David Paiva Martins, Aradas. Um olhar sobre a segunda metade do século XX. 1ª ed., Aradas, Junta de Freguesia de Aradas, 2011, págs. 63 a 67.

O PREC (PROCESSO REVOLUCIONÁRIO EM CURSO)

O Movimento Militar de 25 de Abril de 1974 nasceu duma reivindicação corporativa dos Capitães do Quadro Permanente do Exército, que decidiram manifestar-se contra a integração nesse Quadro dos Capitães Milicianos. Essa reivindicação, ganhando cariz político, acabou por redundar na conhecida Revolução do 25 de Abril. O Partido Comunista e o seu satélite MOP/ COE, que eram os únicos partidos organizados naquela altura, devido à luta política que vinham desenvolvendo na clandestinidade desde há anos, tentaram aproveitar o facto para tomarem eles próprios o poder e imporem a sua ditadura. Foi um tempo muito complicado, de lutas cruzadas e contraditórias, tanto no campo político como social, que esteve à beira de redundar em guerra civil, sobretudo no então chamado "Verão Quente" de 1975.

A propaganda vinha de todos os lados, com a rádio, a TV e os jornais a recorrerem frequentemente a linguagem insultuosa e a intoxicarem a opinião pública. Foi um período muito difícil. Ficou para a História como o "tempo do PREC". Sendo que "PREC" é a sigla de "Processo Revolucionário em Curso".

A nova Comissão Administrativa da Junta, como já se adivinhava pelo texto da acta da sessão de tomada de posse, não resistiu à tentação da linguagem do PREC. O seu uso vai ser permanente no decurso de todo o mandato, com actas longuíssimas, em que o que mais abunda – além de promessas que não passam disso mesmo – é doutrinação política. A quem pretenderia a Comissão Administrativa dirigir-se? Só se fosse a si própria, numa espécie de "auto justifi¬cação"! Porque, como ninguém se dá ao trabalho de ler actas da Junta, aquela doutrinação toda parece inútil...

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A título de exemplo, vou transcrever na íntegra a acta da sua sessão número um, de 5 de Janeiro de 1975. Ora vejam só que "encanto" de linguagem!

«Aos cinco dias do mês de Janeiro de mil novecentos e setenta e cinco e no gabinete do Presidente desta Junta de Freguesia, em virtude da sala de sessões se encontrar ocupada pela Comissão de Recenseamento Eleitoral, pelas dez horas, reuniram-se os Srs. Germano Simões Maia do Miguel, Duarte Maio Marabuto e António Ferreira Vidal Vi eira, respectivamente nas qualidades de Presidente, Secretário e Tesoureiro da Comissão Administrativa desta Junta.

Aberta a sessão e depois de lido o expediente após a sua posse, foi resolvido exarar nesta acta o seguinte:

Os membros desta Comissão Administrativa, em conformidade com a linha de acção comum norteada por um conhecimento profundo dos problemas a resolver na Freguesia de Aradas, designadamente os que se inserem no plano social e político, acordaram entre si, seguir uma política administrativa, de molde a abarcar e resolver tudo quanto esteja dentro do seu âmbito. Assim, politicamente, chegou-se à conclusão que em todas as realizações anteriores ao vinte e cinco de Abril, a população desta freguesia não tinha autêntica representatividade e, quando a tinha, ela era coacionada pela cobertura paternalista de autêntico caciquismo, retirando-lhe, portanto, toda a hipótese de se pronunciar coerentemente. A Freguesia de Aradas é um agregado populacional muito heterogéneo, englobando assim vários estratos sociais, embora bastante distintos, todos eles sofrendo as consequências da mesma política retrógrada e absolutista. Verifica-se também que há um grande número de pessoas aqui radicadas oriundas de outras regiões, que nunca foram estimuladas no sentido de participarem de qualquer forma para o progresso desta Freguesia. No plano social, a população divide-se praticamente em três camadas. A primeira é aquela que agrupa os ricos e, neste agrupamento, encontra-se um grande número de adeptos do regime anterior, que até ao vinte e cinco de Abril monopolizaram a iniciativa colectiva. Esta camada, radica-se na sua quase generalidade em locais que não se encontram em grande estado de carência.

A segunda agrupa os agricultores, indivíduos que na sua quase totalidade são alheios à verdadeira situação da Freguesia, quer pelas características do seu modo de vida, quer pela natureza do seu trabalho, deveras frustrante. Esta classe pode, com o decorrer do tempo e caso as disponibilidades de tempo dos dirigentes desta Junta de Freguesia permitam, tomar uma maior consciência dos problemas que os afectam particularmente.

A terceira (a maior) agrupa o operariado, que vive em condições de habitação e salubridade deficientes. Esta classe tem latente, embora um tanto inconscientemente, um conhecimento mais ou menos incipiente dos problemas que a afectam. Politicamente é esta classe que, a breve trecho, se politizará mais rapidamente e possivelmente, mercê do seu sentido de classe, votada a um alheamento e esquecimento durante a vigência do regime anterior. Assim, será para esta camada que vive nos locais mais desprovidos, que consideramos elementar, em especial, proporcionar-lhe arruamentos acessíveis, embora saibamos que a canalização de água e esgotos são prioritários, mas estamos certos que, a longo prazo, estes serão resolvidos pela Câmara. Não deixará porém esta / 65 / Comissão Administrativa, durante o seu mandato, de interceder junto das entidades competentes, para que as mesmas se consciencializem e verifiquem in loco de tais carências.

Depois da análise atrás feita, conclui-se que a acção desta Comissão Administrativa vai incidir nestes dois grandes aspectos, quer realizando ao máximo das possibilidades financeiras obras que venham ao encontro de uma melhor habitabilidade na freguesia e principalmente começar a catalisar os paroquianos, no sentido de obter a sua participação em todas as iniciativas de vulto desta freguesia. Estamos certos que os esforços a conjugar darão frutos, embora modestos de princípio, mas com o tempo a situação mudará por certo para melhor. O nosso lema será "Um assunto, Um caso próprio".

Logo que os membros desta Comissão Administrativa tomaram posse, foi-lhes apresentado o caso da abertura de uma estrada em Aradas, que supúnhamos não ser da responsabilidade da Junta. Assim, em face de não possuirmos elementos que nos elucidassem, deslocámo-nos a Aradas, a fim de nos inteirarmos até que ponto esta Junta estava comprometida, pelos seus antecessores, na abertura de tal estrada. Efectivamente, não havia compromisso mas, por dever, resolvemos interceder junto da Câmara, no sentido de se encontrar uma forma viável de resolver o problema. Resolvemos também contactar com um dos proprietários dos terrenos que serão utilizados na referida abertura, o que foi feito de imediato, tendo dado conhecimento à Câmara das conversações havidas. Ainda acerca deste problema e no sentido de entreajuda fomos novamente à Quinta do Picado (morada do referido proprietário) na companhia do Sr. Vice-Presidente da Câmara e daí ao local. Embora não tenham sido totalmente proveitosas as conversações, achamos que o diálogo se tornou útil. Posteriormente e após diligências efectuadas pelos membros desta Comissão Administrativa junto do Sr. Avelino Rodrigues, possuidor do terreno a que nos referimos, conseguiu o Presidente Sr. Germano Simões Maia do Miguel que o proprietário atrás mencionado anuísse na cedência do terreno para abertura da referida estrada há muito planeada pela Câmara Municipal de Aveiro mas que, devido à renitência do Sr. Avelino, se mantinha retardada. Assim, passa esta freguesia a contar com mais um arruamento que ligará a Viela do Abreu com a Rua das Leirinhas, o que nos congratula.

Dada a época invernosa que atravessamos, resolvemos percorrer os arruamentos rurais da freguesia, com vista a uma reparação que os pudesse tornar transitáveis. Resolveu-se proceder à reparação da Rua da Agra, em Verdemilho, que no nosso entender se tornou prioritária e que está prestes a concluir-se. Seguir-se-ão os arranjos nos arruamentos que estiverem mais necessitados.

Em virtude da urgente resolução do ampliamento do nosso cemitério, deslocámo-nos à Câmara e à Junta de Urbanização, a fim de nos inteirarmos do estado em que tal assunto se encontrava. Fomos acolhidos da melhor maneira, sendo-nos prometida toda a colaboração, não só por parte da Câmara, mas também por parte da Junta de Urbanização, tendo confirmado por escrito o nosso pedido verbal. Oficiámos também no mesmo sentido à Junta Distrital, de que ainda não obtivemos resposta.

Entre o resolvido verbalmente, contam-se o asseio de campas, limpeza do cemitério, conservação dos receptáculos, etc. Foi deliberado escrever aos responsáveis pelo asseio das campas, no sentido / 66 / de efectuarem tal asseio ou, se o preferirem, autorizarem que o faça esta Junta, sendo-lhes debitados os respectivos encargos.

Foi deliberado proceder à conclusão das obras de alargamento da Rua do Beato e da que liga a Rua do Alquebe à Fonte Velha, na Quinta do Picado, ultimamente aberta.

Foi deliberado responder à Câmara Municipal acerca do ofício recebido em vinte e um de Dezembro do ano passado, com o número quatro mil cento e quarenta e quatro e congratulamo-nos com a anunciada para breve vinda a esta freguesia das Forças Armadas para uma sessão de dinamização cultural. Foi mais deliberado: adjudicar a reparação dos sanitários do cemitério; contactar com o Sr. Manuel dos Santos Ferreira (Furão) para o pedido de cedência do terreno contíguo à Sede da Junta, uma vez que este Senhor detestava o anterior Presidente, chegando a dizer, publicamente que resolveria o assunto logo que ele fosse afastado; contactar com a Comissão de angariação de fundos da estrada que liga as Ruas do Alquebe à da Fonte Velha, na Quinta do Picado, pois estes haviam prometido, segundo apurámos, concorrer com verba superior à já entregue; avivar e numerar as sepulturas do cemitério, pelo que para o efeito se completou o conjunto de números apropriados para tal fim; contactar com representantes de cada lugar desta freguesia, no sentido de informarem esta Junta das maiores carências dos seus habitantes, indo assim ao encontro dos legítimos anseios do povo.

Ao examinar a acta número doze, de vinte e quatro de Novembro do ano findo, verificámos ter havido lapso ao indicar os números dos talhões a ocupar no futuro, provisoriamente, para fazer face à escassez de sepulturas. Os talhões a ocupar são na verdade os números quinze (com quatro sepulturas) e dezasseis (com seis sepulturas).

Foi recebida nesta Junta representação dos lugares do Bonsucesso, Verdemilho e Quinta do Picado, a fim de interceder junto da Câmara para que fosse tornado extensivo aos referidos lugares a passagem dos autocarros, sendo deliberado escrever à Câmara nesse sentido, contactando também pessoalmente o Exmo. Sr. Presidente.

Recebeu também esta Comissão o Sr. António Rangel dos Santos Capela, acerca do alargamento da Rua do Serrado, em Verdemilho, tendo-se deslocado ao local, no sentido de se verificar até que ponto era viável a sua pretensão. Este ficou de contactar com o proprietário de um dos terrenos e de nos informar seguidamente.

Finalmente foi deliberado afixar no Placard da Sede desta Junta tudo o que de proveitoso se for fazendo para bem do povo desta freguesia, mantendo-o assim a par da informação a que tem direito.

Nada mais havendo a tratar, foi encerrada a sessão, dela se lavrando a presente acta que, depois de lida em voz alta na presença simultânea de todos, vai por estes ser assinada. E eu, Aruoal Gateira, na qualidade de escrivão desta Junta, a subscrevi.»


Uff!!! Caramba!... Parece que nunca mais chegava ao fim!...

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– Nas actas seguintes nada de importante há a assinalar. Na da sessão de 29 de Março de 1975, contudo, refere-se que a Junta foi assaltada, facto que foi comunicado à GNR para averiguações. Nada foi roubado. Aparentemente, os intrusos terão tentado forçar a gaveta onde estavam guardados os Cadernos Eleitorais, sem que no entanto a tenham conseguido abrir.

– Na sessão de 27 de Julho de 1975, conforme consta da respectiva acta, o Secretário da Comissão Administrativa, Duarte Maio Marabuto, propôs que fosse sugerido à CMA que atribuísse à Rua da Agra, em Verdemilho, o nome de Eugénio Manuel Pereira das Neves, militar morto em serviço nos desacatos que se haviam verificado junto à sede do Partido Comunista, em Aveiro. O Tesoureiro estava de acordo, mas o Presidente discordou, visto haver outros militares falecidos cujos nomes não figuravam na toponímia da Freguesia. E a acta informa: "Esta decisão e outras divergências, levaram o Secretário desta Comissão Administrativa a tomar a decisão irrevogável de pedir a demissão, por no seu entender a continuidade contribuir para agravar a sua já débil saúde".

– Este problema voltou ao de cima em sessão extraordinária realizada em 1 O de Agosto seguinte, na qual foi presente um documento, com 18 assinaturas de residentes da Freguesia, insistindo no pedido de à Rua da Agra ser dado o nome do Eugénio Manuel Pereira das Neves. A Junta decidiu então encaminhar o pedido para a CMA. Aproveitou, aliás, para sugerir mais outros dois nomes: o de José Carlos Matias Damas a atribuir à Rua do Serrado e o de Ernesto de Oliveira Vitória à Rua da Pilota, todas em Verdemilho, donde estes militares, caídos ao serviço da Pátria, eram naturais.

– A actividade da Junta que as actas revelam neste período resume-se fundamentalmente ao arranjo das ruas, que é a mais permanente. Houve também um esforço especial na limpeza e arranjo das fontes, dado o período de grande seca que o País atravessou nesta altura. Um problema importante, que além de ter repercussões no povo também provocou divisões no seio da própria Comissão Administrativa, foi o do alargamento do cemitério. Mas como esse é um problema transversal a toda esta segunda metade do Século XX, com reflexos na acção de todos os Executivos desse período, vou tratá-lo em capítulo próprio.

 

 
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