No passado dia 7 de Julho, fui uma das pouquíssimas pessoas que
esteve a assistir a este Concurso. E no que respeita a
estrangeiros, se exceptuarmos a mais que possível presença de
alguns entre os passageiros das embarcações dos “Circuitos
Turísticos” que foram, rapidamente, passando, não me apercebi de
nenhum.
Eu sei que o plano de água da Fonte Nova é muito aprazível e
reúne óptimas condições para a realização de espectáculos
aquáticos; portanto, compreendo que a Câmara Municipal queira
dele tirar partido. Acontece, porém, que um certame com estas
características – é muito pouco dinâmico –, só por si, não tem
características para atrair um número significativo de
espectadores, muito especialmente de aveirenses, na medida em
que, a não ser que se trate de uma pessoa muito interessada na
matéria, basta-lhe ir ao centro da cidade, no seu dia-a-dia,
para ver os actuais sucedâneos dos moliceiros e os seus painéis.
Todavia, é pena que não se aproveitem estas oportunidades,
para fins promocionais. Se o Concurso se tivesse realizado, já
não digo onde era no início – no Canal Central –, para não
interferir com o negócio dos chamados “Passeios na Ria”, mas no
Canal das Pirâmides, na zona do Rossio, estou certo que a dúzia
de enormes velas – as dos barcos grandes, excepto uma, eram
todas de mercantel – atrairia, ao local, muitos dos turistas,
nacionais e estrangeiros, que se encontravam no centro da
cidade, os quais teriam o ensejo de realizar fotos e vídeos, que
poderiam vir a constituir, nas suas terras, excelentes e
gratuitas peças publicitárias não só de Aveiro, mas de toda a
região onde o moliceiro é rei. E esta certeza provém da
experiência de tal ter acontecido durante largos anos.
Postas estas considerações sobre o evento em título, e
considerando não só que estou com as mãos no teclado, mas também
com a cabeça no passado, aproveitarei a oportunidade, caso a
Redacção me conceda espaço, para fazer um sucinto historial do
“Concurso de Painéis dos Barcos Moliceiros”, para memória
futura.
Quando entrei para os Serviços de Turismo da Câmara de Aveiro,
em Outubro de 1957, este evento já se realizava há alguns anos.
Tinha sido uma feliz iniciativa de um antigo Vereador, Arnaldo
Estrela Santos, quando era Presidente da Comissão Municipal de
Turismo. Pretendia-se contribuir para que os moliceiros
continuassem a embelezar os seus barcos, atribuindo-se-lhes
prémios de presença – nos anos 60, eram 10 escudos = € 0,05, com
os quais se poderiam comprar 5 maços de cigarros dos mais caros;
agora, são necessários € 22,5, para efectuar igual compra – e
prémios para os três primeiros classificados, de cujo valor
exacto já não me lembro; mas não deveriam andar longe de 150,
100 e 75 escudos.
O Concurso tinha lugar no Canal Central, no dia 25 de Março,
data da inauguração da “Feira de Março” que, durante séculos, se
realizou no Rossio, pelo que contava sempre com largas dezenas
de participantes, muitos deles porque aproveitavam para vir à
Feira com a família e amigos. Houve um ano, em que se registaram
72 concorrentes, mas note-se que, em 1967, ainda estavam
registadas, na Capitania, 602 embarcações para a apanha do
moliço, se bem que, neste número, estivessem incluídos os
matolas (moliceiros mais pequenos e todos pintados de preto, do
sul da Ria) e as bateiras erveiras.
As embarcações estavam amarradas entre a Ponte Praça e a Tribuna
do Júri, instalada junto ao cais, perto da entrada da Feira, em
fronte ao “Café Gato Preto”. Os barcos passavam, à vara,
mostrando, primeiro, os painéis de estibordo e parte das
pinturas interiores; depois, davam a volta e tornavam a passar,
dando oportunidade aos elementos do Júri de apreciar os painéis
de bombordo e restantes decorações.
O Júri era presidido pelo Presidente da Comissão Municipal de
Turismo e integrava, obrigatoriamente, o Comandante do Porto,
que fazia parte daquele órgão autárquico, e mais alguns
convidados, muitas vezes escolhidos entre pessoas conhecidas que
se encontravam no local, mas, normalmente, nenhum dos seus
elementos tinha grande conhecimento sobre a matéria que iria
analisar e classificar. Assim, pronunciavam-se sobre a parte
estética, os motivos representados, dando, frequentemente,
especial relevância aos painéis com motivos jocosos, por vezes,
um pouco salgados, mas sem nunca ultrapassar os limites da
decência. Mas se as regras ancestrais, não escritas, mas
estabelecidas pelos pincéis de gerações de pintores populares,
eram observadas – por exemplo, só cores primárias, utilizando-se
as meias-tintas, unicamente, nos pormenores, uso da linguagem
simbólica nas faixas delimitadoras dos painéis, etc. –, isso
nunca era levado em consideração.
Este estado de coisas culminou, creio que em 1969, com a
atribuição do 1.º Prémio a um barco que tinha, no painel de proa
de bombordo, um “S. Jorge e o Dragão”, pintado por Zé
Penicheiro. Na altura, não pude fazer nada, mas, passado algum
tempo, numa conversa com o Presidente da Comissão Municipal de
Turismo, Carlos Alberto da Cunha Soares Machado, apresentei-lhe
o meu ponto de vista sobre o assunto. O “Concurso de Painéis”
era um certame de pintura popular, logo, um artista plástico,
como o Zé Penicheiro, de quem viria a ser amigo, não poderia
nele participar. Assim, para evitar futuras situações do género
e, muito especialmente, para que aquele concurso continuasse a
perseguir os fins para que tinha sido criado, eu propunha-me,
caso ele concordasse, a elaborar um manual sobre as decorações
dos moliceiros, para ser consultado por futuros elementos do
Júri. Tendo obtido a sua concordância, dactilografei meia dúzia
de páginas, pedi ao desenhador da Câmara, Mário Martins, para
reproduzir algumas das ilustrações a cores do Tomo dos
Moliceiros, dos Estudos Etnográficos, coordenados por Domingos
José de Castro, e organizei um pequeno opúsculo que, dado o seu
êxito, me motivou para escrever o meu primeiro livro:
“Moliceiros”, editado pela Comissão Municipal de Turismo, em
Novembro de 1971.
Festa da Ria – desfile final dos
participantes – na década de 1970.
Para terminar este texto, que já vai longo, direi que, mau grado
o evidente interesse etnográfico deste Concurso, o mesmo, como
atrás disse, não tinha capacidade, nem para atrair, nem para
entreter pessoas, pelo que, nos anos 70, foi decidido integrá-lo
na “Festa da Ria”, cujo programa incluía, para além dele, e só
no que respeita a embarcações lagunares, regatas de
“Caçadeiras”, “Bateiras à Pá (Homens)”, “Bateiras à Pá
(Mulheres)”, “Bateiras do Chinchorro”, “Moliceiros à Sirga”,
“Mercantéis à Sirga”, “Mercantéis à Vara” e “Moliceiros à Vara”.
Estas corridas tinham lugar no Canal das Pirâmides e, durante
duas horas, milhares de espectadores assistiam a elas, dos dois
lados do canal. O espectáculo terminava com a entrega dos
prémios e com a partida das embarcações.
Quando pensei escrever este artigo, tinha a intenção de abordar
o tema dos painéis. Acontece que, tal como acontece com a
ficção, perdi o domínio da escrita, quando enveredei pelos
esteiros, há muito na vazante, da memória. Prometo abordar esse
assunto, que considero de interesse e actual.
11 de Julho de 2019
Diamantino Dias |