Nota prévia explicativa
Entre 1957 e 1970, o único funcionário da Comissão Municipal de
Turismo de Aveiro, que se fazia entender sem ser em português ou
“portuñol”, era eu. Acontecia, porém, que não podia permanecer
muito tempo, durante os primeiros anos, no Posto de Informações
– situado no meio do Rossio, até 1959 e, depois, na avenida Dr.
Lourenço Peixinho –, porque, por um lado, sendo Fiscal
Informador dos Serviços de Propaganda e Turismo, tinha como
principal função verificar a cobrança do Imposto de Turismo, nos
hotéis, pensões, restaurantes e casas de pasto, pelo que cumpria
um horário especial para poder visitar aqueles estabelecimentos,
especialmente à hora das refeições principais. Por outro lado,
sendo poucos os funcionários administrativos da Câmara – no
costumeiro passeio anual, cabiam todos, incluindo o pessoal dos
Serviços Técnicos, em duas das lanchas do Turismo, cuja lotação
conjunta era só de quarenta e sete pessoas –, o chefe da
Secretaria encarregava-me de executar várias tarefas
burocráticas que nada tinham a ver como Turismo. Assim, quando
um turista necessitava de algo mais do que o constava do folheto
que lhe era entregue, uma das minhas duas colegas telefonava-me
para a Câmara (não havia telemóveis) e, se eu lá estivesse,
pegava na bicicleta pasteleira que me estava distribuída e,
breves minutos depois, apresentava-me no Turismo, para exercer a
minha segunda predita função: Informador.
Já agora, vou abrir um pequeno parêntese, porque me veio, de
repente, à ideia algo que nunca me tinha ocorrido. Eu guardava o
referido velocípede, no rés-do-chão do edifício dos Paços do
Concelho, junto do PBX, e, muitas vezes, aproveitava para meter
conversa com a telefonista, com quem acabei por casar há quase
cinquenta e oito anos. E, então, não é que me lembrei, neste
momento, de que o meu antecessor, no cargo e no uso da
bicicleta, se casou com a telefonista que a minha mulher tinha
ido substituir! Fui o último detentor do supracitado cargo e,
entretanto, o PBX foi instalado nos andares superiores, pelo que
só dois casos não serão suficientes para comprovar uma teoria
que chegou a aflorar à minha mente, a qual seria: “A influência
da bicicleta no casamento dos Fiscais Informadores de Turismo
com as Operadoras Municipais de PBX”.
Passeio quase trágico-lagunar
Não posso precisar a data, mas estou quase certo que foi em
meados de Setembro de 1959. Tinha acabado de chegar à Secretaria
da Câmara, depois ter visitado alguns restaurantes, à hora do
almoço, quando recebi uma chamada de uma das minhas colegas a
dizer que a lancha pequena – CITA 3, de sete lugares – ia sair
para a Torreira. Chamei a atenção para o facto de se prever mau
tempo; responderam-me: “O que é que você quer? São duas
francesas que querem ver os batôs. O que é que eu havia
de fazer?”. Respondi que não registassem o aluguer – não
tenho a certeza, mas creio que o preço seria de 150 escudos (€
0,75) –, porque que iria tentar suspender o passeio. Desci a
escadaria e a Costeira (rua de Coimbra) em passo de corrida e,
quando cheguei ao Canal Central, a lancha estava a desatracar.
Chamei o condutor, o senhor Manuel Rei, tentei demover as
francesas, que eram belgas, de fazerem o passeio, porque não só,
à chuva, não seria agradável, mas também porque a embarcação,
não sendo cabinada, não reunia condições para navegar com mau
tempo. Eram mãe e filha, na casa dos sessenta e dos trinta anos.
Disseram que queriam muito ver “les bateaux typiques des
ramasseurs d’algues”, que, no dia seguinte, teriam que estar no
Porto e que estavam preparadas para a chuva. Passados tantos
anos, ainda estou a ver os dois impermeáveis transparentes
acinzentados. Note-se que, nessa altura, os moliceiros exerciam
a actividade para que foram criados, mas, para os apreciar, era
necessário ir aos locais onde se situavam as praias de moliço.
Em Aveiro, não era possível vê-los, trabalhando na actual função
de turisteiros. Esgotados, em vão, os argumentos,
resolvi acompanhá-las. Disse ao senhor Rei para irmos ao hangar
buscar oleados para nos protegermos; respondeu-me que já estavam
na proa. Tirei o casaco e a gravata que era obrigado a usar,
porque fazia parte do Pessoal Maior, meti-os na proa e dei ordem
de partida, começando a desbobinar o meu discurso “La lagune
d’Aveiro”.
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Lancha CITA 1, no Canal Central. |
Estava tanto calor que eu nem conseguia ir sentado ao abrigo dos
pára-brisas, tendo feito todo o percurso de pé ou sentado nas
costas do assento. Fomos até um pouco a norte da Torreira, ainda
não havia a Ponte da Varela, tendo visto moliceiros e várias
artes de pesca. Fizemos uma breve paragem na Torreira, para as
senhoras tomarem qualquer coisa e irem à casa de banho. À
partida para Aveiro, o tempo começou a escurecer e, quando
vínhamos a chegar ao Monte Branco, vi o primeiro relâmpago, do
lado da serra, por sudeste; comecei a contar lentamente e
verifiquei, pelo método empírico que consiste em fazer
corresponder 350 m a cada unidade, que a trovoada estava longe.
Disse ao senhor Rei que seria melhor atracar na Casa Abrigo e
esperar que passasse o mau tempo. Concordou comigo. O problema é
que se levantou, de repente, uma ventania violentíssima do
quadrante sul. O dia escureceu, a trovoada caiu em cima de nós –
eram relâmpagos por todos os lados e sentia-se um forte cheiro a
enxofre – e começou a chover abundantemente. Fui para o leme –
já agora, uma confissão: timonei as cinco lanchas do Turismo,
sem possuir nem cédula de marinheiro de tráfego local – e o
senhor Rei foi tentar montar a lona da cobertura, mas debaixo
daquele temporal não conseguiu. Felizmente, a maré estava a
encher e o vento vinha com ela, não fazendo ondulação. Mas as
rajadas pareciam chicotadas gigantes que faziam a água, galgando
por cima da proa, bater nos pára-brisas. Comecei a recear o
pior, porque o velho motor “OLIMPIA” quase que não nos fazia
avançar e, se falhasse, ficaríamos sem governo, podendo ir
contra as pedras de protecção da estrada, perto da qual
navegávamos. O senhor Rei, por incrível que pareça, pois desde
criança tinha passado a vida em barcos, não sabia nadar. E só
havia uma bóia redonda. As belgas, que berravam e choravam baba
e ranho, disseram-me que sabiam nadar. Eu não tive medo de
morrer afogado, porque sabia nadar. Pelo sim e pelo não, tirei a
protecção de oleado, descalcei-me e pus a carteira com os
documentos na bolsa impermeável dos papéis da lancha, tendo-a
guardado numa gaveta fechada, na proa. O meu relógio era à prova
de água. Entretanto, ia falando com o senhor Rei e decidimos
esperar um intervalo entre duas rajadas e virar a norte, para ir
navegando a favor da água e do vento, com o motor ao “ralenti”;
correríamos menos riscos, mesmo no que respeita a vir a
acontecer uma possível avaria da máquina. Assim fizemos, nem
tentámos atracar na Torreira, e fomos navegando, até passar o
temporal, quase que chegando ao Carregal, no extremo da Ria.
Quando se começou a juntar água da chuva nos paneiros do fundo
da lancha, como não havia vertedouro, fui-a vazando com a caixa
de madeira das ferramentas.
Voltámos para Aveiro, onde chegámos perto das 21H30 e, para
nossa surpresa, tínhamos gente à nossa espera, na actual zona
ajardinada, junto à Ponte da Dubadoura. As minhas colegas, tendo
visto cair o temporal e sabendo que a lancha estava na Ria,
tinham informado alguém da Câmara do que se estava a passar. Do
Município, telefonaram para a Base Aérea de São Jacinto, para
ver se da torre de controlo nos avistavam. A resposta foi
negativa, porque, mesmo recorrendo a binóculos, tal não seria
possível, dado que nós tínhamos andado muito mais para norte da
presumível zona de busca. Muito mais tarde, já no Canal Central,
as pessoas que nos procuravam pediram informações aos
tripulantes de um barco que tinha vindo de São Jacinto e eles
também não tinham visto a lancha, talvez porque, não tendo luzes
de navegação e temendo vir a ter problemas com a ondulação
provocada por algum navio que, no canal da Gafanha, não nos
enxergando, não abrandasse a velocidade ou até nos pudesse
abalroar, quando chegámos às Duas Águas, metemos ao Espinheiro e
ao Esteiro dos Frades, chegando a Aveiro pela Cale da Veia.
Temendo o pior, a Câmara tinha providenciado para se formar um
grupo de busca composto pelo senhor Carlos Mendes, com a lancha
“Nortada”, e o senhor Gonzalez, com o barco de cujo nome não me
recordo. Lembro-me de que estava também presente o Presidente da
Câmara, Dr. Alberto Souto (avô). As outras pessoas já não sei
quem eram.
As belgas desfizeram-se em desculpas e disseram-me, entre muitas
outras coisas, que nunca mais se esqueceriam daquele passeio.
Nem eu!
Aveiro, 6 de Março
de 2020
Diamantino Dias
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