I
Há dias, um ilhavense perguntou-me onde era o “Poço de
Santiago”, em Aveiro. Lembrei-me, na altura, que um velho amigo,
“cagaréu” de gema, me deu, inadvertidamente, a entender, há
anos, no meio de uma conversa de café, que conhecia esse nome,
mas não sabia exactamente onde ou o que era.
Aconteceu que, durante dias, esse “dado” me começou a vir,
recorrente e inusitadamente, à ideia, sem que eu compreendesse a
razão pela qual ele saía da gaveta, onde estava arquivado há
mais de sete dezenas de anos, sem eu ter clicado na tecla mental
de pesquisa. Até que, uma noite destas, durante o período de
reflexão que sempre faço antes de adormecer, compreendi a razão
desse comportamento anómalo. O “Poço de Santiago” entendia ser
um bom tema para um artigo do “Diário de Aveiro”, por duas
razões: primeira, muitos dos seus antigos milhares de utentes
gostariam de recordar a infância e juventude; segunda, esse
escrito poderia vir a constituir um útil documento para alguém
que possa vir a fazer a História de Aveiro referente a meados do
século passado, porquanto ele supriu, durante dezenas de anos,
uma grande e grave lacuna, no que respeita às infra-estruturas
de formação desportiva não competitiva, na predita época, muito
especialmente, na área da, então, Freguesia da Glória.
Após esta introdução, começarei por dizer onde era o “Poço”.
Para a garotada do “Alboi”, ficava ao fundo da rua da Pêga. No
que respeita à rapaziada de “São Domingos” e “5 Bicas” – eu
incluía-me nesta última –, íamos pelas ladeiras do Hospital,
passávamos defronte do Seminário em construção e da Capela da
Senhora da Ajuda – junto da qual morava a cavaleira tauromáquica
luso-peruana Conchita Cintrón (a quem nós chamávamos Citroen) –,
atravessávamos toda a antiga aldeia de Santiago e, chegados aos
Lavadouros Públicos, virávamos à direita, seguindo até ao fim de
um caminho ladeado de tamargueiras (em linguagem local e epocal
“estramagueiras”). Por vezes, nós, os “cinco biquenses”,
efectuávamos uma pequena variante: entrávamos no Parque pelo
portão da avenida Araújo e Silva e passávamos pelo Estádio Mário
Duarte; podia acontecer, quando não havia treinos do Beira Mar,
que os portões, do lado do Parque e do Hospital, estivessem
fechados, mas, para nós, não eram intransponíveis. A malta das
“Pombinhas” vinha pela rua das Pombas e, chegada ao Seminário,
tornava-se, também, “romeira de Santiago”.
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Aspecto do Poço de Santiago em 1967, vendo-se, ao fundo,
parte do casario da zona e um campo semeado de milho. Foto
cedida pela viúva do Atita. |
Feita a localização, direi o que era o “Poço”. Era,
simplesmente, o canto, mais ou menos, nordeste do viveiro da
“Marinha Santiago da Fonte”, conhecida, também, por “Santiaga da
Fonte”. Plano de água delimitado, a Norte, por um muro de marinha;
a Nascente, pelo caminho público; a sul por uma parede de lama,
cuja parte superior não ultrapassava a superfície da água. Para
poente, havia o mesmo tipo de vedação que a sul, mas nela
desembocavam duas valas, nas entradas das quais estavam
espetadas estacas com as cabeças cobertas de conchas. Este
recanto do viveiro tinha uma forma aproximadamente quadrangular,
com, aproximadamente, 25 m de lado. No que concerne à
profundidade, a zona norte, junto do local de acesso, era a mais
baixa. E, por isso, era lá que decorriam as primeiras aulas de
natação. Considerava-se a iniciação terminada quando o aprendiz
conseguia chegar, sem ajuda, à referida parede submersa de lama,
a sul. O fundo ia descendo, lentamente, até meio, onde a água me
engolia – e eu, aos 13 anos, tinha 1,73 m, mais 5,5 cm do que
hoje – e tornava a subir em direcção à predita parede sul.
Este grande buraco aberto no viveiro que, tanto quanto sei,
devia ser caso raro ou mesmo único nos viveiros do salgado
aveirense, tinha uma explicação. Naquele lugar, existiu uma
jazida de andoa ou ândoa – espécie de barro azulado, utilizado,
antes da “botadela”, para barrar o fundo dos “cristalizadores”
e os tornar mais rijos e impermeáveis – que foi extraída não
só para emprego na própria marinha, mas também para vender
para outras salinas, cujos “cristalizadores” tinham, igualmente,
o solo pouco consistente e vedado.
Os professores eram os mais velhos, ou seja, uma geração ensinando a
seguinte. Eu, não sei porquê, não obedeci totalmente a esta
regra, porquanto os meus pais pagaram a uma pessoa para lá me
ensinar a nadar bruços, quando tinha sete anos, mas assumi a
função pedagógica, cometendo mesmo a proeza, única no mundo, de
ter ensinado a nadar dois Robalos. E só nunca comuniquei esta
proeza para o “Livro Guinness dos Recordes”, na medida em que um
se chamava Luís Manuel e o outro Adriano José.
Um pequeno parênteses para dizer que estes irmãos, que vieram,
ainda novos, do Alentejo para Aveiro, foram grandes
desportistas. O Luís, para além de ter sido meu colega de equipa
no Andebol, jogou Basquetebol, também, nos Galitos, foi vencedor
dos 1.000 metros planos no “Primeiro Passo” e recordista
nacional dessa distância, no seu escalão etário. Reside em
Portalegre. O irmão mais novo, Adriano, recentemente falecido,
foi basquetebolista do Clube aveirense e do Sporting
Clube de Portugal, tendo chegado a internacional.
A nossa piscina possuía uma torre de saltos com a alucinante
altura de 5 decímetros – um calhau na margem nascente – e um
vasto solário, constituído pelo terreno ervado baldio que
acompanhava toda a margem nascente do viveiro; esta
infra-estrutura natural era, no meu tempo, extremamente
importante, porquanto só usávamos toalhas solares para nos
secarmos. Apesar da água ser mais quente do que a da Ria, porque
não era corrente, dispúnhamos de uma zona de água morna, nas
supracitadas valas, cuja profundidade era muito reduzida, pelo
que só se podia lá nadar no estilo bruços e muito lentamente.
Todavia, o seu acesso apresentava um perigo constituído pelas
estacas cobertas de conchas, que um dos meus pés veio a descobrir
que cortavam como lâminas, porquanto, só tendo sentido um leve
roçar, quando cheguei ao ponto de partida, verifiquei que tinha
o pé ensanguentado. Felizmente, um dos putos meus colegas era
especialista em primeiros socorros artesanais, tendo-me feito,
logo, um bom penso de lama. Após o banho de sol, o sangue tinha
estancado; lavei o pé e, chegado a casa, disse que me tinha
arranhado numas silvas, com medo de vir a ser proibido de voltar
ao “Poço”.
No que respeita ao vestuário naquela altura, nas praias, os rapazes
não podiam andar só de calções, tinham que ter o tronco
pudicamente tapado. Mas como ali não ia o cabo do mar, havia
alguns (poucos) calções – os meus tinham sido do meu pai e foram
encolhidos, numa primeira fase, conhecendo depois, anualmente,
sucessivos alargamentos –, muitas cuecas e os mais pequenos
praticavam, muitas vezes, o “zeroquini”.
Acabado o banho voltávamos para casa. Sendo o caminho
ladeado por quintais e quintas, nalgumas zonas, por vezes,
viam-se uns ramos carregados de fruta a acenar, provocantemente,
por cima dos muros. E, ou fosse porque a natação tivesse aberto
o apetite, ou porque lá em casa não abundasse aquele manjar,
acontecia que alguém saltava o muro, indo, como então dizíamos,
à penhora. Se não aparecia ninguém, não havia problemas; se
ouvíamos dizer “olha o homem”, era uma correria danada, que, em
caso de perseguição, podia acabar nas obras abandonadas do
Seminário, de que conhecíamos todos os recantos, pois era lá que
jogávamos aos “polícias e ladrões” ou aos “caubóis”, conforme os
filmes que passassem nas últimas “matinées” de domingo, no
Teatro Aveirense.
II
Nós, os “Ceboleiros”, podíamos usufruir de outra “piscina”, para
além do “Poço de Santiago”, esta de água corrente, no Canal do
Paraíso”, para jusante da actual comporta, mas nessa só havia
água suficiente para nadar até meia maré vazante ou depois da
meia maré enchente, e, neste último caso, desde que não houvesse
matanças no Matadouro Municipal, porque se não apanhávamos com
as porcarias provenientes dos esgotos daquelas instalações.
Por falar em natação em águas conspurcadas, aproveito a
oportunidade para contar um caso interessante. Até há poucas
dezenas de anos, os esgotos domésticos de Aveiro despejavam,
directamente, para os canais, pelo que o Canal Central era uma
autêntica fossa a céu aberto, onde muitos dos aveirenses, eu
incluído, nadaram. Ora bem, aqui há uns anos, o meu filho mais
velho, que tal como o irmão já aprenderam a nadar na Piscina da
DGD, teve que fazer análises para saber se sofria de hepatite.
Face aos resultados, o clínico disse-lhe que estava imunizado
contra todas a hepatites de A a Z, tendo-se concluído que as
vacinas tinham sido ministradas através dos pirolitos bebidos
durante os mergulhos dados, após os treinos de remo, nas
refrescantes e super-poluídas águas do Canal Central, quando o
Hangar da Secção Náutica era na rua do Clube dos Galitos, junto
à Ponte da Dobadoura.
Voltando ao “Poço de Santiago” e mudando do registo saudosista e
brincalhão, para o actual e sério, queria dizer o seguinte.
Durante o tempo em que andei a congeminar este texto, veio-me a
seguinte ideia à cabeça. O dono da marinha, de que fazia parte o
viveiro em causa, teria sido, nos tempos a que me reporto, o
senhor Eng. Duarte Pinto Basto Gusmão Calheiros, residente em
Santo Amaro de Oeiras, segundo me informou o antigo marnoto João
Cravo, que me disse, também, o nome da marinha e que,
curiosamente, a mesma está em laboração, pertencendo à
Universidade de Aveiro. Acontece que, mau grado este viveiro ter
sido frequentado por milhares de pessoas que, ao longo de
décadas, lá aprenderam a nadar, nunca o referido senhor ou os
seus herdeiros cobraram um cêntimo, não só por essa utilização
intensíssima, mas também pelo serviço que estavam a prestar à
comunidade, substituindo-se aos poderes públicos, nem mesmo
quando o meu amigo Atita – o meu amigo?! O nosso amigo Atita,
pois ele era amigo de toda a gente – lá deu aulas pagas de
natação, pelo que não será mentira dizer que o “Poço de
Santiago” até teve uma contribuição, se bem que ínfima, na
atribuição da comenda que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa
colocou na lapela esquerda do aveirense Eduardo Raposo Rodrigues
de Sousa, o nosso Atita.
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O Atita (Eduardo Raposo Rodrigues de Sousa – 1932-2017) com
um grupo de aprendizes de natação no Poço de Santiago, em
1967. Foto cedida pela viúva. Para outras imagens e recordar a
figura do Atita, consultar:
HOMENAGEM. |
Ora bem ou, melhor dizendo, ora mal. Tanto quanto sei, nunca
nenhuma entidade, muito especialmente a Câmara Municipal, terá
agradecido aos proprietários da “Marinha Santiago da Fonte” a
colaboração desinteressada e anónima que prestaram aos
aveirenses, ao longo dos tempos. Eu não digo que tal
justificasse nome de rua. Mas conheço casos de pessoas que,
parafraseando Camões, por serviços muito menos valorosos
prestados a Aveiro, se viram libertados da lei da morte, através
de duas placas toponímicas, por vezes, bem distantes uma da
outra. Não tenho procuração para agradecer aos antigos donos do
“Poço de Santiago”, em nome de todos os seus utentes, que, com
certeza, estariam de acordo comigo. Mas o Diamantino Dias, em
nome do Tino das “5 Bicas”, aproveita esta oportunidade para
lhes agradecer, sincera, profunda e comovidamente, se bem que
com setenta anos de atraso, todos os momentos de camaradagem,
alegria e prazer que me proporcionou o vosso – e meu – “Poço de
Santiago”.
Para terminar, vou responder a quem possa perguntar onde é que
os “cagaréus” aprendiam a nadar. Era na “Praia”, denominação
pela qual era conhecida a margem sul do Canal de São Roque, para
nascente do Canal da Praça do Peixe. Note-se que, dantes, este
canal não tinha muralhas, sendo as margens em declive, como na
praia, de terra e lama e, por vezes, nalgumas zonas, com alguma
areia.
Esta “piscina” tinha uma vantagem em relação às nossas “ceboleiras”:
uma torre de saltos de vários níveis, a Ponte dos Carcavelos, e
outra, virada para o Canal das Pirâmides, só para saltadores
olímpicos – a Ponte de São João.
8 de Agosto de 2019
Diamantino Dias |