Comer que nem um abade
Capítulo
1
–
Cala-te! Vai é trancar o portão da rua!
Dito
isto, o jovem padre abancou à mesa da ceia, juntando-se ao dono da casa
e sua família mesmo sem ter sido convidado. Atou ao pescoço um grande
pano, que espalmou sobre o peito, como sempre fazia, para evitar que o
molho espalhasse nódoas de gordura na sotaina. O aroma delicioso que
rescendia da panela que Adelaide retirava do lume fulminara-o como um
raio. Tal como uma onda alterosa que inesperadamente se alevanta dum mar
chão e tranquilo e, quando menos se espera, se abate sobre a praia
desprevenida, ergueu-se-lhe do peito uma gula esmagadora que o revolveu
até ao âmago. A expectativa daquele pitéu inesperado deixou-o em puro
êxtase: “Bendita a hora em que aqui entrei ” – pensou com os seus
botões.
Abade
daquela terra na primeira metade do Século XX, padre António era um
esbelto mocetão de metro e oitenta e cinco de altura e cerca de cem
quilos de peso. Ainda muito jovem, com pouco mais de vinte anos, a Mãe
Natureza dotara-o de força hercúlea e duma portentosa voz de tenor que o
tornaram num instante no ídolo dos seus paroquianos. Quinta do Frade era
uma pequena aldeia de agricultores analfabetos, cujo povo, farto de
aturar anos a fio o abade anterior, um velho padre rabugento, estava
maduro para adorar um jovem assim.
Acabadinho de ordenar pelo bispo da diocese, estreava sotaina nova, mas
a demais roupinha era velha e precisava de ser lavada e ponteada.
As irmãs
dum emigrante na América, que lhe emprestou a sua casa para viver os
primeiros tempos, encarregaram-se de lhe fazer a comida e tratar das
roupas.
Chegou
num dia quente de Verão. Após tomar banho, vestiu uma camisola interior
e ceroulas que um paroquiano lhe emprestou. Foi forçado a permanecer
encerrado no quarto até poder vestir de novo as calças e a camisa, que
tiveram de ser lavadas e passadas a ferro. Os paroquianos, que o sabiam
proveniente duma família de agricultores pobres, com muitos filhos, não
se surpreenderam com a sua relativa miséria, que era idêntica à deles
próprios.
As
beatas mobilizaram-se logo para ajudar. Havia duas ou três raparigas
trintonas que se derretiam ante aquele belo exemplar de homem,
aproveitando o facto de ser o padre a quem se confessavam para lhe darem
a conhecer os segredos mais íntimos dos seus corações ansiosos.
Simpático e conversador como era, apreciador das coisas boas da vida,
ele desfrutava o que pudesse – controlando contudo, cuidadosamente, o
instinto de exclusividade e posse que cada uma delas manifestava.
Algo de
que todos rapidamente se aperceberam foi que, embora fosse esbelto,
padre António fazia pleno jus ao dito popular “comer que nem um abade”:
tinha um apetite espantoso, uma voracidade quase inacreditável. A
situação tinha toda a aparência de gula – que é pecado mortal.
O povo,
forçado pelas carências económicas a alimentar-se com extrema
frugalidade, ficou de início muito chocado. Contudo, com o decorrer do
tempo, acabaram por se acostumar e assumiram essa característica do
senhor abade como uma espécie de lenda da terra. Quem o convidasse para
uma festa – de casamento, de baptizado ou a simples matança do porco – sabia bem que, embora na mesa ocupasse só um lugar... ao preparar o
repasto era necessário contá-lo como se fossem pelo menos dois convivas
– dos que comem bem! Essa era a medida mínima do que comia e bebia.
A gula
deixava-o verdadeiramente irracional, incapaz de respeitar o bom senso,
as boas maneiras ou mesmo a educação mais elementar. À vista de comida
ficava cego – e nada o fazia parar! Foram muitos os problemas que causou
aos anfitriões, sobretudo em banquetes de casamento. Os demais
convidados, quando eram pessoas de fora, que não o conheciam, ficavam
estupefactos ao vê-lo, pela quantidade e pelo ritmo impressionante com
que comia e bebia. Era normal “bater-se” sozinho com uma caçoila inteira
de chanfana de carneiro. E depois de devorar a carne, bebia aquele molho
gordo à colher!... Algo de quase inacreditável foi o que se passou
quando, num certo fim de tarde, chegou a casa duma paroquiana na altura
em que ela estava a tirar do forno de lenha, de cozer o pão, um coelho
que assara para solenizar a ceia de aniversário do marido. Face ao seu
rasgado elogio ao ar coradinho e cheiroso do coelho, a senhora, por uma
questão de delicadeza, convidou-o a provar. Claro que ninguém, no seu
juízo normal, aceitaria fazer uma coisa dessas. Mas com o senhor abade
aconteceu o impensável: não só decidiu provar como, ao fazê-lo, comeu o
coelho inteirinho, deixando a pobre senhora desesperada, sem ter que pôr
na mesa para a festa do marido!
Numa
aldeia, como a Quinta do Frade daquele tempo, todos se conheciam pelo
nome. Era um povo de gente séria. A confiança era mútua e geral:
vivia-se de portas abertas.
As casas
de lavoura tinham o portão grande do pátio, por onde passava o carro de
bois. Esse portão estava no trinco o dia inteiro e só se fechava à
noite, quando a família se ia deitar. Era por ele que se fazia todo o
movimento da casa. Os vizinhos, quando tinham algum assunto a tratar,
entravam directamente para o pátio e chamavam daí; eram então
encaminhados para a cozinha, compartimento que constituía o ponto
fulcral da vida familiar – porque era lá que se cozinhava, se comia, se
conversava, se recebiam as visitas...
* * *
Na casa
do Manuel da Eira dia de aniversário era dia de festa. Quando algum dos
homens – marido ou filhos – fazia anos, Adelaide, a sua mulher, tinha
por hábito escolher a melhor galinha que houvesse na capoeira e
estufá-la para uma ceia festiva. Era um costume mantido escrupulosamente
durante tantos anos a fio que assumira já foros de
importante tradição familiar.
* * *
Padre
António não facilitava no cumprimento rigoroso das suas obrigações
paroquiais. Uma das tarefas a que dedicava o cuidado mais escrupuloso
era justamente a de elaborar anualmente uma lista das famílias, contendo
os nomes de todos os seus paroquianos que tivessem a obrigação de se
confessar e comungar pela Páscoa, bem como o dever de cumprir os
preceitos de jejum e abstinência ao longo do ano. Dava cuidadosamente
baixa nessa lista de todos os que, confessando-se e comungando, cumpriam
a desobriga, e anotava as bulas e indultos que cada família comprava
para reduzir o número de dias de jejum e abstinência obrigatórios. Os
paroquianos tinham plena consciência do rigor com que o senhor abade
controlava tudo isso, porque ele nunca deixava de abordar quem não
cumprisse qualquer preceito, exigindo justificação para a falta.
* * *
Como a
Páscoa é uma festa volante, nesse ano a sexta-feira santa – que é o dia
de maior e mais rigoroso dever de jejum e abstinência – ocorreu a 12 de
Abril. Era a data de aniversário do Isaías, o filho mais novo do Manuel
da Eira. Por isso, Adelaide sentiu-se presa num dilema terrível. Era
sexta-feira santa. Como tal, a família devia jejuar e abster-se de comer
carne. Mas também era o dia de aniversário do seu menino. Isso é
justamente uma coisa que ninguém pode escolher: no decurso do ano
inteiro, o nosso aniversário ocorre só numa determinada data e não
noutro dia qualquer.
Ela
respeitava profundamente os preceitos religiosos. Mas o facto é que o
Isaías era o seu filho! Ante tão grave conflito de valores, que deveria
fazer? Respeitar o dever religioso ou comemorar o aniversário do menino?
Decidiu privilegiar o seu amor pelo rapaz: manteve a tradição e estufou
a galinha.
Foi
quando todos se sentavam para cear que alguém chamou do pátio. Como de
costume, Manuel da Eira mandou que entrasse. Adelaide, que levava o
tacho fumegante para a mesa, ficou siderada ao ver padre António, o
próprio fiscal do jejum e abstinência em pessoa, entrar-lhe assim
cozinha adentro. Logo naquele momento! Apanhada assim em flagrante,
ficou para morrer! Estarrecida, aterrorizada, gaguejando, sem saber o
que dizer, tentava desesperadamente encontrar uma palavra de
justificação quando padre António acorreu em seu auxílio:
–
Cala-te! Vai é trancar o portão da rua!
|