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ENTRE FERAS
DE ROCHA JÚNIOR
ILUSTRAÇÕES DE RAQUEL ROQUE
GAMEIRO |
– Levamos o gato?
– Um problema, filha ...
Era, na realidade, um
problema, e bem difícil de resolver, a sorte do anafado rinhau-nhau,
naquele desmanchar de feira que precedia o embarque dos donos para
Luanda. Figueiredo, o chefe – chefe da família e chefe da missão
geodésica incumbida de trabalhos na província de Angola – considerava
disparate sem medida atravancar a viagem e a bagagem com tal bicharoco –
um gato de idade incerta e procedência ignorada, que resolvera asilar no
atraente rés-do-chão da
rua de Buenos Aires, só porque encontrara aberta a porta da cozinha e
descobrira na cabeça dum prego um rico salmonete arrepiado. Devia mas
era ter sido logo corrido a pau. Mas a esposa, D. Genoveva, achava
engraçadíssimo e adorável o animalzinho, com a sua mania de passar horas
e horas de sentinela à gaiola do canário, sempre na esperança de a ver
cair ao alcance das suas garras. E a filha, a loira Tininha, essa então
é que morria, positivamente morria, se lhe tirassem o seu querido «Rigoleto»
– como ela se lembrara de o baptizar desde que ouvira no Coliseu um
tenor da ópera de Verdi a gorgear uns lará... lará... lará... que
pareciam mesmo os miaus do seu gato.
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Discutiu-se longamente a coisa considerável.
Figueiredo:
– Não me seringuem com o gato!
Bem basta o que basta... Ainda se fosse um gato limpo, asseado, destes
que fazem cerimónia com as carpetes... Olha: oferece-o à D. Clotilde,
que tem medo de dormir sozinha.
D. Genoveva:
– O meu gato para a D. Clotilde?! Preferia matá-lo!
Figueiredo:
– Aí está outra ideia. Mata-o.
Tininha, desmaiando:
– Matar o «Rigoleto»! Ai!
D. Genoveva:
– Bárbaro! Selvagem! Andava a casa sete anos para trás!
Figueiredo:
– Tanto se me dá que ande para trás como para diante. Vou pôr escritos...
Figueiredo dissera aquilo por
dizer; mas no fundo ficara preocupado com as proféticas palavras de D.
Genoveva. Figueiredo era supersticioso. Vinha de longe aquele ditado do
azar que persegue durante sete anos as pessoas que matam gatos. Bem
certo que escusava de matar «Rigoleto». Podia abandoná-lo. Mas se o
gato morresse em consequência do abandono? Não viria a dar na mesma? E
se, por causa do maldito gato, as coisas lhe começassem a correr mal,
agora que ia, por assim dizer, recomeçar a sua vida, encetar nova
carreira em terras ingratas e desconhecidas, onde tantos perigos se
levantam debaixo dos pés dum homem, desde as revoltas dos pretos às
picadas da mosca Tsé-Tsé?
Pensou, repensou, e finalmente decidiu:
– Seja! Levamos o gato!
A dama e a damisela penduraram-se ao pescoço de Figueiredo, perdidas de
reconhecimento. O gato coçou uma orelha e voltou-se para o outro lado.
Três semanas depois, Figueiredo, D. Genoveva, Tininha e «Rigoleto»
embarcavam no «João Belo», a caminho de Luanda.
*
* *
Os vinte dias, monótonos e ronceiros, de jornada sobre o mar não dariam
vinte magras linhas ao mais prolixo novelista colonial, mas
proporcionariam algumas opíparas colunas a qualquer sábio naturalista
que se lembrasse de cotejar a apregoada superioridade da espécie humana
com a suposta inferioridade das outras espécies. A meia dúzia de milhas
andadas, ainda à vista da torre
do Bugio, D. Genoveva, lívida de cera, bradava ao marido, à filha, aos
moços de bordo que a atirassem aos peixinhos, a ver se desse modo se
livrava das agonias do enjoo. E «Rigoleto», sereno e grave como um
bispo, ressonava regaladamente, na deliciosa quentura duma almofada de
seda azul e branca.
Por alturas da Madeira, como quisesse gozar o panorama da ilha, a
loira Tininha cometeu a imprudência de se acochar à proa dum escaler,
com o seu inseparável «Rigoleto» aninhado no regaço. Grupo sedutor, que
tentaria o lápis dum Reynolds – veio um golpe de mar traiçoeiro e
baldeou-o nas salsas ondas! Gritos, apitos, escaleres ao mar... Apesar
dos seus quatro meses de escola de natação na piscina de Algés, a loira Tininha teve de ser pescada com um croque e depois içada para bordo às
costas dum marujo. Entretanto «Rigoleto», que, como gato que se preza,
nunca sofrera o menor contacto com a água, nadava à flor das vagas
melhor que mestre Bessone, e quando a estimável dona chegou ao beliche,
desgrenhada, desmaiada nos braços do senhor seu pai, já ele lá estava
farto de a esperar, escorreito e lampeiro como um anjo, queixando-se
apenas de ter embotado uma unha na lépida escalada que fizera do costado
do navio, sem pedir socorro a ninguém.
Finalmente, à hora de jantar, houve desarranjo na instalação eléctrica
de bordo. Consequentemente houve pânico. E enquanto, no meio da treva,
as senhoras, desorientadas, atropelavam as cadeiras, e os criados, tontos, despejavam as terrinas da sopa em cima delas, um passageiro do
«João Belo» continuava tranquilamente a tasquinhar o seu carapau assado,
num imenso desdém por toda aquela multidão de animais superiores, que
não sabem onde têm o nariz quando lhes falta um coto de vela. Esse
passageiro era «Rigoleto», o animal inferior...
*
* *
A espinhosa missão de Figueiredo levou-lhe os ossos a paragens nunca
dantes devassadas. Léguas e léguas jornadeou através do mato, quase
sempre às costas de negros musculosos que ainda não tinham visto macacos
daquela cor. D. Genoveva e Tininha, bem entendido, ficaram em casa. Da
família europeia, só um membro, o mais miúdo e discreto, acompanhara o
chefe – por seu pé. Era «Rigoleto». Acompanhou-o desenfastiadamente enquanto a companhia lhe agradou. Mas, em dado momento, como
lobrigasse entre silvedos um belo bicho de pele listrada, que lhe
pareceu da sua raça, correu denodadamente ao seu encontro, e com ele se
embrenhou nas profundezas da selva.
*
* *
Grande foi a sensação entre os habitantes daquele troço de floresta
virgem, «virgem do passo humano e do
machado», como diria o poeta, quando entre eles surgiu, amavelmente
custodiado pelo tigre, um indivíduo da sua espécie, procedente de terras
civilizadas.
Em menos dum Credo, quase toda a população indígena
– bípedes,
quadrúpedes, mamíferos e répteis – assembleiava em torno do forasteiro.
Todos ansiavam conhecer o feitio, a cor e as virtudes – sobretudo as
virtudes – desse curioso animal que, segundo declaração de «Rigoleto», tinha
o singular costume de vestir-se. E maior foi a sua curiosidade
quando «Rigoleto», informado de que toda aquela malta considerava como
seu único senhor e rei o leão, lhes deu sensacionalmente a saber que o
bicho-homem das suas relações, aquele esquisito bicho-homem cujo
convívio lhe era tão familiar, enclausurava leões entre ferros e se
inculcava rei de todos os animais.
Posto em presença do leão, que não tardou em ser avisado do advento de
«Rigoleto», muito lisonjeado ficou este ao verificar que o soberano era
pessoa da sua casta. Também Sua Majestade folgou imenso em descobrir na
fisionomia do recém-vindo os seus traços de família. E, como principal
interessado no caso, tratou, sem delongas, de indagar com que dotes
físicos e morais se enfeitava esse esquisito animal do país do gato,
para lhe disputar um trono em que ele se julgava alicerçado a pedra e
cal. (Continua na página 45)
/ 45 / – O homem – começou o gato – é, fisicamente, um animal por acabar. À
falta de pele, embrulha-se em trapos, para não morrer de frio; à falta
de pernas, arrasta-se em carros de vário feitio ou sobre uns cajados a
que chama muletas; para ver, usa rodelas de vidro; para trepar, serve-se
de escadas; para nadar, inventou as bóias, e para voar, fabricou
aeroplanos...
Pausadamente o leão puxou dum livro de apontamentos e tomou nota:
– Inferior, portanto, ao pássaro que voa, ao peixe que nada
e à pulga
que salta; inferior a ti, camarada felino, que te podes considerar o
campeão dos escaladores. Continua.
«Rigoleto» continuou:
– Estive três meses em casa dum veterinário que se dedicava à criação
de galinhas e de meninos. Quando lhe nascia um filho, nascia-lhe também
uma ninhada de pintos. Com esta diferença considerável: os pintos saíam
dos ovos sozinhos, e daí a cinco minutos já corriam a casa toda, a
tasquinhar migalhinhas; o menino, para vir à luz, dava água pela barba
ao físico, à comadre e a uma legião de criados; para comer, era preciso meter-lhe a papa na boca; para andar, tinham que o introduzir
numa caranguejola de verga; e daí até ser um homem feito, sabe lá Vossa
Majestade o trabalhão que esse mostrengo dá a uma infinidade de
mostrengas como ele? O dentista que lhe raspa a cárie; o calista que
lhe desencrava as unhas; o barbeiro que o tosquia sob pena de ficar
hediondo. Isto, já se vê, se é macho; porque, sendo fêmea, nem eu sei
quantas vezes estes artifícios se multiplicam.
– São então diferentes as mulheres?
– Coitaditas – murmurou o gato, com
desdém – fazem-me pena, principalmente quando considero os tormentos
que elas passam para prolongar as suas aparências de juventude e de
beleza. A decrepitude da espécie humana, acredite, não sofre a menor
comparação com a resistência das outras espécies. Estou ali vendo,
naquele galho de árvore, doze periquitos que, seguramente, não têm a
mesma idade...
– O da ponta, elucidou o leão, é o chefe da família: vai
em 60 anos. Os
outros são filhos, netos, bisnetos e trinetos. O mais novo ainda não fez
três meses.
– Pois repare Vossa Majestade. São todos absolutamente iguais: a mesma
elegância de talhe, o mesmo brilho e abundância de plumagem, a mesma vivacidade de olhares, a mesma graça de movimentos. Queria agora que Vossa Majestade visse um homem de 60 anos ao lado do filho de 20.
O velho é, positivamente, um monstro. Corcova, tropeça,
caíram-lhe os dentes, a cara parece cortiça em bruto, o crânio não tem
um pelo. É angustiosa a vida destes desgraçados, sempre metidos em
consultórios médicos, sempre à volta com operadores que os cortam,
retalham, emendam, encurtam, consertam e deixam sem conserto. A mulher,
inconformável com a lei da Natureza, pela qual, em todas as espécies,
cumpre ao macho ser muito mais belo que a fêmea – e Vossa Majestade, se
por natural delicadeza não deseja comparar-se com Sua Majestade a leoa
, pode comparar, verbi et gratia, o galo e a galinha, o pavão e a pavôa,
o peru e a perua – a mulher, dizia eu, sofre todas estas agruras a
dobrar, porque tem a louca pretensão de ser mais formosa que o homem e
toma muito a sério uns concursos em que a proclamam rainha.
– Se o homem é rei... –
atalhou ironicamente o leão.
E «Rigoleto», soberbo de veemência:
– Rei, aquilo! Rei um mísero mortal que voluntariamente se faz súbdito e
confere poderes descricionários a indivíduos iguais a ele! Rei um
idiossincrásico da escravidão, que leva a existência inteira a obedecer a
tiranos por ele próprio criados; desde o relógio, que o obriga a
levantar da cama, até à peça de artilharia, que o reduz a montões de
carne esfacelada! Basta dizer-lhe, Majestade, que o homem, o néscio inventor do dinheiro, nem ao menos sabe
confinar-se no espaço de tempo que a fatalidade da morte lhe concede
para realizar a sua obra na terra. Não percebe que a sua condição de
mortal o obriga a tornar-se dispensável. Quando morre, deixa sempre à
sua volta uma teoria de compromissos insolúveis e de prejuízos
irremediáveis.
O leão estava elucidado. Se
alguém podia invejar as delícias da cidade civilizada, não era, positivamente, a selva, onde a sábia previsão da
morte evita esses escalrachos sociais que são – o credor, o órfão ao
desamparo e a viúva na miséria. Até o mais grave receio do leão – o de
que o homem se impusesse pela inteligência – até esse começava a
dissipar-se no seu espírito sob as últimas informações de «Rigoleto».
Todavia, por descargo de consciência, indagou. E teve minuciosa notícia
dos prodígios que o homem da cidade consegue realizar, nos domínios da
Arte e da Ciência. Ouviu a descrição dos seus engenhos maravilhosos,
desde o sismógrafo ao astrolábio. Inteirou-se das criações da Indústria
e da Química. E, sem deixar o gato concluir, aconselhou, sorrindo:
– Olha, amigo: quando voltares ao teu país,
diz ao homem que o peixe
não precisa de sismógrafos para prever os abalos de terra, nem o choco
de gases artificiais para se camoufler, nem a andorinha de sextantes
para atravessar oceanos. E se ele te quiser deslumbrar com as suas artes
manufactureiras ou com as suas ciências químicas, pergunta-lhe quem
fabrica o mais precioso dos tecidos – a seda, e o mais delicioso dos
alimentos – o mel. E agora basta de parola. Vamos almoçar!
*
* *
Mano a mano com «Rígoleto», o leão engolfou-se na floresta. Depois de
ter coleado um bom pedaço pela maranha densa da vegetação, toda
palpitante de voos e de gritos, encontrou-se à beira dum arroio, em
cujas águas límpidas um velho abutre penteava as asas. Calado, o leão
começou a rastejar a caminho da ave, que distraída na faina da toilette,
ainda não dera pela sua presença. Quando a distância entre os dois não
ia além de dois metros, o leão endireitou-se, retesou as patas, e pulou
como seta sobre o abutre. Houve uma restolhada de penas soltas, por
entre as quais o abutre se esgueirou para a ponta dum ramo seco. O gato
assistira àquela cena impassível, como perito em semelhantes sortidas.
Vendo o leão embaçado pelo fracasso, procurou consolá-lo:
– Deixe lá; não se rale; abutres há muitos.
E depois duma pausa, que o leão desdenhosamente desprezara:
– O que me admira é que Vossa Majestade não tenha aproveitado ainda
agora, para almoçar, aquela magnifica ocasião em que toda a bicheza
estava reunida, para assistir à nossa conversa. Havia ali um casal de
leopardos gordinhos, que eram mesmo uma tentação...
– Os leopardos – disse o leão, franzindo a testa
– são animais da minha
raça, como tu. Na selva não se mata a família. «Rigoleto» procurou
desculpar-se:
– É boa! Na cidade ninguém se preocupa com essas ninharias. Estive em
casa dum médico que matou os sobrinhos com bolos envenenados para
apanhar uma herança que lhes pertencia. E toda a gente mata por ciúme,
por vingança, por prazer, por tudo e por nada, quando lhe dá na gana.
Até há mulheres que cortam os filhos às postas e os deitam pela pia
abaixo.
– Pois na selva não se mata a família!
– repetiu o leão, de má sombra.
– Está bem – concordou o gato, docilmente. Mas Vossa Majestade tinha
ali petiscos de outra raça. Aquela gazelita cor de pérola...
– A gazela, como todos os
outros animais, estava em minha casa, a meu
convite. Na selva não se mata à traição.
– Pois na cidade, todos os
meios servem para caçar o alimento. Vivi três meses com um sapateiro,
que atraiu a casa um amigo,
pôs-se a brincar com ele, e quando o apanhou dentro duma mala, fechou-a e foi
deitá-la ao rio.
– Na selva – repetiu o leão, com voz mais surda
– não se mata à traição.
– Todavia – insinuou perfidamente o gato
– Vossa Majestade queria papar o abutre...
– Vejo – disse com tristeza o rei da
selva – que estás fazendo um juízo muito errado da nossa conduta
moral. Aqui, mata-se, porque a conservação é uma necessidade imperiosa.
A fome não tem lei. Uns sacrificam-se pelos outros. Mas mata-se apenas
para comer, entendes? E mata-se nobremente, lealmente, em campo raso, à
luz do sol. Espero que me tenhas compreendido, sob pena de te expulsar
do meu reino; como já tenho quase resolvido expulsar-te da minha
família.
«Rigoleto», com estas palavras, vibrou intimamente de rancor; mas
achou de bom juízo simular, fazer-se desentendido, tentar reaver as
boas graças do soberano. Não julgasse Sua Majestade que ele aplaudia os
processos usados pelo homem civilizado. Não senhor. Até lhe causavam a
maior indignação. Mas as circunstâncias da existência, a dura
necessidade de viver às sopas alheias, é que o levavam a ser um
poucochinho hipócrita, quantas vezes a lamber certas mãos, que o seu gosto seria dilacerar com as unhas.
O leão, calado, prosseguia no seu caminho, já propenso a arrepender-se
da dureza com que tratara «Rigoleto». Na curva duma clareira, um belo
casal de leões repousava sobre a folhagem: a fêmea, meio enroscada em
volta dum tronco; o macho, estendido ao comprido, com a cabeça no regaço
dela. O nosso herói, esquecido do gato, sentou-se a pequena distância,
a contemplar o grupo amoroso. Nos seus olhos profundos e dourados havia
uma expressão cujo sentido não escapou à
perspicácia de «Rigoleto».
– Gosta dela? – perguntou num tom suave, que fez estremecer o leão.
– Quem to disse? – volveu
este, surpreendido.
– Adivinhei.
– Nesse caso guarda um segredo que só
tu conseguiste conhecer.
– Como? – fez o gato com espanto. Nunca
lho disse?
– O leão encarou-o, sobranceiro:
– Para quê?
– É assim que se começa...
– Não vês que é casada, imbecil?
Desta feita, «Rlgoleto» soltou uma sonora gargalhada.
Pois quê? Então isso era razão para que Sua Majestade desistisse? Então
o leão não tem boca para falar, unhas para lutar, espírito para
convencer? Então não havia maneira de arrancar uma fêmea ao domínio
transitório do macho, pela força, pela manha, pela intriga ou pela persuasão?
Perdoasse Sua Majestade, mas os seus
escrúpulos davam-lhe vontade de rir.
E o gato ia outra vez escancarar as mandíbulas, nas convulsões dum riso desabalado, quando um terrível rugido do leão o fez
estremecer dos pés à cabeça.
– Onde aprendeste tu isso, canalha? Foi
em casa do veterinário, em casa
do médico, ou em casa do sapateiro?
O gato fitou o leão, entre
receoso e trocista. Coçou uma orelha, cofiou
os bigodes e disse, com adorável sinceridade:
– Saberá Vossa Majestade que foi em todas!
*
* *
Ao cair da tarde desse mesmo dia, o leão convocou a assembleia geral.
Tinha, segundo anunciou, graves resoluções a tomar acerca do gato
estrangeiro, que em má hora se lembrara de arribar àquelas paragens. E
feito o silêncio, declarou:
– Recebi este gato na côrte porque era animal da minha raça e porque o
supunha ainda detentor das tradições dos seus antepassados. Deveis
saber que o gato, oriundo da África Ocidental, era dotado de tão
belas qualidades, que os antigos egípcios, animais selvagens
como nós,
chegaram a erguer-lhe altares votivos. Era um exemplo de lealdade,
/ 46 / de valentia e de nobreza. Coube a um gato a honra de matar, em combate
singular, a terrível serpente Apopi. Não sei como se comportam ainda
hoje, noutras regiões da terra, os descendentes dessa gloriosa cepa
egípcia. O que sei é que este, no convívio do homem da cidade, tornou-se
miseravelmente depravado. A sua lei é o roubo, a devassidão, a
deslealdade, o crime. Renuncio a descrever-vos as ignomínias que, no
breve espaço de meia hora, este repulsivo animal me propôs, apoiado no
exemplo do homem civilizado, em cujo convívio se formou e perverteu.
Comunico-vos apenas que resolvi expulsá-lo do nosso grémio. Que dizeis?
Um coro imenso, uníssono, como se brotasse duma só boca, respondeu
simplesmente:
– Muito bem!
*
* *
Desciam as primeiras sombras da noite sobre a
tenda da missão geodésica,
numa pequena aldeia de palhotas, a alguns quilómetros da fronteira,
quando entre os indígenas, já alarmados pelo desaparecimento de «Rigoleto»,
correu voz de que um leão, perseguindo um gato, se avizinhava da
povoação.
Como tinha sido aquilo?
Ao ver que o expulsavam da selva, «Rigoleto», lavado em lágrimas,
começara a chorincar que não era justo nem humano escorraçarem assim um
triste gato para terras ingratas e desconhecidas, onde seguramente
encontraria a morte. Se Sua Majestade, em seu alto critério, o julgava
merecedor de tão severo castigo, tivesse ao menos a caridade de o mandar
acompanhar – já não dizia pelo tigre, como à chegada – mas por qualquer
humilde lacaio da sua corte, que lhe ensinasse o caminho até onde
houvesse fumo de casais.
O leão ouviu e concordou:
– Tens razão. Eu mesmo te acompanho.
– Oh! Majestade... murmurou o gato,
prostrando-se aos pés do soberano.
Mas naquele gesto, de aparente submissão, «Rigoleto» quisera apenas
ocultar o lampejo da sinistra alegria que lhe brilhara nos olhos:
«Caíste como um patinho, grande trouxa! Se tu soubesses os intuitos com
que Figueiredo e os seus companheiros, ao empreenderem a travessia do
mato, se muniram de luzentes espingardas de dois canos...»
Pôs-se a caminhar, muito humilde à ilharga do leão. Como
este aludisse
vagamente aos perigos a que se expunha aventurando-se tão fora dos seus
domínios, tratou de o tranquilizar com argumentos depreciativos da
capacidade do bicho-homem:
– Coitado do pobre! Fazer frente a um leão, aquilo! Tomara
ele poder
comigo pelo rabo!
Andando, andando, chegaram os dois a uma colina, de onde se avistava um
grupo de palhotas fumegantes. Agora o trilho era já estrada poeirenta,
marginada de arbustos, onde os pássaros faziam ninho.
– Estás chegado – disse o leão. Vai com Deus; já não precisas de mim.
Nunca te esqueças da lição que recebeste na selva. Procura ser bom,
honesto e leal.
– Obrigado, real senhor. Assim farei.
Naquele instante, na sebe de capim, qualquer rumor inesperado levantou
uma revoada de pardais. «Rigoleto» olhou e sorriu.
– Majestade. Venha comigo mais um
bocadinho...
– Ainda tens medo?
– Não; é só para ver...
A sebe rumorejou de novo. Três detonações pavorosas, quase simultâneas,
abalaram os ares, e o leão, atingido em plena fronte, tombou na poeira
do caminho, sem um gemido. Logo uma turba de gente, entre a qual
avultava Figueiredo, rodeou a fera agonizante, num alarido de gritos de
triunfo. E o leão foi levado de rastos à tenda, deixando ao longo da
estrada um fio de sangue, sobre o qual, de espaço a espaço, «Rigoleto»
se acochava, a sorvê-lo deliciadamente.
*
* *
A bordo do «João Belo», de
regresso à
Metrópole, o assunto de todas as conversas era a grande aventura de
Figueiredo e do
seu gato: um, tão corajoso e valente que, sozinho, em pleno mato,
prostrara, a tiro de espingarda, «o mais temível assolador da região
fronteiriça»: o outro, tão inteligente e dedicado ao homem, que
conseguira atrair a fera temível até à povoação, onde mais de metade
dos habitantes já haviam sido trucidados por ela». Figueiredo, com
grande desespero de D. Genoveva, era o ídolo da população feminina do
paquete. «Rigoleto» andava de colo em colo, amimado como um querubim. E
a loira Tininha não adormecia sem lhe encher o róseo focinho de beijos...
*
* *
No beliche, a horas mortas, sob a carícia das ondas, que vêm lamber a
vigia, «Rígoleto» às vezes sonha... Sonha que a pele do leão, estendida
a seus pés, se ergue, toma forma, e lhe diz, num murmúrio de infinita
mágoa:
– Traíste o teu rei...
Mas «Rigoleto» sacode a
cauda, afaga uma orelha e continua a dormir
regaladamente, aninhado na deliciosa quentura da sua almofada azul e
branca.
Rocha Júnior |