Há muito tempo que não ia ao Largo da Apresentação. Quando vi o
grande edifício que, agora, faz esquina com a rua de D. Jorge de
Lencastre, lembrei-me da vivenda que lá tinha existido. E as
lembranças, como é consabido, são como as cerejas: puxa-se por
uma e nunca se sabe quantas vêm atrás.
Nessa casa, viveu o Dr. Orlando de Oliveira, cuja acção foi
muito importante para que fosse instituída uma Universidade em
Aveiro. No que me diz respeito, em 1967, quando era Reitor do
Liceu Nacional de Aveiro, não havendo candidatos com curso
específico, em número suficiente, convidou-me para dar aulas de
Educação Física, o que fiz, durante uns tempos, tendo como mera
habilitação diplomas de treinador de Andebol.
Em meados dos anos cinquenta, o Dr. Orlando já tinha sido meu
professor de Ciências Naturais, disciplina da alínea F, no sexto
e sétimo anos que, na época, eram os últimos. Explicador de
eleição, como classificador era, porém, um unhas-de-fome
terrível. Chegava ao ponto de diminuir as notas dos exercícios
escritos, por causa da qualidade da ortografia. Era, também, uma
pessoa irónica e punha em prática essa faceta sempre que tinha
oportunidade. Tendo não só assistido a alguns desses casos, mas
também participado num deles, lembrei-me de escrever este
artigo, cuja parte substancial consistirá na descrição desses
episódios da minha vida de estudante liceal. Como é evidente,
omitirei, excepto no caso em que fui a vítima, o nome dos meus
colegas.
Numa aula teórica, foi-nos comunicado que, na próxima aula
prática, teríamos que levar um frasquinho de água com
clamidomonas, para observarmos esses seres unicelulares ao
microscópio. Como sabíamos que essa era a designação de uma alga
verde que incluía o predito ser, muitos de nós, eu incluído,
fizemos as colheitas no lago do Parque, cuja água era
esverdeada, e, para surpresa geral, clamidomonas era coisa que
lá não existia. Um dos meus colegas, quando estava, de manhã
cedo, a fazer a barba – note-se que, nessa altura, não havia
máquinas eléctricas para o efeito –, lembrou-se que se tinha
esquecido de ter ido apanhar as clamidomonas; e aparecer na aula
sem o líquido, implicaria uma falta de material, logo
injustificável. De repente, veio-lhe à ideia: «Encho o frasco
com a água do lavatório e ninguém me pode acusar de, no charco
onde colhi o líquido, não haver o raio das algas.»
Durante a aula, pusemos, com as pipetas, umas gotas nas lâminas,
colocámos as lamelas e começámos a fazer as observações.
Entretanto, o Dr. Orlando começou a espreitar nos vários
microscópios e, quando chegou ao da preparação feita com a água
ensaboada da barba, disse, com um ar muito sério, como era seu
hábito:
–
Venham todos ver. Esta colheita foi feita num rio onde não
havia clamidomonas, mas pelo qual se transportavam troncos de
árvores.
Então não é que o meu colega se tinha esquecido que a água tinha
os pelos da barba que, ampliados umas dezenas de vezes, eram cá
uns barrotes!
Outra com microscópios. O que estava em análise era a estrutura
das folhas de plantas, as quais, depois de destrinçadas com a
ajuda de agulhas, eram ampliadas. As minhas agulhas, que ainda
guardo, tal como o bisturi e a pinça, foram feitas com velhas
agulhas de “crochet” afiadas ao esmeril. A certa altura,
ouviu-se uma voz: – Senhor doutor, a minha folha está a
mexer-se!
O
Dr. Orlando aproximou-se, deu uma olhadela e exclamou:
– Esta preparação vai
ser fixada e enviada para a Academia das Ciências, dado que o
vosso colega fez uma descoberta importantíssima: uma planta,
cujas folhas
se movem. Venham todos ver.
E fomos. Tratava-se dum micro-lagarto,
meio
desfeito pelas pinças, a contorcer-se nas vascas
da morte.
Aula de Mineralogia. Pergunta: – O que é a mica?”
O
respondente, que era um tanto ou quanto gago, custou-lhe a
arrancar, mas, depois, disse de um só fôlego: – É um
ortosilicato alumínico de ferro.
Nova intervenção do professor: – Conheces a história do
fulano a quem perguntaram se ele era capaz de dizer três
disparates seguidos?”
–
Não, senhor doutor.
–
Pois ele era tal e qual como tu, e disse: Nã sará fácel...
A
chamada era sobre Botânica. E o aluno, não sendo dos melhores,
era especialista no desenrascanço; por exemplo, numa aula de
Geometria Descritiva, tendo-lhe sido pedido para definir plano,
respondeu: – um círculo com raio infinito.”
– Não é essa a definição do livro –
contrapôs o mestre.
–
Mas é a minha e está certa, senhor doutor.
Voltando à chamada. – Onde é o “habitat” das algas?”
–
É nas paredes das casas.
–
Tens a certeza?
O
meu colega topou logo que se tinha enganado, que tinha
confundido algas com fungos, mas então tentou entrar no jogo em
que era especialista; todavia, mal sabia ele com quem se tinha
metido.
–
Senhor doutor, nas paredes das casas húmidas.
–
Não se pode dizer que esteja certo, mas está melhor.
–
Senhor doutor, quando as casas são ao pé da água.
–
Ainda não está bem, mas vais no bom caminho.
–
Senhor doutor, quando a maré enche, ficam debaixo de água.
–
Continua a melhorar, mas não se pode dizer que seja correcto.
–
Ó senhor doutor, o “habitat” das algas é a água.
–
Estás a ver? Tu estás como o outro a quem perguntaram de que cor
era uma pedra.
–
É preta.
–
Não quero dizer que estejas totalmente errado, mas não me parece
que seja preta.
–
Vendo melhor, é cinzenta escura.
– Está melhor, mas não me parece que seja essa a
cor.
E
o Dr. Orlando continuou a contar que o cinzento foi clareando,
até chegar ao branco, rematando: – Tal como tu: esse
indivíduo disse que o branco era preto e tu disseste um
disparate do mesmo quilate.
E,
para terminar, uma passada comigo.
Tinha acabado a aula de Trabalho Práticos, que durava noventa
minutos, em que tínhamos utilizado microscópios e eu vinha a
sair da sala, quando o Dr. Orlando me chamou:
–
Diamantino, podes fazer uma coisa?
–
Com certeza, senhor doutor.
– Veste a bata.
A
minha bata branca era com botões de apertar atrás, pelo que,
muitas vezes, até pedia ajuda a um colega; mas, como já não
estava mais ninguém na sala, tive que me safar sozinho.
–
Agora, vai lavar e desinfectar as mãos.
–
Já lavei e desinfectei, senhor doutor.
–
Então, vai pôr o teu microscópio dentro da caixa, porque te
esqueceste. Depois, podes ir embora.
No caminho até ao pátio do recreio, chamei-lhe todos os nomes
possíveis e imaginários, mas para dentro. E então não é que,
quando lhe contei esta história, muitos anos mais tarde, ele
ainda se lembrava desse incidente!
Aveiro, 18 de
Fevereiro de 2021
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