, em Português, e os mestres Júlio Sobreiro e Porfírio de Abreu, em Desenho. Foram estes que mais me marcaram nos meus dez, doze anos de idade, abrindo-me as portas para os vícios da leitura, da escrita, do desenho e da pintura.

Concluído o Ciclo Preparatório, o Director da Escola, Dr. Amadeu Cachim, chamou a minha mãe e disse-lhe que eu deveria seguir para o curso de Pintura Cerâmica, dadas as minhas naturais aptidões.

Minha mãe opôs-se argumentando que eu também era bom a Matemática e a Português e que queria que eu me inscrevesse no Curso Geral de Comércio / 26 / - nas contabilidades - pois que tal acautelava melhor o meu futuro, em termos económicos.

E assim foi. Mas o desejo de desenhar e pintar continuava forte. E, assim, nas actividades circum-escolares, o marcar passo da Mocidade Portuguesa foi substituído pela frequência da Sala do Artista, um expediente criado por um grupo de alunos que gostava de Arte, sob a direcção do saudoso Manuel Bandarra, irmão do Jeremias e do Hélder Bandarra.

Lá dávamos livre voo às nossas habilidades no meio do curso técnico-profissional de comércio.

Fazíamos jornais de parede, pintávamos a aguarela e a guache, pois não havia dinheiro para os óleos, fazíamos modelação com o escultor Mário Truta e pintura cerâmica com o mestre Ernãni Moreira da Silva.

Com os trabalhos que assim íamos fazendo, concorríamos aos Salões de Estética e neles ganhei alguns prémios pecuniários que eram autêntico bálsamo para as dificuldades familiares.

E para as sessões solenes de entrega de prémios, a minha mãe adaptou o casaco preto do seu casamento para que eu fosse adequadamente vestido, corpo de homem mas de calções, já que para calças não havia dinheiro.

No último ano do meu curso de Comércio, eu com os meus colegas Amílcar Bagão, Albino Durães e Saul Marques Ferreira, decidimos fazer uma pequena exposição colectiva: "Quatro Alunos Expõem", com cartazes e tudo, aberta ao público com autorização do director Dr. Amadeu Cachim. Foi um êxito!

Os jornais da cidade até deram notícia. Os meus quinze anos de então ficaram inflados de entusiasmo.

Não me posso esquecer de duas pessoas que em mim exerceram uma enorme influência.

A primeira, o meu grande amigo de infância, o saudoso André Ala Reis, o melhor aluno do Liceu de Aveiro, no seu sétimo ano, todo dado a leituras, à música, às artes plásticas. Desde a escola primária que era o modélico herói da minha vida. Com ele e por ele pautei os meus anseios.

A segunda, o saudoso Dr. Rocha e Cunha, meu professor de Inglês, que muito me influenciou para que prosseguisse nos meus estudos, como estudante-trabalhador. Dizia-me que deveria fazer o Liceu e escolher um curso superior que permitisse fazer exames de frequência e finais sem ter que ir às aulas. Repetidamente falava-me do Curso de Direito.

Em casa do André Ala Reis que, entretanto, tinha ido para Coimbra para frequentar Germânicas, eu continuava a ter acesso, aos fins de semana, às revistas que ele comprava na Livraria Vieira da Cunha, espécie de cenáculo da cultura aveirense de então: a inglesa EVERYBODY'S e as americanas LlFE E COLLlER'S.

E foi nesta que, em 1955, li o anúncio de um concurso internacional de Desenho, promovido pelas Art Instruction Schools, de Minneapolis, Minnesota, Estados Unidos, prestigiada instituição de ensino à distância, fundada em 1914. O prémio era um curso de arte, monitorado por excelentes mestres. Concorri e, para minha surpresa, ganhei o direito a frequentar esse curso de Arte.

Entretanto, decidi seguir o conselho do Dr. Rocha e Cunha e fiz, com o apoio do Reitor Dr. Orlando de Oliveira, os sete anos do Liceu em dois anos sucessivos. Para Latim, o ex-reitor Dr. José Pereira Tavares preparou-me em três meses. Quanto bastou para eu me ver matriculado na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, com os meus 19 anos.

Tudo isto sempre a trabalhar desde os 15 anos, numa empresa de pesca de / 27 / bacalhau para a qual fui convidado, quando ganhei o Prémio do Grémio do Comércio de Aveiro de melhor aluno do Curso Geral de Comércio, pelo seu presidente, Sr. João Ferreiro de Macedo.

Nesta empresa voltei a encontrar o espírito dos homens do mar - os bacalhoeiros - que tanto me apaixonara nos curtos tempos de convívio com o meu pai da minha meninice, ele também bacalhoeiro.

Da minha memória nunca se apagará uma ida ao porto de Leixões para ir buscar o meu pai, teria eu 5 anos, ao navio de guerra Gil Eanes – antecessor do navio-hospital do mesmo nome, hoje no porto de Viana do Castelo. O meu pai tinha naufragado nos bancos da Terra Nova e ainda vinha convalescente.
É imagem que permanece e que ainda muito me diz, no mais fundo de mim mesmo.

Assim como outro momento - o naufrágio do lugre "Milena" que pertencia à empresa em que eu trabalhava, com as angústias pela sorte dos seus tripulantes.

Este lugre era um belo barco construído em estaleiros da Florida. Na altura do seu afundamento decorriam negociações para a sua venda para o Museu Marítimo de Filadélfia.

Provocou-me dor a sua perda.

Resta a seca cujo nome herdara: a seca do Milena, construída pelo saudoso armador aveirense, Sr. Egas Salgueiro e que a Indústria Aveirense de Pesca tinha adquirido.

Este lindo edifício de madeira, localizado na Gafanha da Nazaré, é quase o último, se não mesmo o último, que resta das antigas secas de bacalhau.

Ventos de feição sopram hoje a seu favor destinando-lhe futuro digno como pólo museológico representativo duma actividade económica que teve enorme importância para as gentes das Gafanhas.

Sinto-me feliz por sempre o ter procurado preservar, enquanto gerente da empresa armadora, sua proprietária.

Com efeito, de seu guarda-livros, na década de 60, fui convidado pelo Dr. Joaquim Henriques, médico e empresário muito conceituado de Aveiro, e um dos seus principais sócios, para assumir funções de gerente-delegado.

A empresa estava praticamente falida, Corri o risco; aceitei o desafio com o entusiasmo próprio de quem estava no princípio de vida, recentemente casado com a minha Claudette.

O assumir das responsabilidades de gerente significou uma mudança radical na orientação dos meus esforços.

Tive que me afastar das artes plásticas com a lembrança da minha primeira exposição, no Teatro Aveirense, que me permitiu, com o produto da venda de todos os quadros expostos, adquirir o meu primeiro automóvel.

Tive que abandonar a orientação gráfica do semanário "Correio do Vouga" que tinha assumido a convite do saudoso Bispo de Aveiro, D. João Evangelista de Lima Vidal e do seu director, reverendo Padre Manuel Caetano Fidalgo.

Deixei de poder colaborar no Círculo Experimental de Teatro de Aveiro –CETA – que tinha ajudado a fundar e no qual tinha feito o cenário da peça "O Dia Seguinte", de Luís Francisco Rebelo.

Abandonei a direcção da folha "Juvenília".

O "Círculo Experimental de Artes Plásticas" que eu fundara, enquanto Director do Pelouro Cultural do Clube dos Galitos, juntando, no projecto, quase / 28 / todos os que em Aveiro faziam Arte, e que levara a pôr de pé a "I Exposição dos Artista Aveirenses", ficou pelo caminho, dando azo a que surgisse, com os mesmos artistas, AVEIROjARTE de que fui, também, um dos seus fundadores e que hoje ainda perdura com renovada pujança.

Com o assumir de responsabilidades na gestão da empresa de pesca, deixei de poder colaborar em quase tudo o que me permitia uma realização pessoal no mundo da cultura.

Deixei de fazer capas para livros ficando-me só a saudade, por exemplo, dos trabalhos que fiz para os livros de Vasco Branco "Gente ao Acaso" e de Mário Sacramento, "Ensaios de Domingo". Da ilustração de poesia, ficou-me o livro "Ecos do Mesmo Grito", poemas de Costa e Meio; e a participação numa que noutra exposição de poesia ilustrada; numa que noutra colectiva de artes plásticas.

Mas a indústria da pesca é um desafio empolgante.

E, quiçá pela força da herança genética do espírito de pescador de meu pai, a verdade é que a ela me dediquei durante três décadas, assumindo, sufragado pela vontade colectiva dos meus colegas armadores, lugares de responsabilidade directiva nos Grémios e Associações da Pesca do Bacalhau e do Arrasto, nas suas Cooperativas Abastecedoras de Navios, nas suas Mútuas de Seguros.

Da empresa de pesca tecnicamente falida que me foi confiada, com o correr do tempo consegui fazer uma boa empresa de arrasto costeiro do país, com a colaboração de técnicos, oficiais e pescadores, meus imprescindíveis companheiros de jornada.

Mas isso só foi possível com uma dedicação total, com constantes deslocações no país e no estrangeiro, que me obrigaram também a abandonar o Curso de Direito.

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Tudo isto, contudo, nunca me impediu de continuar a desenhar e a pintar.

Acima de tudo a desenhar, pois que é meu hábito fazê-lo mesmo no decurso de reuniões de trabalho.

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Foram muitas as portas que entreabri. Mas foram também muitos os caminhos que poderia ter trilhado e que não percorri.

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Hoje, com uma pequena gráfica que proveio da Diocese de Aveiro, vou tendo a alegria de orientar a edição de livros e de fazer catálogos de arte.

Muitos dos catálogos do saudoso artista Cândido Teles foram por mim coordenados.

Catálogos dos artistas Quintas, Zé Penicheiro e outros saíram também das minhas mãos.

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O meu desejo, o mais profundo, será, contudo, o de poder fazer o que mais gosto; escrever, desenhar e pintar de forma consequente.

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Esta minha "homenagem ao pescador Manuel" será a primeira duma série / 29 / de exposições que me proponho vir a realizar.

Todas elas procurando redescobrir os tais caminhos que ainda não cheguei a percorrer mas cujas portas entreabri.

Nesta exposição, os meus quadros aparecem despojados de requebres formais, sem intuitos de exploração matérica.

São fruto de afectos que alimentei desde a minha infância.

E destinam-se a um público-alvo: os pescadores, os mestres, os oficiais da ponte que sempre acompanhei com tanta devoção. "Em terra, a pensar no mar" foi o meu lema de empresário da pesca.

Foi meu desejo primeiro fazer com que esta "homenagem ao pescador Manuel" se fizesse na Gafanha da Nazaré, capital da pesca do bacalhau.

Exactamente porque foi nesta terra que, pensando no mar, fui armazenando imagens que, finalmente, estão plasmadas em telas.

Em telas que registam também a presença de mulheres viúvas de homens vivos; em telas que deixam trespassar uma enorme religiosidade que envolve toda a gente marinheira que encontra o seu templo mais significativo na imensa catedral do oceano.

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Resta-me agradecer:

– A todos os homens do mar e a todas as mulheres que, com eles, souberam partilhar as suas vidas.
– Ao Presidente da Câmara Municipal de Ílhavo, Eng." Ribau Esteves, e ao seu Vereador da Cultura, Dr. Neves Vieira, pelo acolhimento e apoio que me facultaram, ao permitirem-me pôr de pé esta "homenagem ao pescador Manuel".
– Aos bons amigos, Professor Pedro Calheiros, Dr. Vasco Branco, Professor Joaquim Correia e pintor Jeremias Bandarra, pelos seus generosos escritos contidos neste catálogo.

Gaspar Albino
Março de 2001

 

 

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